Num país de bacharéis, o valor dos novos doutores

Investimento em pesquisa e extensão torna as universidades ainda mais relevantes para o futuro

Por Carla Rodrigues | ODS 4 • Publicada em 25 de maio de 2019 - 08:00 • Atualizada em 28 de junho de 2019 - 23:05

Estudantes universitários protestam contra o corte de verbas para a educação. Foto Cris Faga/NurPhoto
Estudantes universitários protestam contra o corte de verbas para a educação. Foto Cris Faga/NurPhoto

Um dos muitos argumentos em jogo na defesa da universidade pública contra os ataques empreendidos pelo atual governo está no fato de que, no Brasil, as universidades ensinam, formam e são também centros de pesquisas científicas. Essa combinação produziu a recente declaração: “O Brasil já tem doutor demais”, o que não deixa de ser verdade, se considerarmos a nossa tradição de bacharéis. A ligação entre pesquisa, ensino e extensão – atividades que são oferecidas pela universidade ao seu público extenso, ou seja, que está fora dela – não é trivial e torna a universidade ainda mais importante. No entanto, a tripla responsabilidade faz com que seja difícil perceber o que, no orçamento, é para formação – cursos de graduação voltados para qualificação de mão de obra no mercado de trabalho – e que uma parte muito significativa dos recursos é voltada para pesquisa científica.

Leia mais reportagens da série #100diasdebalbúrdiafederal

Um bom exemplo da dificuldade de explicar essa diferença entre formação e pesquisa pode ser dado com o caso de um médico que, tendo completado sua graduação em Medicina, decide continuar na universidade como pesquisador. Na faculdade – o que inclui a residência médica, os estágios etc – , o médico deve aprender a atender pacientes na sua especialidade, fazer diagnósticos, pedir e analisar exames e tudo mais que envolve o bom exercício da medicina. Quando decide fazer doutorado, o mesmo médico se dedicará a pesquisar um determinado problema científico – por exemplo, a cura do câncer – e, para esse processo, fará uma pesquisa de mestrado e doutorado, podendo, se a pesquisa assim exigir, passar um período numa instituição internacional onde haja pesquisadores com quem vá trocar informações e resultados. Também como resultado desse trabalho de pesquisa, pode haver um período de estágio pós-doutoral, um instrumento útil de intercâmbio de pesquisadores entre instituições nacionais ou internacionais, mas que chamo de estágio apenas para pontuar que pós-doutorado não é titulação, é mera continuação formal da pesquisa.

Na nossa tradição bacharelesca, já houve um tempo em que qualquer homem branco de terno e gravata devia ser chamado de “doutor”, máximo da reverência a uma “autoridade”. Hoje, é possível que um jovem negro, depois de ter feito pré-vestibular comunitário na favela da Maré, ter concluído uma graduação e um mestrado, esteja realizando uma pesquisa para ser doutor na sua área de atuação

Ao final do doutorado, o médico defende uma tese, significa dizer que apresenta por escrito os resultados de seu trabalho e se habilita, agora sim, a ser chamado de doutor.  Se, no senso comum, o médico já é chamado respeitosamente de “doutor”, porque haveria de cursar mestrado e doutorado para ser “doutor”? Porque é pela pesquisa que os tratamentos se modificam, que novas descobertas são feitas, novos medicamentos, outras abordagens para doenças e assim por diante. O que parece fácil de entender no exemplo da medicina é que nem sempre esse médico PhD irá optar por ser professor, embora isso possa ocorrer, mas é evidente para a maioria das pessoas que há mercado de trabalho para que ele exerça a medicina em hospitais e consultórios.

O mesmo não acontece em muitas outras carreiras nas quais o profissional que conclui uma pesquisa de doutorado seguirá trabalhando como pesquisador e como professor. Importante dizer que é assim não apenas nas ciências humanas, mas também nas exatas: um físico, um químico ou um biólogo são profissionais que podem ter doutorado em suas áreas e se manter na universidade. Para isso, serão necessariamente pesquisadores e professores. Salvo raras exceções – como em alguns centros de pesquisa na Unicamp –, para ser pesquisador é preciso ser professor, embora o contrário não seja verdadeiro, já que é possível apenas lecionar sem fazer pesquisa, dependendo da área de atuação e da universidade.

Apesar de todas as dificuldades, o Brasil tem um excelente acervo de teses e dissertações disponíveis on-line, em parte consequência do fato de que, já que essas são realizadas com recursos públicos, seus resultados devem estar disponíveis e acessíveis ao conjunto da sociedade. Além das iniciativas das próprias universidades de oferecer seus bancos de teses, uma plataforma da Capes permite a consulta de grande parte da produção nacional realizada em programas de pós-graduação no país. Convido leitores e leitoras a consultar ali qualquer tese de doutorado e se dedicar a ler a página de agradecimentos.

Além dos reconhecimentos protocolares, como agências de fomento, professores e instituições, o que aparece em qualquer página de agradecimento de uma tese de doutorado, não importa de que área for, é o quanto aquele trabalho foi realizado a partir da formação de uma rede que inclui professores, dentro e fora do Brasil, outros colegas de pesquisa, amigos, parceiros afetivos, sem os quais a pesquisa não teria sido realizada. Há quem agradeça ao psicanalista – tempos difíceis –, ao fisioterapeuta – horas e horas sentada no computador lendo e escrevendo – e até ao cardiologista, como foi o meu caso. Para além do objeto da pesquisa, o que um recém-doutor construiu foram laços para além dos seus vínculos originários, não a fim de  destruí-los ou ignorá-los, mas para ampliar sua inserção social e cultural além dos limites dados no seu percurso familiar.

Se pudermos compreender um doutorado nesse sentido mais amplo – uma pesquisa temática que forma um pesquisador, cujo mercado de trabalho muitas vezes é exclusivamente a docência e que alarga os horizontes de compreensão do mundo ou de pelo menos parte dele –, o Brasil ainda tem doutor de menos. Na nossa tradição bacharelesca, já houve um tempo em que qualquer homem branco de terno e gravata devia ser chamado de “doutor”, máximo da reverência a uma “autoridade”. Hoje, é possível que um jovem negro, depois de ter feito pré-vestibular comunitário na favela da Maré, ter concluído uma graduação e um mestrado, esteja realizando uma pesquisa para ser doutor na sua área de atuação. Significa dizer que, com seu diploma de doutorado, entre tantas coisas que se abrem no futuro, abre também a possibilidade de mudar o passado colonial de dominação dos bacharéis.

7/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância  das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil.

Carla Rodrigues

Professora de Ética do Departamento de Filosofia da UFRJ, mestre e doutora em Filosofia (PUC-Rio), e pesquisadora da teoria feminista. Coordena o laboratório "Escritas - filosofia, gênero e psicanálise" (UFRJ/CNPq). É autora, entre outros, de "Duas palavras para o feminino" (NAU Editora, 2013).

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *