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A carioca Carmen Miranda e a preservação da memória do Rio

Reabertura de museu inspira passeio pela vida da cantora que viveu mais de 20 anos no Centro da cidade

ODS 11 • Publicada em 8 de agosto de 2023 - 09:49 • Atualizada em 8 de agosto de 2023 - 09:55

Nem sempre é fácil achar boa notícia nesse Rio de Janeiro, onde a polícia, um dia, mata 10 naquelas inúteis operações de guerra contra o tráfico e, no outro, dá cinco tiros num garoto de 13 anos. Na cidade em que, numa semana, bandidos roubam cabos e deixam trabalhadores sem trem e, na outra, depredam alguma estação ou ônibus do BRT – e, nesses casos, a polícia mostra que é boa de matar mas incapaz de prevenir o crime.

Mas, entre todas essas misérias, fico sabendo que reabriu o Museu Carmen Miranda, um espaço bacaninha no Aterro do Flamengo para celebrar a memória da cantora. Estava fechado há 10 anos – é difícil achar notícia boa. Mas, pelo que leio, está com o mesmo acervo que conheci alguns punhados de anos atrás: roupas variadas (inclusive figurinos de seus filmes hollywoodianos), jóias, bijuterias, sapatos, turbantes e aquela coleção de balangandãs. E, ainda mais interessantes, fotos e mais fotos, capas de discos, recortes de jornais, caricaturas, programas de shows, cartazes e partituras.

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Carmen nasceu em Portugal, fez sucesso com uma – digamos – fantasia de baiana e morreu em Los Angeles. Mas era tremendamente carioca: chegou no Rio com 10 meses e viveu aqui durante a maior parte de sua breve vida. Pela leitura de sua biografia, escrita pelo jornalista Ruy Castro, creio que podemos dizer que Maria do Carmo Miranda da Cunha não seria Carmen Miranda se não tivesse crescido na Lapa e vivido parte da adolescência, até o começo da fama, na Travessa do Comércio – nas primeiras décadas do século passado, ainda era no Centro do Rio que morava a alma carioca, o coração do Rio de Janeiro, capital do Império e da República.

O Museu Carmen Miranda reaberto no Rio: memórias de uma cantora muito carioca, nascida em Portugal, que viveu quase metade da vida no Centro do Rio (Foto: Gui Maia / Governo do Rio de Janeiro)
O Museu Carmen Miranda reaberto no Rio: memórias de uma cantora muito carioca, nascida em Portugal, que viveu quase metade da vida no Centro da Cidade (Foto: Gui Maia / Governo do Rio de Janeiro)

Sigamos rapidamente os passos dos Miranda da Cunha mais de um século atrás. Quando a recém-nascida Carmen chegou ao Brasil, em 1910,com a mãe, Maria Emília, e irmã mais velha, Olinda, o pai, José Maria, que chegara logo após o nascimento da segunda filha, esperava família no imperial bairro de São Cristóvão, lugar onde haviam morado a família real e boa parte da corte. Barbeiro, José Maria logo se mudaria para um sobrado na Rua da Misericórdia, no Centro, aos pés do Morro do Castelo, primeiro centro de poder do Rio de Janeiro, logo depois da fundação e da expulsão dos franceses. Barbearia no andar de baixo, moradia da família no de cima.

A trajetória da família vai tropeçando na história do Rio de Janeiro do começo do século. Do Morro do Castelo, desmontado na década de 1920, só sobrou a Ladeira da Misericórdia, vizinha da rua onde a família viveu. Mas eles já não estavam mais lá: José Maria mudou-se, com a família, para outro sobrado, na Rua Senhor dos Passos, nas adjacências da Rua da Alfândega (na região hoje chamada de Saara), e da Praça Tiradentes, vizinhança menos nobre, ainda em 1912 e, em seguida, para a Rua da Candelária, que sobreviveu às reformas do prefeito Pereira Passos (mais um sobrado).

De lá, Carmen e seus, agora, quatro irmãos mudaram com os pais, em 2015, para uma casa de vila na Rua Joaquim Silva, na Lapa – a futura estrela foi matriculada no Colégio Santa Teresa, na vizinha Rua da Lapa. Dos seis aos 16 anos, ela viveu ali com a família – o caçula dos seis filhos de José Maria e Maria Emília nasceu na Joaquim Silva. “E a quem já se perguntou onde e quando Carmen começou a ser Carmen Miranda, aí está a resposta: na Lapa”, escreveu o biógrafo Ruy Castro, em quase um atestado de carioquice.

Sobrado em reforma onde Carmen Miranda viveu um século atrás: pela preservação da memória e da história do Rio de Janeiro (Foto: Oscar Valporto)
Sobrado em reforma onde Carmen Miranda viveu um século atrás: pela preservação da memória e da história do Rio de Janeiro (Foto: Oscar Valporto)

Mas, se começou a ser Carmen na Lapa, a adolescente virou cantora na Travessa do Comércio, uma pequena via que começa no Arco do Teles e segue em L até a Rua do Ouvidor, a mais carioca das ruas, onde a família foi morar, novamente num sobrado, em 1925. Era na Rua do Ouvidor o escritório da RCA Victor, gravadora americana, onde Carmen cantou e encantou seu diretor em 1929. Na vizinha Rua do Mercado, era estúdio da Victor, onde ela gravou seu primeiro disco – duas músicas – de algum sucesso. No começo de 1930, foi no sobrado da Travessa do Comércio que o compositor Joubert de Carvalho apareceu (quem quiser saber a história detalhada do encontro leia o livro do Ruy) para mostrar a marchina Pra Você Gostar de Mim à jovem cantora (“Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim/ oh, meu bem, não faça assim comigo, não/ você tem, você tem que me dar seu coração”).

Devo dizer que o resto é história apesar de Carmen, no Rio, ainda ter morado, sempre com a família, em Santa Teresa, no Flamengo, e num casarão na Urca quando já era rainha das rádios e dos discos, antes da mudança para os EUA, onde morreu, em agosto de 1955, aos 46 anos. Voltemos, portanto, a 2023: a vila na Lapa não existe mais, mas o sobrado da Travessa do Comércio ainda está lá, um tanto maltratado (mas em reformas) e com uma placa da prefeitura, registrando que Carmen Miranda morou ali. A reinauguração do museu é um bom pretexto para lembrar de como este Rio de Janeiro precisa preservar sua história e sua memória, boa parte delas em estado precário no Centro do Rio.

Mas, como queremos boas notícias, o antigo prédio de A Noite, na Praça Mauá, foi vendido pela Prefeitura do Rio para uma incorporadora que pretende transformá-lo em um edifício residencial com mais de 400 unidades, lojas no térreo e um restaurante, aberto público, no terraço, com aquela vista da Baía de Guanabara. Vai ser ótimo para Centro, bom para a cidade inteira. O prédio histórico abrigou durante anos a Rádio Nacional, a mais popular do país. Carmen Miranda, contratada em sua época de sucesso pela Mayrink Veiga e pela Tupi, nunca trabalhou para a Nacional. Mas promovo aqui este encontro em nome da memória preservada do passado e de inspiração otimista para o futuro.

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