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‘Senhora trans’: aos 60 anos, pedagoga Harilda Mastranghi vive em abrigo no Rio
Especial ‘Com Nome, Mas Sem Endereço’ | Cearense e atualmente cabeleireira, Harilda chegou ao Rio sem ter onde ficar. Após tempo encarcerada, encontrou abrigo e, hoje, sonha chegar aos 70 anos.
Meu nome é Harilda Mastranghi Suplicy — Harilda vem de Harildo, um ex-namorado meu, Mastranghi de Matilde Mastranghi, porque sempre fui fã dela, e Suplicy de Marta Suplicy, uma ex-prefeita de São Paulo que sempre admirei. Estou em estado de vulnerabilidade no momento, mas tenho conhecimento e formação. Tenho o primeiro e o segundo grau, fiz curso de inglês e sou formada em Pedagogia, mas não exerci a profissão por conta da minha sexualidade. Fiz um curso de cabeleireiro e atualmente é essa a minha ocupação. Sou uma senhora trans, nascida em Crateús, uma cidade do interior do Ceará. *Depoimento dado por Harilda e transcrito pela repórter Francielly Barbosa.
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Lá, fui criada pelos meus pais adotivos, mas não os culpo pelo meu “homossexualismo”, por hoje eu ser uma senhora trans — na época, se usava o termo “homossexualismo”*. Sempre fui bem tratada, eles me falavam que eu não seria a primeira, nem a última, e eles olhavam por mim, tinham medo de eu ser criticada e discriminada, eles me protegiam. Era uma família simples, eles me diziam que não tinham nada para oferecer, mas que os estudos seriam a única herança que eu iria herdar, foi quando fiz o primeiro e o segundo grau, porque diziam que com os estudos eu conseguiria vencer lá fora.
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Veja o que já enviamosQuando me assumi primeiro homossexual, que hoje entendo como “trans”, era muito envolvida com a arte e com a cultura. Fazia parte do centro cívico do colégio, então tinha muito contato com arte e educação, mas naquela época era meio complicado porque a família não aceitava, existia todo um preconceito. Hoje em dia também existe preconceito, mas na época, ainda mais no Nordeste, era muito mais forte.
Tenho uma história “engraçada” sobre isso. Quando concluí o segundo grau, passei no concurso do Banco do Brasil e da Caixa Econômica em décimo quinto lugar, mas não fui aceita porque já tinha me assumido como travesti. Meu pai chegou a correr atrás, mas tinha muito preconceito na cidade. Me reprovaram na prova de datilografia, mas o motivo real foi o preconceito. Na época em que me assumi como travesti, se alguém se vestia com “roupas de mulher” era presa. Era muita discriminação, você apanhava na rua.
Hoje estou aqui, graças a Deus com 60 anos, porque dizem que as travestis brasileiras não vivem mais do que 30 anos. Cheguei aos 60 e agora quero chegar aos 70 melhor ainda. Como estou em estado de vulnerabilidade, futuramente quero ter uma renda melhor, qualquer que seja, para que eu me cuide e chegue pelo menos aos 70 bem aparentemente. “Ah, ela está velha, mas está bonita”, coisa desse tipo.
Decidi vir para o Rio de Janeiro quando vi que estava sem espaço de emprego, de acesso a nada, então teria que ir para o Sudeste do país. Venderam a casa do meu pai e me deram o dinheiro para fazer a minha vida, aí migrei para o Rio. Quando cheguei aqui, em 1993, não conhecia ninguém, não sabia nem mesmo o que era o Rio de Janeiro, e fiquei sem onde ficar.
Cheguei na Rodoviária Novo Rio e como tinha o dinheiro da venda da casa do meu pai, se nada desse certo eu poderia voltar. Aí vi um ônibus em que estava escrito Sepetiba 380, pensei “acho que vou nesse ônibus”. Viajei por muitas horas e cheguei em Paciência, lá perguntei pelo Cristo Redentor e pelo Pão de Açúcar, mas me falaram que ali era a Zona Oeste do Rio de Janeiro e esses lugares eram na Zona Sul. Como achei Paciência um bairro parecido com a minha cidade natal, porque na época era bem pacato, decidi ficar ali.
Coincidentemente, conheci outra mulher trans também do Ceará que já estava lá há muitos anos. Me aproximei dela, expliquei que estava chegando do Ceará e pedi indicação de um hotel ou pensão, porque tinha vindo atrás de emprego no Rio de Janeiro. Ela me abraçou, me recebeu e me ofereceu ficar na casa dela. Falei: “Nossa, ficar na sua casa? Eu não te conheço, você não me conhece, não sei da sua índole e você não sabe da minha índole”, mas no fim dei um crédito para ela, mesmo com medo, porque estava com algum dinheiro, que ficava guardado no fundo da bolsa. No fim, morei com essa pessoa por cinco anos.
Era cabeleireira, então comecei a trabalhar com ela, que era envolvida em shows. Tinha o Brazilian Days e algumas amigas dela faziam parte, então me envolvi e fui crescendo. Tive algumas perdas também. Ela voltou para o Ceará e eu fui viver a minha vida. Trabalhei de carteira assinada em um salão em Jacarepaguá, passei 20 anos nisso, e fui me envolvendo com alguns artistas. Trabalhei no Projac — Estúdios Globo, em Jacarepaguá —, na Casa dos Artistas, mas tudo como ponta, não era nada com contrato, mas tinha acesso.
Continuei me envolvendo com esse universo. Veio o Carnaval, o Scala Gay — baile destinado ao público LGBTQIAPN+, mas principalmente às trans e travestis, que acontecia todos os anos. No Scala, tinha a rainha gay, a miss gay, e fui conhecendo essas pessoas. Conheci Luana Muniz, travesti muito conhecida na Lapa, frequentava a casa dela e fiz meu crescimento, mas recentemente fiquei nessa situação de vulnerabilidade, precisando de ajuda.
Ajuda não da família, até porque não tenho mais meus pais, mas tenho uma sobrinha que é uma pessoa maravilhosa e olha por mim. Mas, mesmo nessa situação, não quis voltar para o Ceará. Já me acostumei com o Rio de Janeiro, a minha vida está toda aqui, mas agora recentemente, provavelmente, se eu chegar a um patamarzinho financeiro, vou dar um passeio por lá para pelo menos rever a minha sobrinha, que é a minha tudo. Foi ela que me deu apoio nessa situação.
Fui MEI, tive meu próprio negócio, mas entrei no laço de uma pessoa que era a minha vizinha. Ela me pediu para cuidar do garoto dela, de 14 anos, e cuidei dessa pessoa, mas ela coagiu esse menino para dizer que eu estava o aliciando. Foi horrível. Fui presa, e na mesma noite invadiram o meu apartamento — morava em uma comunidade atrás do cemitério do Pechincha. Levaram tudo, perdi tudo, fiquei sem nada.
Fiquei um ano e onze meses na cadeia até provar a minha inocência, mas foi garantido na justiça que não aliciei o garoto, que sequer toquei no menino. Quem me salvou foi a minha sobrinha, que tinha uma advogada conhecida aqui no Rio, foi ela quem me tirou da cadeia. Fui absolvida por unanimidade por cinco juízes e fui inocentada. Aí consegui reverter as coisas, porque tinha sofrido uma transfobia.
Lá dentro, conheci uma pessoa que trabalhou no Centro Provisório de Atendimento (CPA IV) e me disse: “Harilda, você não vai ficar na rua, você vai procurar o CPA IV”. Ela escreveu tudo para mim, e segui com o que ela me disse. Saí do presídio, fui para a Central, procurei o Centro de Referência Especializado de Assistências Social (Creas) e lá conseguiram uma vaga para mim no CPA IV. Estou acolhida lá até hoje, o abrigo é um espaço onde posso descansar, me alimentar, tomar um banho, porque nem conhecia isso. Na minha época não existia isso.
Se não tivesse corrido atrás e não tivesse conhecido essa pessoa, estaria na rua, ou talvez tivesse voltado para o Ceará. Talvez, não sei. Só que eu não quis voltar, minha vida está toda aqui no Rio. Agora estou aguardando uma cirurgia de catarata para poder voltar a trabalhar, porque tenho uma profissão também, e estou correndo atrás para pelo menos ter alguma coisa.
Fiz 60 anos agora, em 11 de abril. O importante é que estou aqui, tenho muitas histórias, são inenarráveis as histórias, inúmeras, mas estou bem comigo mesma, apesar da situação de transfobia que passei. Imagina, na época em que estamos, passar por isso? Eu já sofria com isso desde a época em que me entendi trans. Felizmente minha inocência foi provada, tem três meses que fui liberada, isso aconteceu em fevereiro de 2022.
Sou uma senhora trans, me apresento como “senhora trans”, mas, na realidade, sou travesti. Por conta da idade e pela atualidade, me apresento assim.
— Senhora trans. A senhora. — Risos.
*Em 1990, a OMS retirou da lista internacional de doenças o termo “homossexualismo”, a partir de então substituiu-se o termo por “homossexualidade”.
Esta reportagem faz parte da série especial “Com Nome, Mas Sem Endereço”. Clique na foto abaixo para conferir mais histórias.
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Estudante de Jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF), é fascinada por contar histórias com foco em desigualdades sociais, direitos humanos e questões de gênero. Na universidade, integrou o jornal O Casarão, a web rádio Nas Ondas do IACS e o projeto de pesquisa "Mídia, juventude e suicídio: um estudo sobre os padrões de cobertura da morte auto-provocada". Atuou como estagiária de redação na Agência Nossa e de assessoria de imprensa, com foco em divulgação científica, na UFF.