Acarajé não é bagunça

Presente há mais de 300 anos no Brasil, a cultura do acarajé foi celebrada no final do ano passado na posse do Conselho Gestor da Salvaguarda do Ofício de Baiana de Acarajé

Alimento sagrado para o candomblé vira sinônimo de propina e batiza operação da PF

Por Flávia Oliveira | ODS 9 • Publicada em 26 de fevereiro de 2016 - 08:17 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 16:11

Presente há mais de 300 anos no Brasil, a cultura do acarajé foi celebrada no final do ano passado na posse do Conselho Gestor da Salvaguarda do Ofício de Baiana de Acarajé

Foi indigesto para o povo de santo o nome escolhido pela Polícia Federal para batizar a fase da vez na Operação Lava Jato. Além da disposição para investigar a teia de escândalos de corrupção, que começou na Petrobras e ninguém sabe onde vai dar, a instituição ganhou reconhecimento nos últimos tempos pela criatividade na denominação das diligências. Na mais recente, uma iguaria famosa da culinária afro-brasileira foi parar nas manchetes ao ser usada como sinônimo de propina por um dos investigados.

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Não prestou. Horas depois de a PF anunciar a Operação Acarajé, na segunda-feira, o Coletivo de Entidades Negras (CEN) publicou nota de repúdio à designação. Ontem, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) enviou ofício à Secretaria Nacional de Segurança Pública, à PF e ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos pedindo a imediata troca do nome. Os religiosos não aceitam que um órgão público tenha ratificado a associação de um alimento sagrado do candomblé à prática criminosa.

Essa forma tradicional (de preparar o acarajé) é um fazer ligado à vinculação com religiões afro-brasileiras e que, muitas vezes, se desdobra como ofício. Há indumentária, procedimentos, rituais, tipo de produto.

“Assimilar essa expressão sacra ao crime, especialmente à corrupção, ofende religiões e religiosos de matriz africana. Cidadãos, no afã da comunicação criativa, poderiam errar, pedir desculpas, reconhecer a má criação intolerante e insensível. Seria um caso da vida privada. Ao Estado e seus entes não é permitido cometer tais erros”, diz trecho do documento, assinado pelo babalaô Ivanir dos Santos, representante da Comissão. Até a noite de ontem, nenhum dos órgãos tinha respondido.

O acarajé é ícone, não só da gastronomia, mas também das tradições religiosas, históricas e culturais da Bahia. E do Brasil. Em 2004, foi incluído no Livro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Desde então, o ofício das baianas do acarajé está classificado como bem imaterial do país. Diz a certificação do Iphan, órgão federal como a PF:

“A receita tem origem no Golfo do Benim, tendo sido trazida ao Brasil com a vinda de escravos da região. No início, todas as pessoas que produziam e comercializavam o acarajé eram iniciadas no candomblé, numa prática restrita às mulheres, em geral filhas de santo dedicadas ao culto de Xangô e Iansã (Oyá). Durante o período colonial, as negras libertas ou negras de ganho preparavam os quitutes e saíam às ruas de noite, para vendê-los, dando origem ao costume”.

No ano passado, uma batalha judicial foi travada na Bahia, porque representantes de igrejas neopentecostais tentaram mudar o nome do alimento para Bolinho de Jesus, e assim roubar a identidade com as religiões de matriz africana. O Iphan entrou na briga, defendendo lei específica para reservar a denominação ao alimento produzido nos moldes do que a legislação internacional chama de expressões culturais tradicionais. Mesmo vendido como quitute em tabuleiros e bancas na rua, o acarajé (que em iorubá significa “comer bola de fogo”) é preparado seguindo preceitos religiosos.

“Essa forma tradicional (de preparar o acarajé) é um fazer ligado à vinculação com religiões afro-brasileiras e que, muitas vezes, se desdobra como ofício. Há indumentária, procedimentos, rituais, tipo de produto”, declarou ao jornal “Correio da Bahia”, em junho de 2015, a antropóloga Maria Paula Adinolfi, autora dos argumentos jurídicos para proteção do uso do nome pelo Iphan.

Em iorubá, acarajé significa “comer bola de fogo”
Em iorubá, acarajé significa “comer bola de fogo”

Militância pressupõe defesa intransigente de pontos de vista. É por meio dessa atuação enfática – para tantos, exagerada – que reflexões secundarizadas ganham espaço no debate social.  Contudo, em vez de compreender as razões históricas que levaram representantes das religiões de matriz africana a criticar a PF, palpiteiros de redes sociais preferiram desqualificar, ridicularizar, debochar dos argumentos. Houve quem falasse em “fundamentalismo do axé”, num evidente desconhecimento sobre o significado do primeiro termo combinado à provocação gratuita aos muçulmanos.

A miopia em relação às tradições afro-brasileiras tem origem no regime escravocrata do Brasil Colônia e se estende aos dias de hoje, em razão do desprezo do sistema educacional pelo ensino da história e da cultura negras no país. Em janeiro de 2003, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.639, que determina o ensino das duas disciplinas em escolas de níveis fundamental e médio, públicas e particulares. De lá para cá, quase nada mudou. São raros os estabelecimentos em dia com a legislação.

Para piorar, o ensino religioso nas escolas, em geral, se relaciona mais com a catequese (católica ou neopentecostal) do que com o ecumenismo. No Rio, pesquisa do Grupo Ilé Oba Òyó, da Pós-Graduação em Educação da Uerj, descobriu que, de 500 docentes em religião admitidos por concurso em 2004, 68% eram católicos e, 26%, evangélicos. No recém-divulgado Relatório de Combate à Intolerância Religiosa, 5% das agressões por credo partem de professores. Uma ação direta de inconstitucionalidade pedindo que o ensino religioso em escolas públicas seja de natureza não confessional tramita no Supremo Tribunal Federal. Caberá ao STF determinar que modelo de Estado laico o Brasil terá de praticar.

Por desconhecimento, preguiça ou má-fé, os brasileiros assentaram-se no mito da democracia racial, com a conivência da escola e dos livros e da produção audiovisual e do poder econômico. Desde sempre, estudamos a Segunda Guerra Mundial. Fomos treinados (corretamente) a farejar as barbaridades do nazismo e a repudiá-lo. A ponto de o Ministério Público do Rio conseguir no Tribunal de Justiça a proibição da venda e o recolhimento no país de “Minha luta”, livro-manifesto de Adolf Hitler, sob o argumento (justificado) de fomentar a intolerância. Para violações às tradições e à história do povo negro – e também dos indígenas – fechamos os olhos.

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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