Profetas das chuvas sentem efeitos da crise climática: ‘natureza pede socorro’

A profetiza Narcisa da Silva, nas margens do açude Cedro: águas baixando e borboletas desaparecendo. Foto Arquivo Pessoal

Habituados a fazer previsões no Semiárido, sábios locais já percebem mudanças no comportamento dos animais, na força dos ventos e na temperatura

Por Adriana Amâncio | ODS 13 • Publicada em 5 de dezembro de 2023 - 07:21 • Atualizada em 12 de dezembro de 2023 - 12:06

A profetiza Narcisa da Silva, nas margens do açude Cedro: águas baixando e borboletas desaparecendo. Foto Arquivo Pessoal

Todos os anos, no mês de dezembro, o profeta da chuva José Erasmo Barreira, de 76 anos, do Distrito Cipó dos Anjos, em Quixadá, no Semiárido cearense, busca na mata um tatu fêmea prenha. Encontrar esse animal de barriga é um sinal de que o inverno vai ser bom: “Hoje, encontrar um tatu é muito difícil. As coisas mudaram muito”, reclama o sábio.

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Seu Erasmo sucedeu o seu pai como profeta da chuva no início dos anos 70, quando aprendeu a criar intimidade com a natureza. Sua missão é orientar a plantação dos agricultores, prevendo as chuvas e outros fenômenos climáticos. Ao longo de anos descobriu como acompanhar o curso dos ventos, o nascer e o pôr do sol, a disposição das estrelas, o comportamento de determinados animais e com isso, prever, a cada ano, se o inverno seria bom ou não. Em 1998, com a morte do pai, assumiu de vez as previsões, dando continuidade à tradição.

A história desses profetas se confunde com a trajetória de adaptação das famílias agricultoras às características climáticas da região, onde as chuvas, que variam entre 300mm e 700mm, se concentram em apenas quatro ou cinco meses do ano. De tão íntimos da natureza, eles já percebem os efeitos das mudanças climáticas e têm buscado adaptar suas observações.

A profetiza Francisca Narcisa da Silva, de 52 anos, moradora do Bairro Campo Velho, também em Quixadá, no Ceará, realiza previsões há dois anos. Ela, que sempre auxiliou o pai, este ano começou a atuar sozinha. Uma das suas experiências de previsão das chuvas envolve observar as borboletas amarelas, que costumam chegar aos montes à beira do açude Cedro, que fica na área rural do município: “Nesses meses, a gente observa se as abelhas vão pousar na água e sair rápido, o que indica que o inverno vai ser bom.

Narcisa explica que se as abelhas pousam e permanecem na água é sinal de que o inverno vai ser de poucas chuvas. “Elas gostam de ambientes quentes, então, se ficarem, é sinal de inverno seco”, esclarece em tom didático. Desta vez, ela enfrentou dificuldades com essa experiência, pois além das borboletas não comparecerem no período esperado, o açude vem perdendo cada vez mais o seu volume de água. “Cada vez que eu vou observar, ele está mais longe. Está secando”, explica.

O profeta Erasmo Barreira, de 76 anos, segura a casa do pássaro Maria de Barro, mais conhecido como João de Barros, que o ajuda na previsão das chuvas. Foto Arquivo pessoal
O profeta Erasmo Barreira, de 76 anos, segura a casa do pássaro Maria de Barro, mais conhecido como João de Barros, que o ajuda na previsão das chuvas. Foto Arquivo pessoal

Tanto Erasmo quanto Narcisa passam meses observando os sinais da natureza para, no mês de janeiro, compartilharem os resultados das suas previsões. Em julho, o profeta observa se as flores do pé de Cumarú seguram o fruto. “Se você olhar e ver que tem mais flor do que fruto, o inverno vai ser fraco”, explica. Ele também vai em busca da casa do pássaro Maria de Barro, uma ave típica da Caatinga, mas que é comumente conhecida como João de Barros. “Se ela fizer a porta da casa virada para o sol poente, tem inverno, agora, se a porta for construída para o nascente, nem espere pela chuva”, informa. O sol poente indica que o período chuvoso vai encontrar caminho para reinar.

A habilidade de identificar os sinais da natureza é adquirida, após anos e anos de observação. Muitos desses profetas são iniciados nestas experiências pelos pais ou pessoas mais velhas. A atividade exige concentração e esforço. Narcisa conta que, como de costume, acordou na madrugada do último dia 20 de outubro para observar o curso do Vento Norte. A ideia desta experiência é observar se esse vento chega com intensidade, sinalizando chuva.

“Eu acordei à meia noite, fiquei uma hora e meia esperando, mas não senti o vento chegar. Após muito tempo, ele chegou, lento, sorrateiro, sinal de que não deve chover muito”, analisa Narcisa. O Vento Norte é uma corrente de vento que sopra do Sul na direção do Norte, sempre no mês de outubro. Muitos consideram que ele traz as chuvas. Para os profetas, se ele chegar por volta da 1h30 da madrugada com intensidade, é sinal de inverno com chuva. Mas isso não aconteceu este ano, quando, na verdade, como contou narcisa, ele demorou e quando chegou foi fraco e sorrateiro.

Mesmo com todas as dificuldades impostas pelos avanços da crise climática, Erasmo e Narcisa indicam que as análises realizadas até o momento sinalizam que o próximo inverno será de chuvas, mas não com intensidade. Eles afirmam que dependem de outras observações, a serem realizadas no mês de dezembro, para completar as previsões.

Os efeitos do El Niño

Usando outro método científico, o professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), Humberto Barbosa, identificou os mesmos problemas que os profetas: pouca chuva e aumento da temperatura.

Ele explica que essa previsão preliminar é resultado do impacto do El Niño e da erupção do vulcão Hunga Tonga-Hunga Ha’apai, em janeiro de 2022, na Indonésia.  A erupção injetou umidade na estratosfera, segunda maior camada da atmosfera terrestre.  “O planeta está mais quente, o que leva a diminuição de chuva no lugar onde chove menos, justamente o caso do Semiárido”, explica.

Barbosa conta que é preciso esperar até dezembro, pois quanto mais próximo da chegada do inverno se realiza as previsões, maiores são as chances de ser assertivo. Geralmente, o inverno no Semiárido ocorre entre os meses de janeiro a junho ou fevereiro a maio. “Até o momento, vamos ter redução de chuva e aumento da temperatura. A nossa esperança é que essa massa de ar seco e as altas temperaturas que dominam o Atlântico Sul se dispersem para mudar esse quadro,” explica.

O pesquisador observa que “tanto os cientistas comprometidos com o meio ambiente, quanto os profetas da chuva, há tempos, alertam para o avanço dos efeitos das mudanças climáticas”. Para ele, já está claro que as mudanças do clima não são problemas apenas ambientais, mas “econômicos, sociais e de saúde pública”, complementa.

Com os períodos chuvosos mais intensos, aumenta o volume de doenças, os preços dos alimentos sobem e as pessoas que ainda não têm acesso à água ficam ainda mais vulneráveis às enfermidades. Essa é a razão pela qual ele defende que a sociedade e o poder público se organizem para conter esses efeitos. “Ano que vem é um ano eleitoral. Muitos políticos costumam usar isso como argumento político para ganhar votos. Eu espero que, tanto a sociedade quanto o poder público escutem a ciência e os profetas e ajam para conter o avanço dos efeitos das mudanças climáticas”, conclui.

Quando esperou pelas borboletas às margens do açude Cedro e elas não chegaram, Narcisa conta que anotou o que viu e chegou a uma conclusão: “a natureza pede socorro.” Ela afirma que pretende repetir a experiência no ano seguinte para confirmar se, de fato, houve uma mudança no comportamento dessa espécie. “Eu acredito que tudo isso seja porque se está produzindo muito lixo, fazendo queimadas, o homem está provocando isso”, opina.

Sempre no dia 6 de janeiro, os profetas do Semiárido se reúnem para compartilhar o resultado das suas observações no Encontro de Guardadores de Sementes e de Experiência, em Orós, no Ceará. Há trinta anos, esse evento se repete e além de ser um momento de confraternização e valorização da prática, é bastante esperado por centenas de famílias que guiam as suas plantações pelas sábias palavras dos profetas.

Em tempo: O cientista, referência em estudos sobre aquecimento global, Carlos Nobre, previu, em entrevista ao portal Brasil 247, que “o Nordeste sofrerá uma seca intensa entre fevereiro e maio de 2024”. Ele atribui essa previsão às fortes temperaturas no Oceano Atlântico ao Norte da linha do Equador, que também foram responsáveis pela seca na Amazônia.

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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