Slam do Corpo: 10 anos de encontros entre surdos e ouvintes através da poesia

Primeiro evento em comemoração aos 10 anos reuniu surdos e ouvintes para batalhas de poesia em Ubatuba (Foto: Divulgação/Slam do Corpo – 06/04/2024)

Iniciativa pioneira em promover batalhas de versos estimula a produção artística em Libras e português

Por Micael Olegário | ODS 10 • Publicada em 16 de abril de 2024 - 09:41 • Atualizada em 18 de abril de 2024 - 17:29

Primeiro evento em comemoração aos 10 anos reuniu surdos e ouvintes para batalhas de poesia em Ubatuba (Foto: Divulgação/Slam do Corpo – 06/04/2024)

Poesias que rompem barreiras e aproximam pessoas, línguas e culturas. O Slam do Corpo, primeiro projeto de batalhas de poesia no Brasil com a participação de poetas surdos e ouvintes, completa dez anos em 2024. A iniciativa surgiu a partir do “Corposinalizante”, um grupo de trabalho do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, e da vontade de poetas surdos de externalizar sentimentos e urgências de sua cultura, invisibilizada durante grande parte da história brasileira.

O que a pessoa surda quer é liberdade de existência, empoderamento, poder viver de sua cultura e comunicação, para que possa exercer sua existência na sociedade

Leo Castilho
Poeta e surdo desde o nascimento

Diferente das batalhas de poesia tradicionais, no Slam do Corpo duas pessoas são responsáveis pela produção da poesia, feita ao mesmo tempo em português e na Língua Brasileira de Sinais (Libras). Dessa forma ocorre o chamado “beijo de língua”, termo usado para descrever o encontro entre as culturas de surdos e ouvintes.

Outro caráter particular do Slam do Corpo é o engajamento social e político, inerente à arte e aos slams, neste caso, principalmente em defesa dos direitos da comunidade surda. “O que a pessoa surda quer é liberdade de existência, empoderamento, poder viver de sua cultura e comunicação, para que possa exercer sua existência na sociedade”, conta o poeta e artista Leo Castilho, surdo desde o nascimento e um dos criadores do Slam.

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Para Leo, a arte é uma forma de resistência e de lutar com a invisibilidade histórica da cultura surda no Brasil. Desde os 10 anos de idade, ele começou a se envolver com o teatro e, ao longo de sua trajetória como “corpo no mundo”, já foi ator, modelo, dançarino e músico. Assim, em 2003, começou a fazer parte de um projeto para surdos do MAM e a ocupar diferentes espaços culturais e políticos, inclusive com a participação em diversas manifestações e intervenções urbanas. “Nós percebemos que essa intervenção na cidade precisava de uma linguagem poética, um manifesto artístico e poético”, recorda o artista. Era o primeiro passo para a criação do Corposinalizante e do Slam do Corpo.

Com o objetivo de celebrar a primeira década de existência do movimento, o Slam do Corpo está promovendo uma série de encontros em cinco cidades paulistas, com recursos do Programa de Ação Cultural (Proac) do governo de São Paulo. O primeiro evento foi realizado no sábado, 6 de abril, em um bar da Praça Exaltação da Santa Cruz, no centro de Ubatuba, no litoral paulista. Estão previstas batalhas de poesias com surdos e ouvintes também em Cananéia, Piracicaba, Campos do Jordão e na capital, ainda sem data e local definidos.

Foto colorida de evento do Slam do Corpo em Ubatuba. No canto esquerdo da imagem, Leo Castilho e Erika Mota estão de pé e olham para as pessoas na plateia, que estão sentadas. Ao fundo, algumas pessoas de pé assistem a apresentação.
Encontro do Slam em Ubatuba: batalhas de poesia do Slam do Corpo são feitas em português e Libras simultaneamente (Foto: Divulgação/Slam do Corpo – 06/04/2024)

Integração entre línguas e culturas

A intenção de intervir na cidade através da poesia surgiu a partir de influência do movimento zapatista e da atriz e poeta Roberta Estrela D’Alva, uma das principais responsáveis por introduzir a prática de slams no Brasil, o projeto começou a ganhar corpo. Leo também menciona a importância de duas artistas e educadoras: Joana Zatz e Cibele Lucena, ambas foram suas professoras no Museu da Arte Moderna e pesquisam sobre o tema.

É um texto construído por duas culturas, duas pessoas que se encontraram e trocaram entre si. É um processo muito rico, exatamente porque a gramática é diferente, o sentido é outro e a escolha da palavra é feita pelos dois

Érika Mota
Poeta e intérprete de Libras

Entender o contexto das pessoas é uma das chaves para produzir esse tipo de poesias, descreve Erika Mota, intérprete, poeta e dupla de Leo nas batalhas do Slam do Corpo. “Precisamos estar inseridas nesse contexto e universo que queremos traduzir. O Slam vem com essa proposta de promover encontros, daí traz suas urgências que são os motes das poesias”, explica ela. A partir disso surgem os temas que abordam a marginalização e invisibilidade das periferias e minorias sociais.

Erika usa a expressão “beijo de línguas” para sintetizar a ideia do encontro entre as pessoas poetas surdas e ouvintes. O termo foi usado originalmente pela educadora Cibele Lucena e considera as diferenças entre a Libras e o Português, duas línguas com gramáticas e estruturas de significado e sentido distintas. “É um texto construído por duas culturas, duas pessoas que se encontraram e trocaram entre si. É um processo muito rico, exatamente porque a gramática é diferente, o sentido é outro e a escolha da palavra é feita pelos dois”, complementa a poeta.

Leo Castilho destaca que a metáfora do “beijo” busca inspirar o olhar para detalhes da cultura da outra pessoa. “Na hora que o beijo acaba, que tem esse distanciamento, você não rouba a língua, você continua sendo você no seu espaço. Sem roubar o espaço da individualidade e das culturas”, explica o artista. Ainda de acordo com ele, essa é uma das formas de enfrentar preconceitos e estereótipos.

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) só foi reconhecida oficialmente em 2002, ou seja, durante muitos anos a forma das pessoas surdas se comunicarem foi marginalizada e até combatida. “Estamos falando do sofrimento histórico que as pessoas surdas passaram. Até o final dos anos 80, onde eu estudei, existiam relatos de pessoas que eram amarradas na sala de aula para não sinalizar, para oralizar”, conta Leo.

Diferenças que aproximam

Ao comentar sobre o primeiro evento dos 10 anos do Slam do Corpo, Erika explica que a utilização de espaços já reconhecidos como palcos de outros slams ajuda na divulgação e na participação do público. Sobre isso, Leo enfatiza a importância de levar a iniciativa para outras cidades e lugares de São Paulo.

Foto colorida de Leo e Erika em encontro do Slam do Corpo em Ubatuba. À esquerda, Erika é uma mulher negra com dreads no cabelo, ela usa uma blusa branca e uma calça preta. Erika sorri e olha para Leo. Á direita, Leo sinaliza com a mão direita enquanto segura um livro com a esquerda. Ele é um homem negro, com barba e cabelo preto curto. Ele uso um cropped preto e uma calça preta.
Leo e Erika formam dupla nas batalhas do Slam do Corpo: integração entre línguas e culturas ((Foto: Divulgação/Slam do Corpo – 06/04/2024)

Intérprete de Libras do Slam do Corpo, Claudia Ferreira foi a responsável por mediar a entrevista com Leo Castilho. No entanto, ela ressalta a diferença entre a tradução cotidiana e uma interpretação no espaço dos slams. “Não dá para você como intérprete, não ter uma escuta ativa com a pessoa poeta que vai estar ali, nem com a dupla que vai estar com você”. Claudia descreve esses momentos de batalha de poesia como uma junção de conhecimentos e entendimentos de língua e mundo, por isso, é preciso “estar com o coração aberto para entender essa troca”.

Leo Castilho defende exatamente essa união entre as culturas de pessoas surdas e ouvintes como uma forma de inclusão social e política. Ele contextualiza o histórico de lutas e celebra as conquistas que já foram alcançadas. “Já teve muito manifesto, já foram criadas escolas bilíngues”, pontua. Resta agora vencer outras barreiras, como a falta de incentivo à cultura surda.

Na visão de Erika, o exemplo do Slam do Corpo ter sido contemplado pelo Proac mostra a importância da acessibilidade em editais, que quase nunca possuem uma versão em Libras. Segundo Claudia, a língua de sinais pode ensinar muitas lições para a sociedade, uma delas é a não demarcação do gênero, o que contribui para que cada pessoa se identifique da forma que desejar. “A língua de sinais reverbera esse impacto nas pessoas”, destaca.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Escreve sobre temas ligados a questões ambientais e sociais, educação e acessibilidade.

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