Uma bacia de gelo e um ventilador a bateria contra a onda de calor

Verão em Beirute: sensação térmica de mais de 40 graus e crise energética (Foto: Ministério do Turismo do Líbano)

Jornalista brasileira no Líbano conta como é encarar o verão com temperaturas recordes por toda parte em meio a uma crise energética

Por Observatório do Clima | ODS 13 • Publicada em 11 de julho de 2023 - 10:03 • Atualizada em 22 de novembro de 2023 - 18:43

Verão em Beirute: sensação térmica de mais de 40 graus e crise energética (Foto: Ministério do Turismo do Líbano)

(Leila Salim* – Beirute) – Carregando uma sacola de compras e um galão de seis litros d’água por volta do meio-dia do último sábado, a roupa já molhada de suor, parei em frente à mercearia do sr. Gabriel. O calor em Jdeideh, subúrbio ao norte da capital do Líbano que compõe a Grande Beirute, era o assunto no pequeno comércio do bairro. “¿Y cómo te trata el calor, Leila? ¿No vas a la playa?”, me perguntou Gabriel. Libanês, viveu mais de vinte anos no México e se orgulha de ser, como diz, “um pouco latino” — e por isso nos comunicamos em espanhol. Estávamos, o senhor libanês-latino e eu, brasileira criada no Rio de Janeiro, impressionados com o calor, que já no começo do verão não dá trégua.

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A temperatura tem ficado em torno dos 31ºC nos últimos dias, mas a sensação térmica é de 40ºC. E não, não são os 40ºC do verão carioca. Um calor diferente, abafado e que dificulta a respiração. Diferentemente dos países do Oriente Médio com grandes desertos (como os da região do Golfo), na costa do Líbano, à beira do mar Mediterrâneo, o verão é quente mas também muito úmido, especialmente durante a noite. O serviço meteorológico oficial aponta que, nesta segunda-feira (10/7), a umidade relativa do ar pode chegar a 87%.

A combinação entre temperaturas elevadas e alta umidade impede o corpo humano de dissipar o excesso de calor através da transpiração. Cientistas chamam esse processo, que ocorre quando o corpo não consegue mais se resfriar, de “estresse térmico” e defendem a adoção de índices que levem em consideração a interação entre umidade e temperatura para comunicar os riscos de condições extremas  à população. Segundo estudo publicado na revista Nature em maio deste ano, uma temperatura de 37ºC pode ser desconfortável em regiões de baixa umidade, mas, quando combinada à alta umidade e ausência de vento, leva o corpo humano à incapacidade de resfriamento. A esse nível, a chamada temperatura de bulbo úmido (WBGT), combinação dos dois fatores e da velocidade do vento, pode ser fatal.

O início do verão no hemisfério Norte em ano de mega El Niño — que já fez, na semana passada, o mundo quebrar por dias seguidos o recorde de temperatura registrada — tem contornos específicos em um Líbano assolado por uma das maiores crises econômicas da história contemporânea, que se arrasta desde 2019. “Kahraba mafi”, ou “não há eletricidade”, foi umas das primeiras frases em árabe que aprendi quando cheguei ao Líbano, em março de 2022. Entre a desvalorização da moeda, a alta nos preços, os níveis recorde de fome e desemprego e o colapso nas instituições, há uma crise energética que colocou, no último ano, quase todo o país no escuro.

Neste julho de 2023, os cortes de energia, que no ano passado chegaram a ser de até 16 horas diárias em algumas regiões, já estão mais controlados. Mas, neste apartamento em Jdeideh, ainda lidamos com cinco horas diárias sem luz (que já foram oito)  — e contas de energia astronômicas quando se usa o ar-condicionado nas noites quentes e úmidas de verão. E foi assim que um ventilador a bateria transformou-se na minha maior preciosidade, me salvando dos cortes da madrugada e garantindo noites de sono. Nestas semanas, tem sido incrementado com uma bacia de gelo que, estrategicamente posicionada em frente às pás, ajuda a espalhar uma brisa fresca quando a noite cai (e a temperatura não).

O verão promete e, como o roteirista da vida gosta de ironia, esta jornalista climática segue na torcida para que seu instrumento de trabalho não seja — mais uma vez — aplacado pela realidade que tenta contar. No verão passado, ao reportar a maior onda de calor da história da China, meu computador não resistiu ao calor libanês e superaqueceu.

Muito pior sorte tiveram os europeus naquele ano, assolados por uma onda de calor precoce que levou a gelada Frankfurt a 37ºC, Paris a 38ºC e o interior da Espanha a 43ºC. Um estudo inédito publicado na revista Nature Medicine mostrou que o calor extremo do último verão europeu matou 61.672 pessoas entre 30 de maio e 4 de setembro. A cifra, assustadora por si só, acende ainda mais alertas quando lembramos que, em 2022, não havia El Niño para elevar as temperaturas no mundo todo.

Segundo o estudo, Itália (com 18.100 mortes), Espanha (11.324 mortes) e Alemanha (8.173) foram os países mais afetados em números gerais. Considerando o número de mortes a cada um milhão de habitantes, os mais afetados foram Itália (295 mortes por milhão), Grécia (280), Espanha (237) e Portugal (211).

A onda de calor mais mortal da Europa até hoje aconteceu em 2003 e matou 70 mil pessoas. Segundo os pesquisadores, o verão daquele ano foi um fenômeno “excepcionalmente raro”, mesmo levando em consideração os efeitos do aquecimento global já observados à época, e destacou as lacunas em planos de prevenção e as falhas no sistema de saúde para lidar com as ondas de calor.

“O fato de que mais de 61.600 pessoas morreram na Europa por causa do calor no verão de 2022, mesmo que, diferentemente de 2003, vários países já tivessem planos de prevenção ativos, sugere que as estratégias de adaptação atualmente disponíveis ainda podem ser insuficientes”, declarou Hicham Achebak, do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, um dos autores da pesquisa.

Não há motivo para se animar com as perspectivas para o restante do verão de 2023 na bacia do Mediterrâneo – e em nenhum outro lugar do hemisfério Norte. Nesta segunda-feira, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) apresentou em entrevista coletiva uma compilação dos extremos de calor recentes e alertou sobre o que pode vir nas próximas semanas. Na semana passada, nos dias 3 e 4 de julho, os termômetros bateram os índices mais altos da história, confirmando a previsão de que o calor do mês passado continuaria.

O mês de junho foi, até aqui, o mais quente já registrado, com a temperatura média do planeta chegando a 16,51ºC — mais de 0,5ºC acima da média de 1991 a 2020. Foi também a maior perda de gelo marinho na Antártida — a extensão do mar congelado caiu 17% (o equivalente em área a mais de uma Argentina) em relação à média para o mês.

Dados preliminares da OMM apresentados nesta segunda apontam que a semana passada, com os dois dias de quebra consecutiva de recordes na temperatura média global, foi a mais quente da história e com a temperatura dos oceanos mais altas já registradas. “As temperaturas recorde em terra e no oceano têm impactos potencialmente devastadores nos ecossistemas e no meio ambiente, que destacam as mudanças de longo prazo que ocorrem no sistema terrestre como resultado da mudança climática causada pela ação humana”, diz a OMM.

Chris Hewitt, diretor de serviços climáticos da OMM, destacou que o pior ainda pode estar por vir, neste ano e no próximo: “O calor excepcional em junho e no início de julho ocorreu no início do desenvolvimento do El Niño, que potencialmente alimentará ainda mais o calor tanto em terra quanto nos oceanos, e levar a mais temperaturas extremas e ondas de calor marinhas”, afirmou.

Ondas de calor já varreram o México, com oito mortos e milhões de afetados, e atingem agora a Itália — que tem previsão de 48ºC para esta semana. Na Europa, também enfrentam ondas de calor Alemanha, Espanha, França e Polônia.

No Líbano, que dificilmente será poupado, há ainda muitos outros contornos da emergência climática, como os impactos já sentidos na agricultura, a diminuição nos volumes de chuvas que tem secado reservatórios e ameaçado o abastecimento de água e a situação dos milhões de palestinos e sírios que atravessarão o verão vivendo em campos de refugiados ou moradias precárias, sem ventilação. Entendendo a crise do clima como um agravador de desigualdades que é o que ela é, os libaneses enfrentam uma tempestade perfeita. E sem eletricidade.

*Leila Salim, jornalista e doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, trabalha no Observatório do Clima e no Fekebook.eco

Observatório do Clima

O Observatório do Clima é uma rede que reúne entidades da sociedade civil para discutir a questão das mudanças climáticas no contexto brasileiro.

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