Retrocesso político do Brasil espreita adoção de crianças por casais homoafetivos

Crescem os obstáculos para aprovação de leis que afastem obstáculos e assegurem direitos à população LGBT+. "Época de muito sectarismo", avalia o ex-ministro do STF Ayres Britto

Por Marina Louro | ODS 16 • Publicada em 11 de outubro de 2021 - 08:09 • Atualizada em 27 de outubro de 2021 - 08:08

Toni (à esquerda), Alysson e David em Ipanema: cruzada para conseguir um simples CPF. Foto arquivo pessoal

Uma década depois do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da união civil entre pessoas do mesmo sexo, o Brasil ainda patina na aprovação de leis que afastem os obstáculos para adoção de crianças por casais LGBT+. Advogados que militam no setor afirmam que o cenário político do país é desfavorável a qualquer avanço. “Estamos em uma época de muito sectarismo, intolerância, dicotomias e até retrocessos”, atesta o ex-ministro do STF Ayres Britto, sobre a aprovação de leis que assegurem direitos à população LGBT+. “A gente vive um momento de avanço do retrocesso”, ratifica a ex-juíza da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio e hoje desembargadora Andrea Pachá.

As perspectivas são desanimadoras. A magistrada receia que qualquer proposta legislativa alavancada em direção à concessão de direitos para a população LGBT+ seja sepultada. Para ela, a aprovação de leis que consolidem a adoção por casais homoafetivos está associada à inclusão de direitos. “Quando falamos de adoção por casais homossexuais, falamos de mais direitos, e não de menos direitos, porque não tiramos o direito de ninguém, só damos mais direito pros outros”, complementa.

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Em 2011, a Justiça reconheceu a união de casais homoafetivos como entidade familiar, possibilitando a adoção conjunta. A lei seria um recurso legal para assegurar os direitos à união estável e todas as suas implicações, independentemente do juiz responsável pelo caso ou do período histórico. Segurança para os casais terem o documento que comprove a união. “Estranho pra mim é viver numa sociedade que abandona crianças. Ter quem acolha não tem nada de estranho nisso”, sustenta Pachá. “O preconceito não é racional”.

Saulo Amorim, advogado e presidente da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas), defende ferramentas legais – emenda constitucional, alteração no Código Civil – para eliminar as dúvidas quanto à possibilidade de pessoas LGBT+ casarem e adotarem no Brasil. Ele pondera que os casais homoafetivos não podem ser impedidos de adotar enquanto a decisão do STF vigorar, mas nada garante que ela se mantenha em um novo Supremo ou governo. “Precisamos consolidar a decisão do Judiciário em leis na Constituição Federal. É um passo para que retrocessos não aconteçam”, prega.

O advogado comenta que os magistrados e integrantes conservadores do Ministério Público encontram respaldo no governo atual para atrapalhar os processos de adoção. “Eles não podem ir contra a decisão do STF que nos oferece o direito de ser família, mas podem atrapalhar ao engavetar processos, não cumprindo o tempo para analisar a papelada e apresentando parecer contrário”.

Francisco (à esquerda), Alexandre (de preto) e os três filhos: novela da Globo ajuda a naturalizar relação. Foto arquivo pessoal
Francisco (à esquerda), Alexandre (de preto) e os três filhos: novela da Globo ajuda a naturalizar relação. Foto arquivo pessoal

Redator da lei para LGBT+s previa dificuldades

Em conversa com os alunos de jornalismo da PUC-Rio, o ex-ministro Ayres Britto falou sobre os bastidores da decisão do STF de equiparar a união estável entre pessoas do mesmo sexo e de sexo diferentes, em 2011. “Nada pode ser objeto de diferenciação jurídica, a não ser quando o direito faz distinção para favorecer grupos sociais vítimas de preconceitos, como mulheres, negros, indígenas e homoafetivos”, ensina.

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Vale lembrar que, até 2011, a união estável era a que existe “entre o homem e a mulher”, segundo o artigo 1.723 do Código Civil. A definição, considerada reducionista, dificultava o processo de adoção para casais de pessoas do mesmo sexo, que não conseguiam, na maioria dos casos, comprovar um vínculo afetivo.

Britto diz que buscou afastar o reducionismo da letra da lei ao estender a aplicabilidade às uniões homoafetivas pelo princípio da interpretação análoga. No entanto, o texto do artigo 1.723 não deixa de fazer menção aos termos “homem” e “mulher”. Apesar de muitos comemorarem a decisão do congresso de 2011, para Saulo Amorim, a minoria social permanece sem direitos adquiridos. “Passaram-se dez anos, entraram três composições legislativas diferentes no Congresso e nenhuma delas conseguiu dar andamento a projetos de lei já apresentados para consolidar a adoção homoafetiva e pra mudar o Código Civil ampliando o conceito de família. Nada disso avançou. Pelo contrario”, analisa o advogado.

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Entraram três composições legislativas diferentes no Congresso e nenhuma delas conseguiu dar andamento a projetos de lei já apresentados para consolidar a adoção homoafetiva e pra mudar o Código Civil ampliando o conceito de família. Nada disso avançou. Pelo contrario

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É o caso do projeto de 612/2011, de autoria da senadora Marta Suplicy (sem partido), que visa a retirar as menções de gênero do artigo 1.723. Após o senador Magno Malta (PR-ES), da bancada evangélica, barrar o projeto, ele foi posto em votação, mas não houve quórum. Hoje, está arquivado. O ex-ministro Ayres Britto complementa lembrando que a sociedade brasileira é dominantemente conservadora nos costumes. “Só há bem estar de todos se vivermos em uma sociedade livre de preconceitos”.

Burocracia gera incerteza nas famílias

Em alguns casos, a burocracia demorada pode despertar dúvidas nos casais: seria uma demora também vivenciada por famílias heteroafetivas ou haveria LGBTfobia no processo? O professor e pós-doutor curitibano Toni Reis, 56 anos, narra a luta judicial para conseguir a guarda dos três filhos. Em 2005, antes da equiparação da união estável, ele e o marido, David Harrad, 63, deram entrada na Vara da Infância e Juventude de Curitiba, em busca da habilitação para adoção conjunta. Quase três anos depois, o juiz responsável pelo caso permitiu, mas restringiu a idade e o sexo das crianças: só meninas maiores de dez anos. “Depois de consultar amigos e especialistas, chegamos à conclusão de que a decisão foi discriminatória e recorremos ao Tribunal de Justiça”, relata o casal no texto “Família de fato, família de direito. Dois pais homoafetivos e três adoções necessárias”. Após inúmeras implicações judiciais, a decisão da ministra do STF, Carmem Lúcia, a favor, foi proferida em março de 2015, dez anos após o início do processo. “Uma demora judicial um tanto cruel, para nós e para as crianças à espera de adoção”, lamenta o professor.

No entanto, Toni e David não esperaram a decisão do STF para poder adotar em Curitiba. Viajaram ao Rio de Janeiro em busca do sonho de se tornarem pais e, em setembro de 2011, conheceram o menino Alysson, de 11 anos na época. Após a sentença favorável no mesmo ano, o casal decidiu emitir o novo RG do filho, agora com uma certidão de nascimento com o nome dos dois pais. Toni contou que a atendente não conseguiu fazer o documento, pois o nome da mãe não constava no sistema. Ocorreu o mesmo problema na emissão do CPF. “Nos Correios não foi possível fazer o CPF porque faltava o nome da mãe. Mandaram procurar a Receita Federal, onde o atendente também não conseguiu. Finalmente a chefe dele venceu a burocracia e emitiu o CPF do Alysson”.

A burocracia, por outro lado, tem papel importante quando aplicada igualmente a casais heteroafetivos e homoafetivos, de acordo com Andrea Pachá. Ela afirma que apesar de ser um processo complexo, o tempo é necessário para dar segurança, transparência e evitar a comercialização de crianças.

Para Toni, a decisão do Supremo, em 2011, ajudou a acelerar o processo, pois houve menos burocracia na adoção de seus dois filhos mais novos, Jessica e Felipe, em 2015. “Antes, o Judiciário não estava preparado, então tive que ir até o Supremo”, avalia.

O procurador da Infância e da Juventude Sávio Bittencourt acredita que o Judiciário está pronto para receber casais homoafetivos que desejam adotar. Ele garante não ter recebido relatos a respeito de discriminação por parte de juízes, procuradores e assistentes sociais. “Tenho visto que a orientação sexual dos pais não tem sido elemento de análise no momento da adoção”, anima-se.

Da mesma forma, Andrea Pachá, que atuou em Vara de Família por mais de 20 anos, desconhece o preconceito desses setores. A juíza comenta que eles vivem tão perto do abandono, que a tentativa é a de sempre encontrar uma família para a criança.

Riscos de rejeição

O primeiro contato dos pais ou mães com os filhos pode ser desafiador. Sávio Bittencourt afirma que já acompanhou casos em que a criança preferiu continuar no abrigo por se tratar de pais LGBT+s. Para ele, a aceitação dessa formação familiar pelo adotado depende da mudança de paradigmas e do comportamento da sociedade.

Alexandre Louzada e Francisco Anselmo, os dois de 43 anos, adotaram três irmãos, Patrick (17), Pablo (15) e Gabriel (12), em 2015. No início da convivência, os meninos perguntaram se os pais eram irmãos. “Explicamos que éramos casados e eles nos associaram a um casal gay que havia aparecido numa novela da Rede Globo. A ficção os ajudou a construírem a própria realidade”, relembra Louzada.

O processo de adaptação de Alysson, filho de Toni e David, demorou mais. O tempo serviu para que ele se acostumasse à ideia e aceitasse conhecer os pais homoafetivos. Quando o casal fazia a carteira de identidade de Alysson, Toni ouviu o menino dizer: “Sabiam que eu tenho nojo de homossexuais?” “Mais tarde retomamos essa conversa e falamos que havia nos ofendido, sobretudo porque sabia muito bem que éramos um casal gay antes de aceitar ser adotado por nós. Ele se desculpou e disse que falou aquilo devido ao que aprendeu em função das convicções religiosas dos abrigos e da família acolhedora”, recorda Toni.

Para o doutor em Psicologia pela PUC de Goiás Humberto César Machado, o preconceito está no adulto, e não na criança, que deseja apenas proteção, carinho, atenção e segurança independentemente de gênero ou orientação sexual. Para ele, a desconstrução social das ideias ocorre com o tempo e pode ser lenta.

Saulo Amorim, que além de advogado é fundador do grupo de apoio Cores da Adoção, concorda. “É preciso descontruir esse lugar binário de homem e mulher, de pai e mãe. Precisamos ser ambos responsáveis por aquela vida que nos foi atribuída, seja pela adoção ou pela biologia”, defende.

Toni e David (à direita) com os filhos, num casamento: família que tem o amor como alicerce. Foto arquivo pessoal

Sobre traumas do passado

No texto “Família de fato, família de direito. Dois pais homoafetivos e três adoções necessárias”, Toni e David relatam que Alysson sofreu maus tratos antes de ganhar uma família. Ele esteve em sete abrigos diferentes, mas fugia na tentativa de receber o acolhimento da mãe biológica. Revoltado, tinha de ser escoltado pela polícia para não fugir das audiências com a juíza responsável. ”Nos abrigos, a maioria mantida por organizações de base religiosa, Alyson conta que sofria repressão e castigos bastante desumanos: ficar de cabeça para baixo apoiado numa parede, ajoelhado em grãos de feijão e sem comer à noite”, narra o texto.

Devido ao histórico conturbado, Alysson era difícil no início da convivência. Por isso, os pais buscaram estabelecer limites, sempre levando em conta tudo que ele passou. O casal afirma que a adaptação é um processo para todos os envolvidos – ninguém muda o comportamento da noite para o dia. Assim como em uma família heteroafetiva, as dificuldades na relação podem surgir periodicamente.

Patrick, Pablo e Gabriel, filhos de Alexandre e Francisco, também têm histórico dramático. Os irmãos moravam no Jacarezinho, no Rio, e a mãe biológica era dependente de drogas. Após os dois mais novos pegarem pneumonia e o mais velho contrair tuberculose, os vizinhos chamaram o Conselho Tutelar e eles foram encaminhados a um abrigo. Lá, o irmão mais velho faleceu, mas os outros se recuperaram. Ficaram cinco anos dentro do sistema, sem receber a visita de nenhum familiar, até serem adotados. “Cada caso específico tem seu próprio desafio. No nosso, tivemos alguns problemas iniciais com nosso mais novo, que havia sofrido muito por contínuas rejeições. O trauma psicológico o levou a ser violento no início, mas com amor, limites e atendimento psicanalítico, ele ficou bem”, festeja Alexandre.

O dono de casa acredita que o desenvolvimento infantil não tem a ver com os papeis de gênero. Para Alexandre e Toni a ausência de uma mãe não prejudicou seus filhos. Toni afirma que as crianças cresceram com amor, carinho e afeto. Ele conta que Jéssica e Felipe tiram boas notas na escola, e que Alysson estuda Educação Física. Além disso, os três escrevem para seus blogs pessoais e Alysson tem dois livros publicados: “Jamily a holandesa negra: a história de uma adoção homoafetiva” e “Kayke o menino transformado”.

Ou, como está no texto de Toni e David:

“Que viva a família de todas as cores e todos os amores.

Que viva a família de fato e de direito.

Entre perdas e ganhos, entre orgulho e arrependimento, sobrou amor e realização.

Valeu a pena. Muitas emoções, pouquíssimas decepções, e muito, muito entusiasmo de escolher o que somos e fazemos.”  

Marina Louro

Marina Louro é carioca e estudante de Jornalismo da PUC-Rio. Acredita na informação como via de transformação social, porque uma história pode impactar milhares de vidas. Apaixonada pela diversidade humana, tem interesse por pautas relacionadas a cultura, comportamento e inclusão.

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