Diário da Covid-19: Argentina tenta atravessar o pico

Um menino corre atrás de gansos em um parque de Buenos Aires depois que as autoridades permitiram que as crianças saíssem por uma hora para fins recreativos, de acordo com o número de identificação dos pais. Foto Alejandro Pagni/AFP

Brasil tem uma população 5 vezes maior do que a do vizinho do sul, mas possui 31 vezes mais pessoas infectadas pelo coronavírus e 44 vezes mais vítimas fatais

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 19 de maio de 2020 - 09:34 • Atualizada em 20 de maio de 2020 - 15:33

Um menino corre atrás de gansos em um parque de Buenos Aires depois que as autoridades permitiram que as crianças saíssem por uma hora para fins recreativos, de acordo com o número de identificação dos pais. Foto Alejandro Pagni/AFP

Depois de dois meses de fechamento quase total, a Argentina pode comemorar o feito de ter evitado uma explosão de casos e mortes pela covid-19, mas ainda tenta cruzar o pico da curva pandêmica e iniciar um processo de declínio consistente rumo ao controle do coronavírus. O contraste com o Brasil é evidente, pois, enquanto o maior país da América do Sul ainda está numa situação de descontrole, o nosso vizinho do rio do Prata está manobrando no caminho da contenção rumo à estabilização da pandemia.

A população da Argentina é cerca de 5 vezes menor do que a população brasileira, mas o Brasil tem 31 vezes mais pessoas infectadas e 44 vezes mais vítimas fatais. Ontem (dia 18/05), a Argentina teve 303 casos e 9 mortes em 24 horas, enquanto o Brasil teve 13,1 mil novos casos (43 vezes mais do que a Argentina) e 674 mortes (75 vezes mais do que a Argentina). O Brasil está em uma grande encrenca e o poder máximo da República não só não ajuda, como atrapalha muito.

Mas na Argentina o quadro é bem menos sombrio. Para entender a realidade dos nossos hermanos, vamos iniciar este diário com uma breve caracterização sociodemográfica e econômica, apresentar os dados da covid-19 na América do Sul e divulgar uma entrevista com o doutor em demografia Enrique Pelaez – ex-presidente da Associação Latino Americana de População (ALAP) – professor e pesquisador da “Facultad de Ciencias Económicas, Universidad Nacional de Córdoba” e do CIECS Conicet. Ele vai nos contar sobre as conquistas e os desafios nacionais, do nosso distinto vizinho do sul, na batalha contra a propagação da covid-19.

Breve panorama demográfico e socioeconômico da Argentina

A Argentina é o terceiro maior país da América do Sul.  Segundo a Divisão de População da ONU, o país de Maradona tinha uma população de 17 milhões de habitantes em 1950, chegou a 45,2 milhões em 2020 e deve atingir, na projeção média, 57 milhões de pessoas em 2100. A Argentina é um dos poucos países da América Latina e Caribe (ALC) que deve manter um crescimento contínuo até o final do atual século. O país do Papa Francisco tem uma pirâmide etária com alta proporção de pessoas em idade produtiva e que necessita de oportunidades no mercado de trabalho.

 

A tabela abaixo apresenta alguns indicadores demográficos para a Argentina, Brasil, América do Sul, ALC e o mundo. O país de Jorge Luís Borges sempre teve bons índices demográficos. Enquanto o mundo tinha uma mortalidade infantil (MI) de 140 por mil no quinquênio 1950-55, o Brasil tinha de 136 por mil e a Argentina tinha 57 por mil. No país de Mercedes Sosa, as taxas de fecundidade (TFT) eram mais baixas, a esperança de vida era mais alta e o Índice de Envelhecimento (IE) era de 22 idosos (60 anos e mais) para cada 100 jovens de 0 a 14 anos. Ou seja, o país de Aimé Paine começou a transição demográfica mais cedo e possui, no quinquênio 2015-20, indicadores demográficos mais próximos daqueles dos países de alta renda.

A Argentina era um dos países mais ricos do mundo na primeira metade do século XX. Mas nos últimos 40 anos o país de Carlos Gardel tem apresentado baixo dinamismo econômico, embora tenha conseguido manter uma renda per capita acima da média mundial e da média da América Latina. O gráfico abaixo mostra que o país de San Martin tinha uma renda per capita, a preços correntes, em poder de paridade de compra (ppp na sigla em inglês) de US$ 6,3 mil acima das rendas do Brasil (US$ 4,9 mil), da América Latina (US$ 4,7 mil) e do mundo (US$ 3 mil). Na virada do século, com a “crise do corralito”, a renda per capita argentina empatou com a do mundo e da ALC, se recuperou nos anos seguintes, mas mantém uma renda per capita estagnada depois do fim do “super ciclo das commodities”. Em 2019, a Argentina tinha uma renda per capita de US$ 20,4 mil, Brasil e ALC tinham US$ 16,6 mil e o mundo US$ 19,3 mil.

O rico país dos pampas não conseguiu demonstrar na economia a mesma velocidade de Manuel Fangio nas pistas. Com a crise sanitária gerada pelo coronavírus a situação ficou ainda mais difícil. O estudo da Cepal, “Dimensionar los efectos del COVID-19 para pensar en la reactivación” (21/04/2020), mostra que a pandemia da covid-19 pegou a ALC em um momento de debilidade macroeconômica, pois, no decênio posterior à crise financeira de 2008/09, o continente apresentou em média o menor crescimento desde a década de 1950.

A Cepal projeta um aumento do desemprego e da pobreza e uma redução da renda per capita de todos os países da região e estima uma queda do PIB, em 2020, de 5,3% na ALC, de 5,2% no Brasil, de 5,2% na América do Sul e de impressionantes 6,5% na Argentina. Evidentemente, quanto maior for o impacto da pandemia maior será o pandemônio econômico e maior será o sofrimento das populações afetadas.

Assim, é fundamental vencer a batalha contra o coronavírus. Quanto mais rápido a epidemia for eliminada, mais rapidamente o país vitorioso poderá voltar à ativa e reduzir os efeitos negativos do aumento do desemprego, da pobreza e da queda da renda média. Neste aspecto, o país de Che Guevara está em posição menos traumática do que o Brasil.

Dados sobre a Covid-19 no mundo, na América do Sul, no Brasil e no Uruguai

A América do Sul tem se tornado um enorme foco de propagação da pandemia do novo coronavírus. Considerando os 10 maiores países da região, a América do Sul com 5,5% da população mundial respondia no dia 18 de maio de 2020 por 9,4% do número de pessoas infectadas e por 7,5% das mortes globais. Mas o país com maior peso proporcional é o Brasil que tem 2,7% da população mundial, mas responde por 5,2% dos casos e das mortes da covid-19. A Argentina, com 0,6% da população mundial respondia em 18/04, por 0,2% dos casos e 0,1% das mortes. A tabela abaixo mostra que o país de Ástor Piazzolla está entre as 4 nações com os menores coeficientes de incidência e de mortalidade, com valores bem abaixo da média da América do Sul e da média mundial.

O Brasil está na liderança disparada dos maiores números de casos e de mortes, tendo um coeficiente de mortalidade 10 vezes maior do que da Argentina. Todavia, o maior coeficiente de incidência está no Peru com 2,9 mil casos por milhão de habitantes e o maior coeficiente de mortalidade está no Equador com 159 mortes por milhão de habitantes.  Portanto, o país do Quino e da Mafalda é uma das nações menos impactados pela pandemia do novo coronavírus no continente.

Os gráficos abaixo mostram a série histórica do número de casos e de mortes pela covid-19 na Argentina, no Brasil e no mundo. Nota-se três padrões diferentes. O país de Alicia Moreau de Justo já está caminhando para atravessar o pico da pandemia e iniciar a descida da curva. Parece que o número de casos já está diminuindo.  O máximo de vítimas fatais foi no dia 14 de maio com 24 óbitos, sendo que ontem (dia 18/05) houve 9 mortes.

Enquanto isto a pandemia avança no Brasil e o pico ainda não está à vista no horizonte. Na semana que passou, de 10 a 16 de maio, houve em todo o território brasileiro uma média de 11 mil casos por dia e 715 mortes por dia. O Brasil está no 4º lugar no ranking de casos da Worldometers e em terceiro lugar pelo ranking da Universidade Johns Hopkins. Mas caminha para, em breve, ser o segundo país mais atingido pela pandemia.

No mundo, a pandemia já chegou ao pico e agora começa a descer a curva. O número de casos globais atingiu o pico no dia 24 de abril com mais de 100 mil casos em 24 horas. Mas depois desta data o número de infecções diárias diminuiu, embora se mantenha em nível elevado. Já o número de mortes atingiu o pico no dia 17 de abril, com 8,5 mil mortes em 24 horas. Depois disto o número diário de óbitos vem caindo e chegou ao valor mais baixo, dos últimos dois meses, no dia 18/05, com 3.445 mortes em 24 horas.

A América Latina é o continente mais desigual do mundo e, no caso da pandemia do coronavírus, o Brasil está em um extremo e a Argentina no outro. O país de Lionel Messi está mostrando que é possível deter a doença da covid-19. Com esforço e determinação a Argentina está buscando minimizar o número de casos e de mortes desta ameaçadora epidemia.

Entrevista com o professor e demógrafo Enrique Pelaez sobre a pandemia na Argentina

Para entender melhor o que acontece na Argentina, apresentamos uma entrevista com uma testemunha ocular das ações realizadas pela população do país para afastar o perigo da covid-19 e garantir a proteção social necessária para este período de dificuldades.

Enrique Pelaez, professor e demógrafo argentino. Foto Arquivo Pessoal
Enrique Pelaez, professor e demógrafo argentino. Foto Arquivo Pessoal

Quando a Argentina percebeu a gravidade da pandemia e que medidas sanitárias foram tomadas pelo governo e pela sociedade civil?

Enrique Pelaez – Na Argentina, o primeiro caso de COVID-19 foi detectado no dia 3 de março e em 7 de março ocorreu a primeira morte. Em 4 de março, começaram as operações de prevenção no aeroporto Internacional de Ezeiza. Os voos vindos dos países de risco foram suspensos em 5 de março, e se solicita aos que chegavam desses países para permanecer isolados em suas casas por 14 dias. Em 10 de março se solicitou o isolamento voluntário das pessoas maiores de 65 anos. Em 12 de março foram proibidas reuniões de mais de 200 pessoas. Em 14 de março, as igrejas suspendem suas cerimônias públicas. Foi proibida a entrada de estrangeiros não residentes na Argentina que tenham estado em países de risco. Em 15 de março cinemas e teatros foram fechados e se determinou licenças para maiores de 60 anos e mulheres grávidas. Os torneios de futebol foram suspensos em 16 de março assim como os voos internos e viagens de ônibus de longa distância. Em 19 de março, com 31 casos confirmados e 3 mortes, o governo nacional decretou o isolamento social preventivo e obrigatório até 31 de março. As aulas foram suspensas. Em 26 de março se fecharam as fronteiras aéreas, marítimas e terrestres. O isolamento social foi estendido de 31 de março a 12 de abril e depois de 12 a 25 de abril; de 26 de abril a 10 de maio e de 11 a 25 de maio. Na última extensão, as permissões de movimento foram um pouco flexibilizadas nos distritos com poucos casos.

Como funcionou a quarentena (isolamento social) na Argentina?

Enrique Pelaez – Em geral, houve grande adesão, reduzindo a circulação de pessoas. Houve um grande erro no final de março, quando os pagamentos da previdência social e da aposentadoria foram feitos pelos bancos no mesmo dia. Naquele momento, havia muita gente concentrada nos bancos e foi um grande erro de logística. Nos meses seguintes, isso foi reorganizado e não aconteceu novamente. Observa-se que o grau de cumprimento é diferente em setores vulneráveis, onde é impossível permanecer trancado em residências sem as condições mínimas e com dificuldades no acesso aos serviços básicos. Nos últimos dias, tem preocupado o aumento de casos em bairros vulneráveis ​​da Grande Buenos Aires.

A Argentina possui um dos mais baixos coeficientes de mortalidade na América do Sul para o COVID-19 (8 mortes por milhão de habitantes). Como o sucesso pode ser explicado?

Enrique Pelaez – As medidas foram tomadas com antecedência e coordenadas entre o governo nacional e os governos provinciais. Apesar das grandes diferenças políticas entre o governo e a oposição, nesta oportunidade, diante da pandemia, o trabalho foi realizado de forma conjunta. De toda forma, ainda há tempo para considerar um sucesso. Nos últimos dias, a situação na Grande Buenos Aires preocupa, onde os casos têm se concentrado e onde a densidade populacional dificulta o isolamento social.

Existem medidas econômicas tomadas pelo governo para garantir que as pessoas mantenham sua sobrevivência?

Enrique Pelaez – Em primeiro lugar foi estabelecida uma ajuda financeira para os setores sociais mais desprotegidos, o IFE (Renda Familiar de Emergência), e um bônus foi dado aos aposentados. Posteriormente, foram estabelecidos empréstimos a taxa zero para monotributarios (trabalhadores por conta própria registrados) e empréstimos a taxa baixa para empresas para pagar salários. As demissões foram proibidas. As taxas de serviços públicos foram congeladas, um bônus foi dado ao pessoal de saúde. As empresas foram proibidas de cortar serviços básicos por falta de pagamento. O país está passando por um problema financeiro porque está renegociando a dívida externa adquirida em anos anteriores. Em 22 de maio se saberá se o país chegará a um acordo com os credores ou entrará em default, o que complicará o panorama econômico.

Quando e como o governo planeja encerrar a quarentena?

Enrique Pelaez – A quarentena atual termina em 25 de maio. De qualquer forma, o Presidente afirmou que para sair da quarentena o tempo de duplicação de casos na Argentina deve manter-se acima de 25 dias. Na última extensão, em 10 de maio, todo o país passou para a fase 4 de quarentena, exceto na região metropolitana de Buenos Aires, onde o tempo de duplicação dos casos era de 18 dias. A Fase 4, por outro lado, chamada Reabertura Progressiva, contempla proibições nacionais, exceções provinciais, mobilidade da população em até 75%, o tempo de duplicação dos casos deve ser estendido para mais de 25 dias e as restrições passam a ser locais.

Existem lições que você acha que a Argentina pode ensinar ao Brasil neste momento diante da pandemia?

Enrique Pelaez – Eu acho que era muito importante tomar medidas cedo e de forma coordenada entre os governos nacionais e provinciais. As autoridades foram claras ao priorizar a saúde. Afirmaram que o não cumprimento de medidas de isolamento prejudica a saúde e, também, a economia.

Como você e sua família estão lidando com esses 2 meses de quarentena?

Enrique Pelaez – Têm sido meses difíceis, todos se adaptando às atividades virtuais, cansativas devido ao número de horas na frente das telas e sem interação pessoal. Suprimindo muitas atividades que se gosta de fazer: esportes, caminhadas, passeios. De todas as formas, devido às comodidades e a situação econômica somos privilegiados diante de pessoas que não sabem se poderão se alimentar ou ter um pequeno jardim para tomar sol ou caminhar.

Frase do dia 19 de maio de 2020

“De todos los instrumentos del hombre, el más asombroso es, sin duda, el libro. Los demás son extensiones de su cuerpo. El microscopio, el telescopio, son extensiones de su vista; el teléfono es extensión de la voz; luego tenemos el arado y la espada, extensiones del brazo. Pero el libro es otra cosa: el libro es una extensión de la memoria y la imaginación”

Jorge Luís Borges (1899-1986)

Escritor, poeta e ensaísta argentino

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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2 comentários “Diário da Covid-19: Argentina tenta atravessar o pico

  1. Natalia disse:

    Vocês são muito chatos!!! Como dizem que o poder máximo da República do Brasil atrapalha?? Ele que está propagando o vírus por acaso?? Ele que está demitindo pessoas todos os dias?? Se toquem!!

  2. Francisco disse:

    Fico feliz em saber que nossa vizinha Argentina esteja podendo controlar esta epidemia que afeta todo nosso mundo e percebo que tiveram uma plano de controle muito bem elaborado para isso. Mas devemos notar que esta peste teve um alastramento proporcional à extensão territorial de cada país. Não podemos considerar informações a respeito da China e da Rússia, por serem regimes fechados e que não fornecem informações reais sobre suas situações. Mas o Brasil possui um território 3000 vezes maior que a Argentina e isto tem uma influencia fundamental no controle da epidemia. O mesmo ocorre quando consideramos a situação nos Estados Unidos, sendo este e o Brasil os maiores atingidos pelo Covid 19. O que não posso aceitar é a afirmação de que a culpa cabe ao nosso Governo Federal pois sabemos que por motivos de interesse pessoal/politico, os estados, em sua maioria sempre estiveram sabotando as ações do nosso presidente, o que culminou com uma ação inconstitucional tomada pelo STF, transferindo o controle do caso aos governadores e prefeitos, o que está facilitando a corrupção por não ser necessário efetuar licitações para compra do que quer que seja necessário para o combate à epidemia. Conhecemos perfeitamente a situação política de nosso país e como agem os que não querem no poder central um homem eleito com mais de 57.000.000 de votos.

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