Economia global pode aumentar em 60% a exploração ecológica até 2060

Jovem queima lixo eletrônico no lixão de Agbogbloshie, em Accra, capital de Gana. O lixão está localizado na favela de Agbogbloshie, um antigo pântano e lar de refugiados que fugiram do conflito no norte de Gana durante a década de 80. Foto de Cristina Aldehuela/AFP

Crescimento da população deve chegar a 23% até 2060, enquanto o PIB global subiria cerca de 150% no mesmo período

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 12 • Publicada em 4 de março de 2024 - 08:58 • Atualizada em 7 de março de 2024 - 21:33

Jovem queima lixo eletrônico no lixão de Agbogbloshie, em Accra, capital de Gana. O lixão está localizado na favela de Agbogbloshie, um antigo pântano e lar de refugiados que fugiram do conflito no norte de Gana durante a década de 80. Foto de Cristina Aldehuela/AFP

Terra!
És o mais bonito dos planetas
Tão te maltratando por dinheiro
Tu que és a nave nossa irmã
”.

(O Sal da Terra, Beto Guedes)

A economia é a ciência que busca suprir as necessidades materiais da humanidade às custas da subtração da riqueza da ecologia. A economia tem como função garantir o bem-estar e o progresso das pessoas. Infelizmente, isto ocorre em troca do empobrecimento e do retrocesso da saúde da natureza. É uma relação hierárquica, tóxica e insustentável, como reconhece o Painel Internacional de Recursos (IRP) do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP na sigla em inglês). O Painel divulga o relatório “Global Resources Outlook” de 5 em 5 anos. Na edição de 2024, lançada no último dia 01 de março, há uma séria advertência:

“O mundo enfrenta atualmente uma tripla crise planetária, envolvendo alterações climáticas, perda de biodiversidade, poluição e resíduos. A economia global continua consumindo recursos naturais em um ritmo alarmante, enquanto o progresso em direção ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável está aquém do necessário” (p. 26).

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O gráfico abaixo, do Global Resources Outlook 2024, mostra que a extração anual de materiais (biomassa, combustíveis fósseis, minerais metálicos e minerais não metálicos) cresceu de 30,9 bilhões de toneladas em 1970 para 95,1 bilhões de toneladas em 2020 e estima-se 106,5 bilhões de toneladas em 2024.

A extração foi de 2,1% ao ano entre 1970 e 2000, acelerou para 3,5% entre 2000 e 2012, mas desacelerou para 1% ao ano entre 2012 e 2020, no rescaldo da crise financeira global e na desaceleração econômica causada pela pandemia da covid-19. Com a recuperação pós pandêmica, o crescimento médio da extração de recursos voltou a acelerar para 2,9% ao ano.

A composição do uso de materiais também mudou significativamente nas últimas cinco décadas. Em 1970, a biomassa foi a maior categoria de uso de material com 41% do total, mas a sua percentagem diminuiu para 33% em 2000 e 26% em 2020. Os minerais não metálicos se tornaram a maior categoria, com 48% em 2020, acima dos 31% de 1970, sinalizando uma transição do metabolismo agrário baseado em biomassa para um metabolismo industrial baseado em minerais.

Acima de tudo, é preciso destacar que a extração de recursos cresceu acima da taxa de aumento da população mundial. A média global da demanda material per capita era de 8,4 toneladas em 1970 e cresceu para 12,2 toneladas per capita em 2020 e chegou a 13,2 toneladas per capita em 2024.

Não há dúvidas de que o crescimento demoeconômico foi o principal vetor do aumento da extração de recursos da natureza. O gráfico abaixo (UNEP, 2024, p. 19), mostra que a população mundial era de 3,7 bilhões de habitantes em 1970 e passou para 8,12 bilhões em 2024, um crescimento de 2,2 vezes em 54 anos. A proporção da população global residente em cidades em 1970 era de 37% e passou para 58% em 2024. O PIB global era de aproximadamente 18 trilhões de dólares (com base em preços de 2014) em 1970 e está estimado em 93 trilhões de dólares em 2024 (crescimento de 5 vezes). Em consequência, a renda per capita global que estava em torno de 5 mil dólares em 1970 deve ficar em torno de 12 mil dólares em 2024 (um crescimento de 2,4 vezes).

À medida que o mundo acrescenta mais pessoas ao mercado consumidor, se urbaniza e se industrializa, a pressão sobre os sistemas ambientais se intensifica, aumentando a degradação ambiental e elevando as emissões de gases de efeito estufa (GEE). A insustentabilidade ambiental é crescente e, diante da inação, a possibilidade de um colapso ecológico está cada vez mais visível no horizonte.

O volume de atividades econômicas globais já superou a capacidade de carga da Terra, como mostrei no artigo “Oito países consomem toda a biocapacidade do planeta” (Alves, 18/06/2023). A produção global de bens e serviços ultrapassou 6 das 9 fronteiras planetárias como apresentei no artigo “Risco de colapso ambiental cresce com o rompimento de seis fronteiras planetárias” (Alves, 25/09/2023).

Mas, a despeito da tripla crise planetária (crise climática, crise da 6ª extinção em massa das espécies e crise da poluição da água, do solo e do ar), estima-se que a economia global deva aumentar em 60% a exploração ecológica até 2060.

O gráfico abaixo (UNEP, 2024, p. 83) apresenta a modelagem de um cenário possível (mas não desejável) da exploração de recursos naturais até 2060. A exploração de recursos pode passar de 100 bilhões de toneladas em 2020 para 160 bilhões de toneladas na década de 2050. O crescimento da população seria de 23% (passando de quase 8 bilhões de habitantes em 2020 para cerca de 10 bilhões em 2060), enquanto o crescimento do PIB global seria de 150%. Assim, haveria o aumento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mas às custas do aumento de 59% no consumo primário de energia, aumento de 51% na extração de biomassa (alimentos e fibras) e aumento de 23% na emissão de gases de efeito estufa.

O modelo prevê o crescimento da exploração de minerais metálicos e não metálicos, especialmente aqueles essenciais para impulsionar a transição energética e para se atingir emissões líquidas zero. Estima-se que para manter a temperatura abaixo de 2°C até 2050, serão necessários mais de 3 bilhões de toneladas de minerais de transição energética e metais para energia eólica, solar e outras fontes renováveis.

O fato é que há uma alta probabilidade da continuidade do crescimento demoeconômico global nas próximas 4 décadas. A população mundial, mesmo diminuindo o ritmo, deve continuar crescendo e há uma grande pressão para o aumento do consumo per capita, especialmente por parte dos países de menor renda e que são maioria da população mundial. Evidentemente, o grande desafio é garantir o desenvolvimento humano sem prejudicar ainda mais a sustentabilidade ambiental.

A urgência dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável

Entre 1970 e 2020 o PIB global cresceu cerca de 600% e a extração de recursos naturais cresceu cerca de 400%. Isto quer dizer que houve um desacoplamento relativo, ou seja, o PIB mundial cresceu mais do que o crescimento da extração global de recursos ambientais. Houve menor uso de recursos para cada unidade de bens e serviços produzidos.

Mas o que o mundo precisa é de um desacoplamento absoluto, isto é, promover um crescimento econômico sustentável, que aumente o bem-estar humano, com redução da extração de recursos naturais, conforme indica a figura abaixo (UNEP, 2024, p. 8). Ações de sustentabilidade direcionadas e coordenadas podem diminuir a quantidade de recursos usados e relacionados aos impactos ambientais, ao mesmo tempo em que proporciona resultados contínuos no bem-estar socioeconômico para todos. Isso se refere ao conceito de dissociar o bem-estar humano do uso de recursos, bem como dissociar o uso de recursos em relação aos impactos ambientais.

O relatório Global Resources Outlook 2024 mostra que o conceito de desacoplamento não é uma abordagem única para todos as pessoas e todas as regiões do mundo. Para as camadas da população com maiores recursos e maiores pegadas ecológicas, as ações devem buscar à dissociação absoluta (redução do uso de recursos), tais como medidas que levem à adoção de dietas com menos proteína animal, cidades mais compactas e a prevalência de transporte público que podem reduzir as emissões de gases de efeito estufa entre 40% e 70% até 2050.

Para os contextos em que se espera que a utilização de recursos cresça para permitir uma vida mais digna, o objetivo deve ser o desacoplamento relativo (onde o uso de recursos aumenta mais lentamente do que os resultados de bem-estar humano). Esses caminhos diferenciados para uso de recursos e desacoplamento estão ligados ao conceito de suficiência, que vem ganhando força na agenda política. Da mesma forma, o conceito de “espaço de consumo justo”, implica na necessidade de conter o consumo excessivo e, ao mesmo tempo, garantir o consumo capaz de satisfazer as necessidades básicas, com dignidade humana.

O uso dos recursos naturais está direta ou indiretamente vinculado a todos os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A forma como as sociedades utilizam os recursos naturais por meio de padrões lineares de consumo e produção determina as trajetórias dos impactos ambientais e do bem-estar humano, como ilustrado na figura abaixo (UNEP, 2024, p. 3).

O consumo de recursos naturais está, desta forma, intrinsecamente ligado à capacidade da comunidade global em alcançar a sustentabilidade e cumprir as metas multilaterais dos acordos ambientais relativos ao clima, à biodiversidade e à degradação da terra. O ODS # 12 trata exatamente da implementação de padrões de produção e de consumo sustentáveis, com as seguintes metas:

  • Implementar o Plano Decenal de Programas sobre Produção e Consumo Sustentáveis, com todos os países tomando medidas, e os países desenvolvidos assumindo a liderança, tendo em conta o desenvolvimento e as capacidades dos países em desenvolvimento.
  • Até 2030, alcançar a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais.
  • Até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita.
  • Até 2020, alcançar o manejo ambientalmente saudável dos produtos químicos e todos os resíduos, ao longo de todo o ciclo de vida destes, de acordo com os marcos internacionais acordados, e reduzir significativamente a liberação destes para o ar, água e solo, para minimizar seus impactos negativos sobre a saúde humana e o meio ambiente.
  • Até 2030, reduzir substancialmente a geração de resíduos por meio da prevenção, redução, reciclagem e reuso.
  • Incentivar as empresas, especialmente as empresas grandes e transnacionais, a adotar práticas sustentáveis e a integrar informações de sustentabilidade em seu ciclo de relatórios.
  • Promover práticas de compras públicas sustentáveis, de acordo com as políticas e prioridades nacionais.
  • Até 2030, garantir que as pessoas, em todos os lugares, tenham informação relevante e conscientização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza.
  • Apoiar países em desenvolvimento a fortalecer suas capacidades científicas e tecnológicas para mudar para padrões mais sustentáveis de produção e consumo.
  • Desenvolver e implementar ferramentas para monitorar os impactos do desenvolvimento sustentável para o turismo sustentável, que gera empregos, promove a cultura e os produtos locais.

Racionalizar subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis, que encorajam o consumo exagerado, eliminando as distorções de mercado, de acordo com as circunstâncias nacionais, inclusive por meio da reestruturação fiscal e a eliminação gradual desses subsídios prejudiciais, caso existam, para refletir os seus impactos ambientais, tendo plenamente em conta as necessidades específicas e condições dos países em desenvolvimento e minimizando os possíveis impactos adversos sobre o seu desenvolvimento de uma forma que proteja os pobres e as comunidades afetadas.

A principais conclusões do relatório Global Resources Outlook 2024 estão sintetizadas abaixo:

  • O aumento do padrão de vida da humanidade ocorreu às custas do rápido aumento da extração e do comércio de materiais, além de uma escalada no descarte de resíduos e emissões de gases de efeito estufa (GEE). A extração global de materiais aumentou de 30 bilhões de toneladas em 1970 para 106,6 mil milhões de toneladas em 2024, um crescimento médio anual de 2,3%. Consequentemente, a média global per capita da demanda por materiais aumentou de 8,4 toneladas em 1970 para 13,2 toneladas em 2024.
  • Os padrões de consumo geográficos de materiais sofreram mudanças significativas. Em 1970, Ásia e Pacífico, Europa e a América do Norte consumiram proporções aproximadamente iguais de matérias-primas, cada uma representando cerca de um quarto do total mundial. Em 2017, porém, a quota da Ásia e Pacífico tinha aumentado para quase 60% do consumo global.
  • A pegada material permaneceu estática nos países de rendimento elevado desde a crise financeira global de 2008-2009, enquanto os países de rendimento médio-alto registaram um crescimento substancial. Os países de renda média baixa e, em menor grau, os países de baixo rendimento registaram melhorias modestas nos seus padrões de consumo. Os países de rendimento elevado continuam consumir materiais a uma taxa seis vezes superior à dos países de baixo rendimento.
  • O ambiente construído e a mobilidade espacial são os principais impulsionadores da crescente procura global de materiais, seguido de perto pelos alimentos e energia. Estes sectores combinados representam aproximadamente 90% da procura global de materiais.
  • A produtividade global dos materiais, que mede a eficiência econômica da utilização dos recursos, cresceu a um ritmo notavelmente mais lento em comparação com a produtividade do trabalho, da energia e dos GEE. Após um longo período de declínio, a produtividade material começou ver melhorias a partir de cerca de 2012 e estes ganhos estabilizaram desde então.
  • Os resíduos e as emissões aumentaram juntamente com o aumento da utilização de materiais. A mudança para uma economia baseada em minerais exacerbou ainda mais os desafios, conduzindo a fluxos de resíduos problemáticos e a um aumento das emissões e da poluição.
  • O aumento da produção agrícola levou a um aumento no consumo de água. A expansão das lavouras, pastagens e plantações florestais invadiu ainda mais os habitats naturais, exercendo pressão adicional sobre a saúde dos ecossistemas e da biodiversidade.
  • Para garantir um progresso contínuo, a integração das políticas econômicas e ambientais deve continuar e melhorar. Há uma necessidade urgente de avançar com a produtividade dos recursos e dos sistemas sustentáveis de produção e consumo – como ambiente construído, mobilidade, alimentos e energia – com redução do uso de materiais, redução dos insumos energéticos e redução das emissões de carbono.

Em síntese: o mundo precisa planejar o decrescimento demoeconômico para reduzir a sobrecarga que a economia internacional impõe sobre o meio ambiente. Mas enquanto o decrescimento não vêm, a solução global é implementar o desacoplamento absoluto, paralelamente à redução das desigualdades sociais, garantindo o bem-estar humano com redução da demanda ecológica. Só desta maneira se pode colocar em prática, de maneira efetiva, os Objetivos  de Desenvolvimento Sustentável, evitando um colapso climático e ambiental de grandes proporções.

Referências:

ALVES, JED. Oito países consomem toda a biocapacidade do planeta, # Colabora, 18/06/2023

https://projetocolabora.com.br/ods12/oito-paises-consomem-toda-a-biocapacidade-do-planeta/

ALVES, JED. Risco de colapso ambiental cresce com o rompimento de seis fronteiras planetárias, # Colabora, 25/09/2023

https://projetocolabora.com.br/ods6/risco-de-colapso-ambiental-cresce-com-o-rompimento-de-seis-fronteiras-planetarias/

United Nations Environment Programme (UNEP): Global Resources Outlook 2024: Bend the Trend – Pathways to a liveable planet as resource use spikes. International Resource Panel. Nairobi, 2024

https://wedocs.unep.org/20.500.11822/44901

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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