No caminho do açaí sustentável

Agricultores no Centro de Referência do Manejo de Mínimo Impacto do Açaí: aprendizado para produção sustentável do fruto (Foto: Embrapa)

Embrapa e parceiros investem no manejo de mínimo impacto no devastado arquipélago de Marajó

Por Trajano de Moraes | ODS 12 • Publicada em 20 de março de 2023 - 08:40 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 14:03

Agricultores no Centro de Referência do Manejo de Mínimo Impacto do Açaí: aprendizado para produção sustentável do fruto (Foto: Embrapa)

Você que, como eu, gosta tanto de açaí sabe de onde vem essa delícia brasileira? Noventa por cento do estado do Pará, que é o maior produtor do mundo. E já lhe ocorreu pensar que, no ritmo do atual consumo, um dia ele pode faltar? A Embrapa, em parceria com outras instituições, iniciou um trabalho multidisciplinar para tornar o manejo sustentável. Ele vai desde o treinamento das comunidades extrativistas até a formação de agentes locais de crédito para ajudar as famílias a levantar recursos para investir na produção.

O biólogo Anderson Sevilha, líder do projeto, calcula que os negócios com açaí tenham movimentado R$ 6 bilhões de reais no país entre 2020 e 2021, último dado disponível (Sistema Integrado de Comércio Exterior Siscomex 2021). O fruto e sua polpa são a base da segurança alimentar de milhares de famílias na Amazônia: 50% do colhido é consumido pelos próprios extrativistas e seus dependentes.

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Um dos focos do projeto Sustenta e Inova, financiado pela União Europeia, é o arquipélago do Marajó, cuja floresta foi devastada pelos ciclos da madeira e do palmito e onde hoje campeia a “açaização” – como é chamado, na Amazônia, a retirada da vegetação em torno dos açaizeiros com impacto no ecossistema e na produtividade da floresta.

A produção média da ‘açaização’ é de uma tonelada por ano por hectare. O manejo de mínimo impacto vai permitir, num prazo de cinco anos, que ela suba para cerca de seis toneladas

Anderson Sevilha
Biólogo da Embrapa

Fome, surtos de raiva e doença de Chagas, além da malária, cobraram um altíssimo preço da população local, levando ao êxodo. O forte desequilíbrio ambiental provocou até mesmo, por falta de nutrientes, o desaparecimento de peixes comuns nos rios e igarapés do Marajó, em decorrência, do pirarucu que tem naqueles peixes a base de sua alimentação. O arquipélago do Marajó tem hoje os piores índices de IDH do Brasil.

O projeto visa a, num prazo de quatro anos, dobrar a produtividade nas áreas manejadas do açaí com a implantação de unidades demonstrativas nas comunidades, introdução do conceito da agrofloresta, dos quintais produtivos e restauração de áreas degradadas, além da criação de unidades de beneficiamento e entrepostos de comercialização dos produtos da floresta e da promoção do acesso às políticas públicas e ao crédito. A ação envolve equipes da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília; Embrapa Amazônia Oriental, de Belém; Embrapa Amapá, de Macapá, e Embrapa Agroindústria de Alimentos, do Rio de Janeiro. Ele tem a coordenação do Sebrae e abrange ainda o Cirad (instituição francesa de pesquisa agronômica), o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e a Funarbe, instituição ligada à Universidade Federal de Viçosa (MG).

Esse é um projeto de grande amplitude. Os pesquisadores afirmam que, em primeiro lugar, é preciso ganhar a confiança das comunidades para que abandonem a “açaização”´e abracem o manejo de mínimo impacto ambiental, que permite o aumento da produtividade e, em consequência, da renda dos extrativistas. Mas não só: estamos falando da redução do desmatamento, restauração da floresta, conservação da biodiversidade e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, de acordo com os ODS das Nações Unidas.

Treinamento para extrativistas, líderes comunitários, técnicos de órgãos públicos e estudantes no Centro de Referência em Marajó: produção sustentável de açaí (Foto: Embrapa)
Treinamento para extrativistas, líderes comunitários, técnicos de órgãos públicos e estudantes no Centro de Referência em Marajó: produção sustentável de açaí (Foto: Embrapa)

Para isso, os especialistas da Embrapa e seus parceiros iniciaram o treinamento de facilitadores, sejam líderes comunitários, técnicos das secretarias estaduais, municipais e de organismos como as Emater, estudantes e até mesmo os próprios extrativistas. A comunidade de Santo Ezequiel Moreno, no município marajoara de Portel, já conta com um Centro de Referência do Manejo de Mínimo Impacto do Açaí, o Manejaí, que abastece a única escola da localidade com a maior parte da alimentação dos alunos. Outras 22 escolas do município recebem a polpa do açaí, mandioca e hortaliças pelo programa de compras institucionais do PAA – Programa de Aquisição de Alimentos.

Eu acreditei no projeto. Além de coletarmos açaí na safra, de julho a dezembro, também estamos colhendo na entressafra, de maio a junho

Alcindo Morais
Extrativista e pescador

Aí estão os principais pilares do projeto: a participação comunitária via atuação dos facilitadores, o manejo de mínimo impacto, a consolidação da cooperativa, a construção de unidades beneficiadora do fruto e óleos e o aproveitamento de outras espécies nativas. A consequência é o aumento da produtividade e a obtenção de produto de qualidade ambiental, nutricional e sanitária e de maior valor comercial: “a inserção de agroextrativistas em circuitos bioeconômicos pelo uso sustentável da biodiversidade”, nas palavras de Anderson Sevilha. “A produção média da ‘açaização’ é de uma tonelada por ano por hectare. O manejo de mínimo impacto vai permitir, num prazo de cinco anos, que ela suba para cerca de seis toneladas”, complementa o biólogo.

A maior parte da produção da polpa do açaí é consumida in natura. Aí mora um perigo quase desconhecido. Os frutos são acomodados em grandes cestos (rasas) e os atravessadores costumam passar na madrugada ou na manhã seguinte para apanhá-las, o que dá tempo ao barbeiro de infectá-los. Sem lavagem adequada e a aplicação de choque térmico para neutralizar o efeito do transmissor, um protozoário encontrado nas fezes do barbeiro, a polpa do açaí pode transmitir a doença de Chagas.

Curso de formação de agroextrativistas para coleta de dados e tomada de decisão nas técnicas do manejo de mínimo impacto: busca da produção sustentável de açaí (Foto: Embrapa)
Curso de formação de agroextrativistas para coleta de dados e tomada de decisão nas técnicas do manejo de mínimo impacto: busca da produção sustentável de açaí (Foto: Embrapa)

Para impedi-lo, o Sustenta e Inova trabalha junto às comunidades ribeirinhas para a melhoria das pequenas estruturas de beneficiamento, as chamadas batedeiras. “As batedeiras podem beneficiar até 200kg de açaí por dia, fornecendo o produto para o consumo imediato das famílias. Já a planta da cooperativa Manejaí pode processar uma tonelada por dia, obtendo polpa congelada para consumo no município, mas também fora dele”, afirma a pesquisadora Virgínia da Matta, da Embrapa Agroindústria de Alimentos, de Guaratiba, no Rio de Janeiro.

Observamos grande potencial de expansão e elevação do valor comercial de espécies nativas da Amazônia na produção de óleos para uso alimentício, cosmético e farmacêutico

Renata Borguini
Pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos

Este mês, técnicos da Embrapa iniciaram cursos de treinamento para facilitadores de outros três municípios marajoaras – Breves, Muaná e Salvaterra – que terão seus próprios centros de referência para adoção do manejo de mínimo impacto do açaí e de outras frutas nativas. Para isso, estão em andamento visitas técnicas para identificação de parceiros locais.

O pescador e extrativista Alcindo Morais, de Muaná, disse que vem obtendo melhores resultados desde que abandonou o manejo intensivo (açaização) e adotou o manejo sustentável. “Eu acreditei no projeto. Além de coletarmos açaí na safra, de julho a dezembro, também estamos colhendo na entressafra, de maio a junho”, conta.

A regeneração da floresta pode se dar via plantio de mudas, o que exige investimento mais alto, por semeadura direta de sementes e pela facilitação da recuperação de forma natural, com baixo investimento. A comunidade de Santo Ezequiel Moreno, em Portel, já conta com um viveiro de mudas e o projeto estimula seu plantio nos próprios quintais, nos sistemas agroflorestais e nas áreas de florestas manejadas das famílias.

Viveiro de mudas de espécies nativas criado na cooperativa Manejaí, comunidade de Santo Ezequiel Moreno, Marajó: regeneração da floresta para enfrentar impactos da açaização (Foto: Embrapa)
Viveiro de mudas de espécies nativas criado na cooperativa Manejaí, comunidade de Santo Ezequiel Moreno, Marajó: regeneração da floresta para enfrentar impactos da açaização (Foto: Embrapa)

Um objetivo buscado intensamente pelos responsáveis é ampliar a conservação e a colheita de frutos e leguminosas naturais da Amazônia, que vinham sendo afetados pela açaização. A comunidade Monte Hermon, em Portel, já produz de forma artesanal óleos de copaíba e andiroba para fins medicinais. Uma pequena agroindústria está sendo estruturada no local para expandir a produção. “Observamos grande potencial de expansão e elevação do valor comercial de espécies nativas da Amazônia na produção de óleos para uso alimentício, cosmético e farmacêutico”, destaca a pesquisadora Renata Borguini, da Embrapa Agroindústria de Alimentos.

A ação dos organismos envolvidos é ampla no sentido de recompor os sistemas agroflorestais da região. A apicultura com abelhas nativas está em andamento tanto em Portel quanto em Breves, Muaná e Salvaterra. Objetivo: auxiliar na polinização do açaí. A piscicultura é outra iniciativa estimulada nas comunidades através da criação com tanques redes (que cercam uma pequena área dos igarapés para criadouro) e também com tanques escavados com a mesma finalidade.

O trabalho não começou agora, mas com o projeto Bem Diverso, executado de 2016 a 2021, numa parceria entre a Embrapa, o PNUD e o Fundo Mundial para o Meio Ambiente. A atuação foi em comunidades de agricultores familiares e extrativistas da Amazônia, do Cerrado e da Caatinga. Na Amazônia, seu foco era já o Marajó. O biólogo Anderson Sevilha também foi o seu coordenador. Seu objetivo, assim como no Sustenta e Inova, foi desenvolver a capacidade das comunidades para conservar, manejar e restaurar espécies e ecossistemas, além de processar frutos nativos e acessar o mercado, as políticas públicas e o crédito. A continuidade de projetos como esse é o que permitirá o acompanhamento e a autonomia das comunidades para o ganho de escala que levará ao desenvolvimento sustentável.

Trajano de Moraes

Jornalista com longas passagens por Jornal do Brasil, na década de 1970, e O Globo (1987 a 2014), sempre tratando de temas de Política Internacional e/ou Economia. Estava posto em sossego quando foi irresistivelmente atraído pelos encantos do #Colabora. E resolveu sair da toca.

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