Você que, como eu, gosta tanto de açaí sabe de onde vem essa delícia brasileira? Noventa por cento do estado do Pará, que é o maior produtor do mundo. E já lhe ocorreu pensar que, no ritmo do atual consumo, um dia ele pode faltar? A Embrapa, em parceria com outras instituições, iniciou um trabalho multidisciplinar para tornar o manejo sustentável. Ele vai desde o treinamento das comunidades extrativistas até a formação de agentes locais de crédito para ajudar as famílias a levantar recursos para investir na produção.
O biólogo Anderson Sevilha, líder do projeto, calcula que os negócios com açaí tenham movimentado R$ 6 bilhões de reais no país entre 2020 e 2021, último dado disponível (Sistema Integrado de Comércio Exterior Siscomex 2021). O fruto e sua polpa são a base da segurança alimentar de milhares de famílias na Amazônia: 50% do colhido é consumido pelos próprios extrativistas e seus dependentes.
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Um dos focos do projeto Sustenta e Inova, financiado pela União Europeia, é o arquipélago do Marajó, cuja floresta foi devastada pelos ciclos da madeira e do palmito e onde hoje campeia a “açaização” – como é chamado, na Amazônia, a retirada da vegetação em torno dos açaizeiros com impacto no ecossistema e na produtividade da floresta.
Fome, surtos de raiva e doença de Chagas, além da malária, cobraram um altíssimo preço da população local, levando ao êxodo. O forte desequilíbrio ambiental provocou até mesmo, por falta de nutrientes, o desaparecimento de peixes comuns nos rios e igarapés do Marajó, em decorrência, do pirarucu que tem naqueles peixes a base de sua alimentação. O arquipélago do Marajó tem hoje os piores índices de IDH do Brasil.
O projeto visa a, num prazo de quatro anos, dobrar a produtividade nas áreas manejadas do açaí com a implantação de unidades demonstrativas nas comunidades, introdução do conceito da agrofloresta, dos quintais produtivos e restauração de áreas degradadas, além da criação de unidades de beneficiamento e entrepostos de comercialização dos produtos da floresta e da promoção do acesso às políticas públicas e ao crédito. A ação envolve equipes da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília; Embrapa Amazônia Oriental, de Belém; Embrapa Amapá, de Macapá, e Embrapa Agroindústria de Alimentos, do Rio de Janeiro. Ele tem a coordenação do Sebrae e abrange ainda o Cirad (instituição francesa de pesquisa agronômica), o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e a Funarbe, instituição ligada à Universidade Federal de Viçosa (MG).
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Veja o que já enviamosEsse é um projeto de grande amplitude. Os pesquisadores afirmam que, em primeiro lugar, é preciso ganhar a confiança das comunidades para que abandonem a “açaização”´e abracem o manejo de mínimo impacto ambiental, que permite o aumento da produtividade e, em consequência, da renda dos extrativistas. Mas não só: estamos falando da redução do desmatamento, restauração da floresta, conservação da biodiversidade e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, de acordo com os ODS das Nações Unidas.
Para isso, os especialistas da Embrapa e seus parceiros iniciaram o treinamento de facilitadores, sejam líderes comunitários, técnicos das secretarias estaduais, municipais e de organismos como as Emater, estudantes e até mesmo os próprios extrativistas. A comunidade de Santo Ezequiel Moreno, no município marajoara de Portel, já conta com um Centro de Referência do Manejo de Mínimo Impacto do Açaí, o Manejaí, que abastece a única escola da localidade com a maior parte da alimentação dos alunos. Outras 22 escolas do município recebem a polpa do açaí, mandioca e hortaliças pelo programa de compras institucionais do PAA – Programa de Aquisição de Alimentos.
Aí estão os principais pilares do projeto: a participação comunitária via atuação dos facilitadores, o manejo de mínimo impacto, a consolidação da cooperativa, a construção de unidades beneficiadora do fruto e óleos e o aproveitamento de outras espécies nativas. A consequência é o aumento da produtividade e a obtenção de produto de qualidade ambiental, nutricional e sanitária e de maior valor comercial: “a inserção de agroextrativistas em circuitos bioeconômicos pelo uso sustentável da biodiversidade”, nas palavras de Anderson Sevilha. “A produção média da ‘açaização’ é de uma tonelada por ano por hectare. O manejo de mínimo impacto vai permitir, num prazo de cinco anos, que ela suba para cerca de seis toneladas”, complementa o biólogo.
A maior parte da produção da polpa do açaí é consumida in natura. Aí mora um perigo quase desconhecido. Os frutos são acomodados em grandes cestos (rasas) e os atravessadores costumam passar na madrugada ou na manhã seguinte para apanhá-las, o que dá tempo ao barbeiro de infectá-los. Sem lavagem adequada e a aplicação de choque térmico para neutralizar o efeito do transmissor, um protozoário encontrado nas fezes do barbeiro, a polpa do açaí pode transmitir a doença de Chagas.
Para impedi-lo, o Sustenta e Inova trabalha junto às comunidades ribeirinhas para a melhoria das pequenas estruturas de beneficiamento, as chamadas batedeiras. “As batedeiras podem beneficiar até 200kg de açaí por dia, fornecendo o produto para o consumo imediato das famílias. Já a planta da cooperativa Manejaí pode processar uma tonelada por dia, obtendo polpa congelada para consumo no município, mas também fora dele”, afirma a pesquisadora Virgínia da Matta, da Embrapa Agroindústria de Alimentos, de Guaratiba, no Rio de Janeiro.
Este mês, técnicos da Embrapa iniciaram cursos de treinamento para facilitadores de outros três municípios marajoaras – Breves, Muaná e Salvaterra – que terão seus próprios centros de referência para adoção do manejo de mínimo impacto do açaí e de outras frutas nativas. Para isso, estão em andamento visitas técnicas para identificação de parceiros locais.
O pescador e extrativista Alcindo Morais, de Muaná, disse que vem obtendo melhores resultados desde que abandonou o manejo intensivo (açaização) e adotou o manejo sustentável. “Eu acreditei no projeto. Além de coletarmos açaí na safra, de julho a dezembro, também estamos colhendo na entressafra, de maio a junho”, conta.
A regeneração da floresta pode se dar via plantio de mudas, o que exige investimento mais alto, por semeadura direta de sementes e pela facilitação da recuperação de forma natural, com baixo investimento. A comunidade de Santo Ezequiel Moreno, em Portel, já conta com um viveiro de mudas e o projeto estimula seu plantio nos próprios quintais, nos sistemas agroflorestais e nas áreas de florestas manejadas das famílias.
Um objetivo buscado intensamente pelos responsáveis é ampliar a conservação e a colheita de frutos e leguminosas naturais da Amazônia, que vinham sendo afetados pela açaização. A comunidade Monte Hermon, em Portel, já produz de forma artesanal óleos de copaíba e andiroba para fins medicinais. Uma pequena agroindústria está sendo estruturada no local para expandir a produção. “Observamos grande potencial de expansão e elevação do valor comercial de espécies nativas da Amazônia na produção de óleos para uso alimentício, cosmético e farmacêutico”, destaca a pesquisadora Renata Borguini, da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
A ação dos organismos envolvidos é ampla no sentido de recompor os sistemas agroflorestais da região. A apicultura com abelhas nativas está em andamento tanto em Portel quanto em Breves, Muaná e Salvaterra. Objetivo: auxiliar na polinização do açaí. A piscicultura é outra iniciativa estimulada nas comunidades através da criação com tanques redes (que cercam uma pequena área dos igarapés para criadouro) e também com tanques escavados com a mesma finalidade.
O trabalho não começou agora, mas com o projeto Bem Diverso, executado de 2016 a 2021, numa parceria entre a Embrapa, o PNUD e o Fundo Mundial para o Meio Ambiente. A atuação foi em comunidades de agricultores familiares e extrativistas da Amazônia, do Cerrado e da Caatinga. Na Amazônia, seu foco era já o Marajó[b]. O biólogo Anderson Sevilha também foi o seu coordenador. Seu objetivo, assim como no Sustenta e Inova, foi desenvolver a capacidade das comunidades para conservar, manejar e restaurar espécies e ecossistemas, além de processar frutos nativos e acessar o mercado, as políticas públicas e o crédito. A continuidade de projetos como esse é o que permitirá o acompanhamento e a autonomia das comunidades para o ganho de escala que levará ao desenvolvimento sustentável.