Política marca festas de abertura

O ursinho Micha emocionou o mundo, mas por trás dele estava forte mensagem política da União Soviética

Demonstração de força domina história da cerimônia; na Rio 2016 não será diferente

Por Leonardo Valente | ArtigoRio 2016 • Publicada em 5 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 6 de agosto de 2016 - 15:13

O ursinho Micha emocionou o mundo, mas por trás dele estava forte mensagem política da União Soviética
Fogos de artifício no ensaio da cerimônia de abertura da Rio 2016: mensagem brasileira
Fogos de artifício no ensaio da cerimônia de abertura da Rio 2016: mensagem brasileira

Quando na noite desta sexta-feira a tradicional contagem regressiva e os fogos anunciarem o início da cerimônia da abertura da Rio 2016, o Brasil será o principal alvo das atenções de cinco bilhões de pessoas – a Terra tem sete bilhões de habitantes – e, segundo projeções, tema de 40% dos comentários e fotos de todas as redes sociais da internet. A festa que abre as Olimpíadas é a cereja do bolo dos jogos, o segundo evento televisivo mais visto no mundo, atrás apenas da final da Copa do Mundo, um dos principais motivos pelos quais cidades dos cinco continentes se enfrentam ferozmente para se tornarem sede do evento, e historicamente oportunidade muito usada para se passar mensagens políticas e aumentar o prestígio internacional do país sede. Além da obrigação de promover uma festa linda e organizada, o desafio do Brasil em meio a uma enorme crise política, econômica e de identidade é não perder a oportunidade de passar o seu recado.

Na cerimônia de abertura de Berlim 1936, a saudação nazista do público e presença de Hitler

A estratégia é antiga. Inspirado na Copa do Mundo da Itália, em 1934, Hitler mudou radicalmente a forma de se organizar uma cerimônia de abertura. Usou a festa que abriu os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, para mostrar uma nova Alemanha, recuperada da humilhação da Primeira Guerra, belicista e disposta a não ceder em mais nada para as potências europeias. Foi uma cerimônia militarista, em tom grandioso e ao mesmo tempo intimidador. O filme “Olympia”, da cineasta alemã Leni Riefenstahl, mostra exatamente este clima. A inovadora e polêmica Leni, cineasta e documentarista do Reich, registrou como poucas seriam capazes de fazer, tanto a cerimônia como algumas das competições.   

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A cerimônia de abertura do Rio não foi concebida nem no auge do Brasil otimista de 2009, nem no Brasil da crise aguda de 2016. Certamente tem a mistura dos dois. Não sabemos ainda se as ideias iniciais para o evento foram todas transformadas em mensagens, mas as informações que vazaram indicam que a festa terá como eixo principal um alerta ao mundo para as mudanças climáticas.

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Em 1980, Moscou também caprichou nas estratégias simbólicas para aproximar a União Soviética da opinião pública ocidental, em meio a um recrudescimento das hostilidades da Guerra Fria. A linda e inesquecível cerimônia de abertura foi voltada para a emoção e para a disciplina. Em tempos em que comunistas eram conhecidos no Ocidente por serem rudes, passarem fome e viverem tristes por conta do regime apontado como perverso, a ideia era mostrar uma URSS afetuosa, emocional e emocionada, receptiva e ao mesmo tempo muito organizada. O ursinho Micha, mascote dos jogos, e os desenhos formados por placas coreografadas por voluntários cumpriram com eficiência esta missão. Vale ressaltar que as potências ocidentais boicotaram os jogos, oficialmente em protesto contra a invasão do Afeganistão pelos soviéticos, mas de fato para tentarem impedir a propagação de uma mensagem positiva vinda do Leste.

Antes mesmo do show dos soviéticos, os EUA já projetavam os impactos simbólicos das  Olimpíadas por lá, e usaram todo o prestígio e poder político para levarem os jogos seguintes para casa. No Estádio Olímpico de Los Angeles, em 1984, o mundo presenciou a cerimônia da revanche, construída nos mínimos detalhes para mostrar a Guerra nas Estrelas, projeto militar ambicioso contra a URSS, e a Nova Guerra Fria. O astronauta sobrevoando o estádio olímpico, ponto alto da festa repleta de luzes e inovações, foi o símbolo central da mensagem que os EUA queriam passar: de que estavam usando a tecnologia para vencer em definitivo a potência inimiga. A era Reagan não dava mais margem para a coexistência pacífica, e a cerimônia de abertura mostrou nitidamente isso. Em retaliação ao boicote de Moscou, o bloco de países comunistas não participou dos jogos.

O ursinho Micha emocionou o mundo, mas por trás dele estava forte mensagem soviética

Em 1988, a cerimônia da abertura da Olimpíada de Seul deu a tônica dos tempos confusos e sui generis que se avizinhavam: exaltou os valores capitalistas do Tigre Asiático, muito mais do que suas tradições milenares, quase que profetizando a era neoliberal que se instalaria no mundo após a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética.  Já a abertura dos jogos de Barcelona, em 1992, a primeira de uma nova ordem mundial que se instalava, foi a festa da virada da Espanha, provocada pelo sucesso da União Europeia. Todos os elementos da cerimônia exaltaram a volta da antiga potência –  por muito tempo relegada a país pobre – ao hall das grandes nações, graças à união dos povos europeus. Muito mais do que uma cerimônia da Catalunha ou da Espanha, foi uma grande festa para se comemorar a Europa.

Quanto ao uso de símbolos e mensagens políticas, a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Pequim, em 2008, foi a mais impressionante desde a de Berlim, em 1936. Com um roteiro típico de um país que se apresenta ao mundo como grande potência, foi concebida do início ao fim para moldar uma nova imagem da China no mundo. Na primeira parte, fizeram questão de recontar com ares de excepcionalidade a milenar história da nação cujo nome significa “País do Centro do Mundo”. Com shows de tirar o fôlego, mostraram que inventaram o macarrão, a pólvora, o sorvete, e que influenciaram decisivamente o Ocidente.  Na segunda parte, enfatizaram naves espaciais e tecnologia, em shows impressionantes e com tom futurista. A China mostrou um passado glorioso e um presente e futuro igualmente vitoriosos.  

O astronauta na abertura de Los Angeles 1984: ‘guerra nas estrelas’ para mostrar poderio americano

E qual a mensagem que o Rio pretende passar? O Brasil de 2009, que venceu a batalha para sediar a Olimpíada, era um Brasil bem diferente do país de 2016. O primeiro nutria claramente pretensões de se tornar uma das nações mais importantes e influentes do planeta. O segundo parece ter esquecido esse objetivo ao se atolar em uma de suas maiores crises de identidade, provocada pelos graves problemas políticos e econômicos. Em 2009, os envolvidos na organização davam a entender que o Brasil em 2016 passaria a mensagem de ser uma nação multiétnica, moderna e sustentável, aberta a todos, e o lugar das grandes oportunidades.

A cerimônia de abertura do Rio não foi concebida nem no auge do Brasil otimista de 2009, nem no Brasil da crise aguda de 2016. Certamente tem a mistura dos dois. Não sabemos ainda se as ideias iniciais para o evento foram todas transformadas em mensagens, mas as informações que vazaram indicam que a festa terá como eixo principal um alerta ao mundo para as mudanças climáticas. Este era um dos objetivos, e faz parte de um antigo projeto de construção de imagem internacional do país. Se ao menos ele for bem transmitido, em uma festa digna de elogios, os dividendos simbólicos serão altos, especialmente em tempos onde as notícias que circulam sobre o país, infelizmente, não são as melhores.       

Leonardo Valente

Escritor, jornalista e professor de Relações Internacionais e Geopolítica. Diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ).

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