El Niño provoca recordes de calor em 2023 e pode prolongar inflação dos alimentos

Uma mulher corre no nascer do sol em Tempe Town Lake, no Arizona. Há 12 dias a região registra recordes de calor em torno de 43º Celsius. Foto Rebecca Noble/ Getty Images via AFP. Julho/2023

Sonho de um desenvolvimento humano sustentável está cada vez mais distante, sinais são de aumento de catástrofes em uma sociedade de risco

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 13 • Publicada em 17 de julho de 2023 - 09:52 • Atualizada em 22 de novembro de 2023 - 18:40

Uma mulher corre no nascer do sol em Tempe Town Lake, no Arizona. Há 12 dias a região registra recordes de calor em torno de 43º Celsius. Foto Rebecca Noble/ Getty Images via AFP. Julho/2023

O clima do Planeta está alcançando um terreno desconhecido pela humanidade. O Homo sapiens surgiu há cerca de 200 mil anos e a civilização humana floresceu nos últimos 12 mil anos, durante o Holoceno, quando a estabilidade climática foi um elemento essencial para o progresso social e civilizacional. O gráfico abaixo, do Instituto Berkeley Earth, mostra que a temperatura da Terra tem aumentado sistematicamente mês após mês e ano após ano, sendo que o mês de junho de 2023 foi a variação mensal mais elevada, para essa época do ano, desde que começaram os registros históricos. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, afirmou no dia 07 de julho que as alterações climáticas estão fora do controle e que o mundo caminha para uma “situação catastrófica”.

Leu essa? Uma bacia de gelo e um ventilador a bateria contra a onda de calor

A temperatura média global em junho de 2023 foi de 1,47 ± 0,09° Celsius acima da média do período de referência. Isto é, a temperatura de junho ficou no intervalo entre 1,38º C e 1,56º C acima da média de 1850 a 1900, que é frequentemente usada como referência para o período pré-industrial. A anomalia da temperatura média global em junho de 2023 exibiu um aumento significativo em relação a maio de 2023, subindo mais de 0,15° C. Assim, tudo indica que o limite de 1,5º C estabelecido pelo Acordo de Paris deve ser ultrapassado em julho de 2023.

De fato, se os recordes de temperatura descritos acima assustaram os cientistas do clima e a comunidade internacional, os primeiros registros de julho aumentaram em muito o temor de um descontrole climático. O gráfico abaixo, da página online Climate Reanalyzer, da Universidade de Maine, nos Estados Unidos, apresenta as curvas médias da temperatura global para cada dia do ano, desde 1979. Nota-se que a temperatura global média jamais havia excedido a marca de 17º Celsius.

Mas este limiar foi ultrapassado em julho de 2023. Na segunda-feira, 3 de julho, a curva atingiu o pico de 17,01°C. Na terça e na quarta-feira a temperatura chegou a 17,18° C. Na quinta-feira, dia 06/07, novo recorde foi atingido com a temperatura média chegando a 17,23° C. Nos dias seguintes a temperatura oscilou ligeiramente para baixo, mas no dia 10 de julho ainda estava em 17,12º C.

Portanto, os primeiros 10 dias de julho apresentaram temperaturas excessivamente elevadas. Segundo a climatologista Karsten Haustein, da Universidade de Leipzig: “As chances são de que julho seja o mês mais quente de todos os tempos: desde ‘sempre’ significa desde o período Eemiano, há cerca de 120.000 anos”, declarou a cientista em reportagem da rede britânica BBC (04/07/2023).

Estes recordes de temperatura estão sendo potencializados pelo evento climático El Niño. Segundo os cientistas do Centro de Previsão Climática da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, o aquecimento incomum das águas superficiais nas porções centrais e leste do Oceano Pacífico (fenômeno conhecido como El Niño) começou no dia 08 de junho de 2023. Desta maneira, diversas partes do mundo estão sendo atingidas por alterações climáticas e novos recordes de temperaturas.

É alta a probabilidade de 2023 se tornar o ano mais quente da série histórica. O aumento da temperatura diminui a área e o volume do gelo dos polos, acidifica as águas dos oceanos prejudicando a vida marinha, intensifica os furacões e ciclones, aumenta as inundações e secas, afeta a produção de alimentos e gera trilhões de dólares de prejuízo à economia global.

Gelo marinho na Antártida atingiu mínimos históricos

A comunidade científica está perplexa não só com o aquecimento global, mas também com a baixa cobertura de gelo marinho na Antártida que está muito abaixo do normal, desde o começo das observações por satélites em 1979. No início de março de 2023, escrevi o artigo “O recorde de degelo da Antártida e o fim das praias do Rio de Janeiro”, aqui no # Colabora (Alves, 13/03/2023), mostrando que a cobertura de gelo marinho na Antártida, no verão do hemisfério sul, registrou o menor nível desde que tiveram início as medições por satélite em 1979.

Mas o que estava ruim no verão, piorou no inverno. Cientistas do NSIDC (Centro Nacional de Gelo e Neve dos Estados Unidos) destacaram que o gelo marinho na Antártica atingiu uma extensão de 12,65 milhões de km2, no dia 10 de julho de 2023, estabelecendo o novo recorde mínimo da série para esta época do ano, quase 3 milhões de km2 abaixo da extensão média do gelo da Antártida do período 1981 a 2010. O gráfico abaixo mostra as anomalias do gelo do mar antártico e confirma uma triste realidade: nunca houve um ano tão atípico quanto 2023.

A Antártida é um regulador importante do clima global. O derretimento do gelo marinho pode ter consequências significativas, afetando habitats de muitas espécies, incluindo baleias, pinguins e focas, além de gerar mudanças na salinidade dos oceanos que afetariam toda a vida marinha. Além de aumentar o nível dos mares, o derretimento do gelo pode afetar a circulação oceânica e atmosférica, o que teria impactos significativos no clima global. O aquecimento global aumenta o degelo da Antártida e, devido ao efeito de retroalimentação, a menor cobertura de gelo eleva as temperaturas médias do Planeta.

A crise climática deve prolongar a inflação dos alimentos

O desequilíbrio climático provocado pelo El Niño e pelo degelo da Antártida potencializa as tempestades, as inundações, as secas, as queimadas e causam graves perturbações na pesca, agricultura e outros setores da economia. Em 2016, o El Niño contribuiu para o ano mais quente já registrado. Tudo indica que novos recordes irão ocorrer em 2023 e as onda letais de calor podem aumentar o número de vítimas ao longo do século XXI. Artigo publicado na revista Nature Medicine (Joan Ballester, 10/07/2023) constatou que mais de 70.000 mortes em excesso ocorreram na Europa durante o verão de 2003 em decorrência das altas temperaturas.

Matéria da agência alemã DW (Nik Martin, 18/06/2023) mostra que os impactos econômicos das temporadas anteriores do El Niño muitas vezes continuaram mesmo depois de passarem as condições climáticas mais extremas. Depois do El Niño de 1982-1983, os efeitos financeiros foram sentidos por mais meia década, totalizando cerca de 4,1 trilhões de dólares.

Na temporada de El Niño de 1997-1998, os danos ao crescimento econômico global foram de 5,7 trilhões de dólares. Países como Peru e Indonésia, onde a agricultura representa até 15% do PIB, sofreram uma queda de 10%. Modelos econômicos constaram que os períodos anteriores do El Niño adicionaram quase 4 pontos percentuais aos preços das commodities não energéticas e 3,5 pontos percentuais aos preços do petróleo, enfraquecendo a segurança alimentar global.

Portanto, o mundo vive uma “tempestade perfeita”, pois a combinação de uma emergência sanitária global, com a invasão da Ucrânia pela Rússia e o agravamento da crise ambiental e climática tende a jogar o preço dos alimentos para as alturas. Na conjuntura atual, fica cada vez mais distante a possibilidade de se alcançar a meta número 2 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), no sentido de acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhorar a nutrição até 2030.

Isto porque o preço global dos alimentos atingiu a maior média de um triênio dos últimos 60 anos. O gráfico abaixo mostra o Índice de Preços dos Alimentos (FFPI) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) que ficou em 125 pontos em 2021, em 140,7 pontos em 2022 (o valor mais alto em cerca de 100 anos) e em 122 pontos em 2023. Na média trienal o índice ficou em 129,3 pontos, superando os recordes anteriores.

As maiores altas do FFPI tinham ocorrido entre 1973 e 1975 (quando houve o primeiro choque do petróleo decorrente da guerra do Yom Kippur de 1973). No referido período a média trienal ficou em 128,4 pontos e provocou uma grande carestia no mundo. Nos anos de 1980 e 1990 houve redução do índice de preço, que voltaram a crescer nos anos 2000.

A década de 1961-70 apresentou uma média decenal de 104,7 pontos. A década de 1971-80 foi a que teve a maior média decenal, com 110,2 pontos. Nas décadas de 1980 e 1990 os preços dos alimentos caíram, respectivamente, para 80,7 pontos e 77 pontos. Mas a comida voltou a ficar mais cara no século XXI, com a média decenal passando para 86,4 pontos entre 2001 e 2010 e para 102,9 pontos entre 2011 e 2020. Ainda é cedo para prever a média do preço dos alimentos da década 2021-30, mas o FFPI do primeiro triênio da atual década indica o valor mais alto de toda a série.

O aumento do preço dos alimentos já vinha subindo em decorrência do rompimento das cadeias produtivas ocorrido em decorrência da pandemia da covid-19, mas se agravou com o aumento do preço dos combustíveis fósseis provocado pelo impacto das ações militares da Rússia na Ucrânia. O FFPI da FAO caiu em 2023 em relação aos dois anos anteriores, mas se mantém extremamente elevado para os padrões históricos. Indubitavelmente, a crise climática e ambiental tem dificultado a produção de alimentos devido às secas, enchentes, erosões e acidificação dos solos e das águas.

Aumentando o preço dos alimentos, aumenta também a fome e a desnutrição. O relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), divulgado pela ONU no dia 12 de julho, indica que existem 735 milhões de pessoas passando fome e 2,3 bilhões em situação de insegurança alimentar no mundo. No Brasil são 21 milhões de pessoas que não têm o que comer todos os dias e 70,3 milhões em insegurança alimentar.

As catástrofes ambientais, a carestia e as ondas letais de calor serão a nova pandemia do século XXI

As evidências não mentem. São, cada vez mais notórios os sinais de caos climático e ambiental, como os furacões, tufões e ciclones que atingiram diversas partes do mundo, assim como tem aumentado o número de refugiados climáticos e o percentual de pessoas vivendo em situação de fome e insegurança alimentar. Ao invés de fenômenos isolados, os desastres não estão ocorrendo um de cada vez e um em cada local. Em vez disso, se tem registrado, simultaneamente, uma cascata de catástrofes, algumas graduais, outras abruptas, mas todas agravadas e potencializadas pelo aquecimento global e pela degradação dos ecossistemas.

Artigo de Camilo Mora et al. (19/11/2018), publicado na revista Nature climate change, mostra que as mudanças climáticas trarão múltiplos desastres de uma só vez. “Enfrentar essas mudanças climáticas será como entrar em uma briga com Mike Tyson, Schwarzenegger, Stallone e Jackie Chan – tudo ao mesmo tempo”, disse o principal autor do estudo, que descreve os inúmeros impactos que devem atingir a civilização nos próximos anos.

O relatório “1,5°C – vivo ou morto? Os riscos para a mudança transformacional de atingir e violar a meta do Acordo de Paris”, do Institute for Public Policy Research (IPPR) e da Chatham House, aponta que o mundo corre o risco de cair em um ciclo de catástrofes (“loop doom”) e que os custos para lidar com os impactos crescentes da crise climática e ambiental pode substituir o combate à própria raiz do problema. Evitar um ciclo catastrófico exigiria uma aceitação mais honesta por parte dos políticos dos grandes riscos representados pela crise climática e da perspectiva iminente de ultrapassagem dos pontos de inflexão e da escalada da transformação econômica e social necessária para acabar com o aquecimento global.

Desta forma, está cada vez mais difícil alcançar a meta de um mundo sustentável, inclusivo e resiliente. Ao invés do sonho de um próspero desenvolvimento humano e ecológico, os indicadores revelam a iminência de um aumento das catástrofes em uma sociedade de risco.

Os danos causados pelo aquecimento global são cada vez mais evidentes e a recuperação dos desastres climáticos e ambientais estão cada vez mais difíceis e caros. Os custos ultrapassam centenas de bilhões de dólares. E o número de mortes deve superar em muito o montante dos óbitos da pandemia da covid-19. Não dá para negar a realidade. Muito menos ficar parado diante dos desafios. A hora de agir é agora.

Referências:

ALVES, JED. O recorde de degelo da Antártida e o fim das praias do Rio de Janeiro, # Colabora, 13/03/2023

https://projetocolabora.com.br/ods13/o-recorde-de-degelo-da-antartida-e-o-fim-das-praias-do-rio-de-janeiro/

Matt McGrath. Os motivos que levaram o planeta a ter dia mais quente já registrado, BBC News, 4 julho 2023  https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pdp580e0zo

Nik Martin. Como o El Niño pode prolongar a inflação dos alimentos, DW, 18/06/2023

https://www.dw.com/pt-br/como-o-el-ni%C3%B1o-pode-prolongar-a-infla%C3%A7%C3%A3o-dos-alimentos/a-65954409

Joan Ballester et al. Heat-related mortality in Europe during the summer of 2022, Nature Medicine, 10 July 2023 https://www.nature.com/articles/s41591-023-02419-z

Camilo Mora et. al. Broad threat to humanity from cumulative climate hazards intensified by greenhouse gas emissions, Nature climate change, 19/11/2018

https://www.nature.com/articles/s41558-018-0315-6

Laurie Laybourn, Henry Throp, Suzannah Sherman. 1,5°C – vivo ou morto? Os riscos para a mudança transformacional de atingir e violar a meta do Acordo de Paris, IPPR, Chatham House; February 2023

https://www.ippr.org/research/publications/1-5c-dead-or-alive

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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