Já está provado que uma pandemia como a covid-19 causa mais danos em lugares desassistidos. Em Duque de Caxias, segundo município do Estado do Rio com mais óbitos por covid-19, 56% dos domicílios não têm acesso a esgoto tratado e 15% não têm acesso à água, de acordo com o Painel Saneamento Brasil, do Instituto Trata Brasil (ITB). No último ano, a cidade tratou apenas 8% do esgoto que produz, sendo a 89ª entre 100 cidades no Ranking do Saneamento de 2020 – o município da Baixada Fluminense, está há oito anos entre as 20 piores colocações.
Com aproximadamente 20 mil habitantes, o bairro de Campos Elíseos não tem saneamento básico e pavimentação em 80% de suas ruas, de acordo com a Associação de Moradores. Na maioria das vezes, quem faz o papel da prefeitura é a própria população. Em tempos que exigem cuidados redobrados de higiene, os moradores, sem água tratada, acabaram construindo poços semiartesianos para utilizar a água da bacia e do lençol freático da região, que podem estar contaminados pelas indústrias do complexo industrial petroquímico da Reduc, que ajuda a fazer da Região Metropolitana do Rio a segunda mais rica do país. O bairro é o maior do distrito do mesmo nome que tem 360 mil moradores – 31% da população de Duque de Caxias
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Veja o que já enviamosA dona de casa Silvania Oliveira, 70 anos, mora há mais de 60 anos da Rua José Pinheiro Alonso: sem saneamento básico e pavimentação, as valas transbordam, desde que terrenos vizinhos à rua foram aterrados, em 2005. A nova vala foi construída em frente às casas dos moradores, o que aumenta o risco de contaminação na água que eles bebem. “Cada morador está procurando colocar manilha na parte da vala em frente à sua casa para melhorar um pouco a situação”, relata Silvania, que não se lembra quando foi a última vez em que a prefeitura esteve no bairro: “Eles fizeram uma maquiagem: limparam, abriram a vala, cuidaram. Mas isso já tem muitos anos”.
O avanço do número de casos de covid-19 em Duque de Caxias assusta a população. O município chegou a junho com 250 mortes registradas – o segundo maior número atrás apenas da capital (3.578). A taxa de letalidade – numa cidade com 1502 casos – é de 16,6%, muito maior que a taxa estadual (10%) e mais do que o dobro da média nacional (7%). Apesar de a prefeitura não informar o número de casos por distrito, já foram confirmadas mortes em Campos Elíseos, como também em Imbariê, Xerém e no 1º distrito, onde fica a sede do município. A pandemia só aumenta a preocupação com a saúde numa área em que os moradores estão expostos permanente a outras doenças.
[g1_quote author_name=”Gustavo Gottardo” author_description=”Professor e morador de Campos Elíseos” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Vejo o lugar totalmente à margem do poder público. Vemos praças sendo feitas e refeitas, ruas que já são asfaltadas sendo novamente asfaltadas. É como se não existíssemos, como se não pagássemos impostos. O Poder Público não nos vê como cidadãos
[/g1_quote]Uma pesquisa feita em 2018 pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz, aponta contaminação humana e ambiental na área do Polo Industrial de Campos Elíseos: 33% das amostras apresentaram patologias e o resultado afirma que os moradores da região têm doenças relacionadas à exposição ao benzeno, um composto cancerígeno com evidências de que causa leucemia, que está na categoria 1 (quando há evidências suficientes de que o agente é carcinogênico para humanos) da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc).
De acordo com o Plano Municipal de Saneamento Básico de Caxias, entre 2012 e 2016, mais de 97 mil moradores do município tiveram doenças como hepatite viral A, leptospirose e diarréia, relacionadas à falta de saneamento básico. Duque de Caxias teve 133 internações por diarreia em 2018, de acordo com o Painel Saneamento Brasil do Instituto Trata Brasil – entre 2007 e 2015, de acordo com o instituto, o município registrou de 3,6 mil internações por diarréia, 2,4 mil por dengue e 212 por leptospirose, todas doenças relativas à falta de saneamento.
O professor de História Gustavo Gottardo, 38 anos, trabalha em escolas do estado e do município e mora em Campos Elíseos desde que nasceu, numa rua sem rede de esgoto. “Em 38 anos, poucas vezes vi a prefeitura na rua; e, mesmo assim, só pra capinar mato. A visita de agentes de saúde familiar e de agentes de combate a vetores também é rara. Até a coleta de lixo é irregular”, afirma o professor que, com a poeira permanente, sofre de rinite, que muitas vezes se transforma em bronquite.
São os próprios moradores do distrito que trabalham para manter a rua com mínima condições de habitação. Maria da Penha de Souza, 67 anos, dona de casa, capina a rua para ajudar no escoamento da vala de esgoto em frente à casa em que mora há 30 anos, na Rua José de Brito. Ela conta que são os moradores que limpam ou se mobilizam para contratar um serviço particular de limpeza da rua. Essa é a forma que eles encontram para tentarem se proteger de possíveis doenças causadas pelo esgoto a céu aberto. “Senão, o mato praticamente fecha a passagem, e bloqueia o escoamento do esgoto”, afirma, acrescentando que a rua consta como asfaltada na prefeitura.
Na rotina diária, os moradores redobram os cuidados com a higiene básica para se protegerem. Quanto ao risco de a água ser contaminada, utilizam produtos como enxofre para tratar a água do poço. “Não há muito mais o que fazer”, lamenta Gustavo, acrescentando que os moradores se sentem negligenciados. “Vejo o lugar totalmente à margem do poder público. Vemos praças sendo feitas e refeitas, ruas que já são asfaltadas sendo novamente asfaltadas. É como se não existíssemos, como se não pagássemos impostos. O Poder Público não nos vê como cidadãos”.
O Plano Municipal de Saneamento Básico de Caxias foi aprovado em dezembro de 2017, com vigência de 20 anos, e mostra que o segundo distrito representa 21% do território do município e abriga 31% da população, aproximadamente 360 mil pessoas. Algumas das promessas de campanha do atual prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis (MDB), eram relacionadas a saneamento básico e pavimentação. Em 2016, o então candidato, em entrevista ao site G1, prometeu pavimentar mais de 300 quilômetros de ruas da área urbana e rural do município, e buscar parcerias público-privadas para melhorar o saneamento básico da região. Quatro anos depois, as promessas não foram cumpridas.
Militante ambiental e morador de Campos Elíseos, Sebastião Braga lembra que foram feitas diversas reuniões de moradores com o poder público para buscar soluções para o saneamento básico da região. “O projeto já deveria estar concluído, porque houve liberação da verba para diversos municípios da Baixada Fluminense. Mas os moradores não veem nenhuma movimentação para iniciar o projeto”, lamenta.
Os secretários de Urbanismo e Habitação, Leandro Guimarães, e de Saúde, José Carlos de Oliveira, não retornaram aos contatos feitos pela reportagem.