Como o plástico dos oceanos pode espalhar doenças pelo mundo

Lixo marinho está virando o lar de micro-organismos perigosos. Pesquisadores temem as consequências desse fenômeno na saúde humana e do planeta

Por Diálogo Chino | ODS 14 • Publicada em 20 de março de 2024 - 11:01 • Atualizada em 22 de março de 2024 - 09:13

Pescadores em praia altamente poluída no Senegal, na África Ocidental. Foto Joerg Boethling/Alamy

(Por Anna Napolitano*) – As imagens de praias paradisíacas soterradas por garrafas PET e as cenas de animais marinhos nadando ao lado de sacolas descartáveis revelam como o vício da humanidade em plástico polui os ecossistemas marinhos. Porém, um problema menos visível está despertando a atenção de cientistas: os micro-organismos que colonizam as milhões de toneladas de plástico no oceano. Esses seres microscópicos podem representar uma grave ameaça aos animais, incluindo os humanos.

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“Introduzimos um nicho completamente novo de substratos, que serviu de berço a várias comunidades de micro-organismos”, explica Dick Vethaak, professor aposentado de ecotoxicologia (o estudo de como as toxinas afetam os organismos e os ecossistemas) da Universidade Livre de Amsterdã, na Holanda. “Considero isso uma bomba-relógio de plástico — o terreno para a próxima pandemia”.

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Diversos cientistas ao redor do mundo compartilham essas preocupações.

Plástico espalhado pelo oceano

O plástico está presente em todos os lugares analisados até agora no ambiente marinho: há desde fragmentos microscópicos incrustados no gelo do Ártico a sacolas nas profundezas dos oceanos. Também foram encontradas partículas de plástico em todos os animais marinhos estudados.

A maioria desses resíduos ingressa no oceano a partir do ambiente terrestre, e acredita-se que os rios sejam a principal fonte de contaminação. Após os resíduos entrarem na água, o vento, as ondas e os raios de sol quebram e moldam o material, gerando fragmentos cada vez menores.

Sob a chancela da Organização das Nações Unidas (ONU), estão sendo criadas regras juridicamente vinculantes para acabar com a poluição de plástico. Até agora, o progresso tem sido difícil, e o resultado ainda é incerto.

Para agravar o problema, especula-se que o setor de combustíveis fósseis possa migrar para a produção de plástico.

“O setor vê o plástico como seu plano B: se não puderem usar combustíveis fósseis como fonte de energia, eles os usarão para a produção de plástico”, diz Bethanie Carney Almroth, professora de ecotoxicologia e ciências ambientais da Universidade de Gotemburgo, na Suécia.

Integrante das negociações para o tratado sobre plástico da ONU, Carney teme o aumento de sua produção: “Já temos muito plástico, o planeta e as sociedades humanas não podem tolerar ainda mais”.

A professora explica que os micro-organismos proliferados no lixo marinho são a mais nova ameaça na extensa lista de perigos apresentados pelos resíduos plásticos.

Bem-vindo à plastisfera

Os mares são o lar de uma enorme variedade de micro-organismos. Cientistas que conduziram um estudo sobre os recifes de coral do Oceano Pacífico, concluído no ano passado, ficaram tão surpresos com a quantidade de micróbios identificada nesses ambientes que sugeriram revisar para cima as estimativas da diversidade microbiana da Terra.

Madeira, metal e qualquer outro material à deriva no mar são rapidamente colonizados por esses seres microscópicos. E o plástico, praticamente onipresente no oceano, se tornou seu novo lar.

Em 2013, a microbiologista marinha Linda Amaral-Zettler e seus colegas cunharam o termo “plastisfera” para descrever as camadas de organismos que encontraram em amostras de plástico no Giro do Atlântico Norte — uma das cinco principais correntes oceânicas circulantes da Terra, que aglutinam o plástico flutuante em grandes manchas de lixo.

Segundo o estudo, as comunidades de micróbios que vivem em detritos plásticos são diferentes das que vivem nas águas próximas, “o que significa que o plástico serve como um novo habitat ecológico em mar aberto”.

O plástico também perdura por muitos anos, permitindo que as comunidades microbianas em sua superfície percorram longas distâncias, levando espécies para muito além de seu habitat natural. Eles também podem se fragmentar em pequenos pedaços que se acumulam nos corpos dos animais, inclusive daqueles destinados ao consumo humano.

Impactos à saúde do planeta

As plastisferas são motivo de preocupação para o meio ambiente de todo o planeta. Por meio do projeto MicroplastiX, uma equipe de pesquisadores estuda as formas pelas quais as camadas de micro-organismos, chamadas biofilmes, crescem em plásticos nos oceanos Mediterrâneo e Atlântico Norte. “No Golfo de Nápoles, área densamente urbanizada, uma grande variedade de algas, invertebrados e fungos cresce em todos os microplásticos analisados”, conta Raffaella Casotti, uma das ecologistas marinhas responsáveis pelo projeto.

Plástico flutua no Mar Mediterrâneo. Foto Ilan Rosen/Alamy
Plástico flutua no Mar Mediterrâneo. Foto Ilan Rosen/Alamy

Embora a maioria dos micro-organismos detectados na plastisfera do Mediterrâneo seja inofensiva, os pesquisadores também encontraram a bactéria Vibrio em concentrações mais altas no plástico do que nas águas circundantes. Alguns tipos de bactérias do gênero Vibrio são conhecidos por causar doenças em moluscos e nos seres humanos que os consomem.

A equipe de Casotti também fez um teste em invertebrados marinhos: alimentou ouriços-do-mar com plástico puro ou plástico carregado de biofilme. Aqueles alimentados com o plástico colonizado apresentaram uma resposta imunológica significativamente mais forte. “A presença de uma plastisfera não os mata, mas leva a uma reação de seu sistema imunológico”, explica Casotti. “Nossa hipótese é que a presença de micro-organismos no plástico pode afetar a reprodução dos ouriços-do-mar”.

Em estudos realizados tanto em laboratório quanto na natureza, cientistas descobriram que os microplásticos colonizados afetam uma infinidade de espécies. Eles causam problemas que vão desde prejuízos na alimentação, na reprodução e no estado físico de corais e bivalves, um tipo de molusco, até doenças em criadouros destinados à aquicultura.

Plásticos em animais maiores

Os microplásticos não são encontrados apenas em ostras, mexilhões e outros bivalves que os consomem diretamente de águas rasas.

“Encontramos microplásticos em espécies de águas superficiais, médias e profundas, como moluscosalbacora e lula-vampira-do-inferno”, diz Anne Justino, pesquisadora brasileira da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Seu trabalho revela que a transferência de microplásticos para predadores oceânicos ocorre quando eles comem presas contaminadas, em vez de ingerir diretamente os detritos.

A equipe de Justino, que também está envolvida no projeto MicroplastiX, agora trabalha com as indústrias de pesca para avaliar o nível de contaminação por microplásticos nos músculos dos peixes — principal parte consumida pelos seres humanos.

Atualmente, os pesquisadores não sabem ao certo como se dá a exposição humana a esses plásticos e quais são as consequências disso para a saúde.

De qualquer forma, já há um processo que se mostrou eficaz na remoção de alguns microplásticos acumulados em frutos-do-mar, reduzindo potenciais impactos à saúde humana: a depuração. Por meio desse método, os animais são colocados em água limpa para tentar eliminar os contaminantes de seus sistemas digestivos.

Mas acredita-se que, mesmo assim, as plastisferas oceânicas podem gerar problemas de saúde aos seres humanos.

Karen Shapiro, especialista em zoonoses transmitidas pela água da Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos, mostrou que parasitas microscópicos como o Toxoplasma gondii podem rapidamente formar colônias em detritos plásticos. Esse parasita costuma viver dentro de frutos-do-mar e poderia infectar humanos que os consomem crus. Estudos preliminares do grupo de Shapiro e outros cientistas revelam que o Toxoplasma gondii pode sobreviver em resíduos plásticos por vários meses.

Shapiro acredita que a plastisfera pode estar levando os patógenos para áreas onde, de outra forma, eles não estariam. No entanto, ela é cautelosa em suas conclusões: “Sabemos que as plastisferas entram em nossos corpos, mas ainda não entendemos o que elas fazem conosco. Não temos evidências que mostrem a relação direta do consumo de microplásticos colonizados e dos efeitos na saúde das pessoas”.

Superbactérias no plástico

As plastisferas também podem abrigar um tipo de micro-organismo letal: as superbactérias. O uso de antibióticos em criadouros de peixes poderia gerar um efeito rebote e promover o surgimento de bactérias resistentes em ambientes marinhos. Esses organismos imunes a antibióticos poderiam fluir para os oceanos por meio de estações de tratamento de águas residuais.

Plástico flutuante pode levar patógenos aonde esses micro-organismos não alcançariam normalmente. Foto Alamy

Em 2021, pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Nova Jersey, em Newark, observaram que microplásticos presentes em moluscos hospedaram bactérias resistentes a antibióticos. Além disso, os cientistas perceberam que essas superbactérias podem sobreviver por mais tempo em microplásticos do que flutuando livremente. Pesquisadores sul-coreanos também encontraram genes resistentes a antibióticos ao analisar comunidades microbianas que vivem em meio ao plástico do Giro do Pacífico Norte.

Ainda é difícil encontrar uma correlação direta entre a plastisfera e as infecções resistentes a antibióticos em humanos. “A única maneira de provar definitivamente que a plastisfera contribui para o surto de doenças”, diz Dick Vethaak, “é avaliar o risco para a saúde humana de patógenos associados ao plástico em populações que vivem próximas a áreas altamente poluídas e com a ocorrência de epidemias”.

Ele acredita firmemente que “os detritos plásticos podem servir como um vetor para a disseminação de doenças e micro-organismos resistentes a antibióticos em áreas de desastre [como zonas de guerra e regiões atingidas por condições climáticas extremas] com altos níveis documentados de plástico”.

Alto custo do plástico barato

Enquanto pesquisadores se esforçam para entender o verdadeiro risco da plastisfera, uma coisa é certa: a eliminação de qualquer risco exige um esforço global coordenado para acabar com a poluição plástica. Isso garantiria que esses novos ecossistemas baseados em plástico não ficassem conosco para sempre, que as profundezas do oceano não abrigassem sacolas plásticas e que as praias um dia ficassem livres de garrafas descartadas e dos micróbios que elas carregam.

A ecologista Raffaella Casotti teme que um dia possa encontrar um patógeno realmente perigoso à saúde humana em suas amostras de plástico.

“Se o preço de cada garrafa de água refletisse seu impacto real sobre nossa saúde, isso custaria ao consumidor pelo menos cem euros”, diz ela. “E você pensaria duas vezes antes de jogá-la fora”.

*Anna Napolitano é jornalista científica. Ela cobre temas que vão de ciência e saúde a meio ambiente e oceanos. 

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