ODS 1
A dor de gerar um bebê incompatível com a vida e a violência de não ter a opção de interromper a gravidez
Documentário em exibição no canal CurtaOn reúne a experiência da diretora, que morava em Portugal e fez um aborto legal, e os depoimentos de seis mulheres que enfrentaram esse drama no Brasil
Em 2020, a documentarista Eliza Capai, grávida de 14 semanas do primeiro filho, recebeu o diagnóstico de que uma malformação tornava o bebê incompatível com a vida, termo médico para dizer que ele morreria ainda durante a gestação ou pouco depois do parto. Foi a partir da filmagem de sua própria experiência que Eliza produziu o documentário chamado exatamente de “Incompatível com a vida”, vencedor da competição brasileira de longas ou médias-metragens do festival É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, e que, desde o começo do ano, está disponível no CurtaOn.
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Mas, apesar do drama, da tristeza e da dor da documentarista guiarem o filme, ela também dá voz a outras seis mulheres que passaram por situações semelhantes na gravidez. Com uma diferença: Eliza Catai, ao engravidar, morava em Portugal e pode interromper a gravidez de forma legal e pelo sistema público de saúde. Suas seis entrevistadas, entretanto, são brasileiras, moradoras em um país onde interromper a gestação de um feto incompatível com a vida é ilegal, inconstitucional.
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Veja o que já enviamosA mistura entre as histórias torna o documentário particularmente doloroso e dramático. De perto, é possível acompanhar em detalhes o sofrimento de Eliza, sentimentos dela e de seu companheiro, o fotojornalista João, a decisão de interromper a gravidez em Portugal. Pelos relatos das mulheres, o documentário retrata tudo que elas tiveram que enfrentar no Brasil. “Fui guiada por dois sentimentos muito diferentes: tristeza e raiva. Não imaginava que era possível ficar tão triste com a perda de uma pessoa tão pequena, de quem eu nunca nem tinha visto o rosto. Senti muita raiva ao pensar que as mulheres, além de enfrentar aquilo que não tem jeito, têm de enfrentar violência do Estado e violência hospitalar”, disse a documentarista em entrevista para o lançamento do filme.
As mulheres entrevistadas, sem direito ao aborto legal, expõem a crueza da comunidade médica neste momento doloroso após a notícia de que seus filhos são incompatíveis com a vida. Uma mulher foi impedida de ver a criança após o parto e passou a noite tentando conseguir, sem sucesso, alguma informação no hospital. Outra foi ameaçada mesmo tendo conseguido na Justiça o direito de interromper a gravidez. “Eu ouvi no hospital: ‘se estiver faltando algum documento, você sai daqui algemada'”, conta uma entrevistada da Bahia. Uma mãe foi orientada a largar o trabalho, encontrar alguém para cuidar das suas duas filhas e montar uma UTI em casa para se dedicar integralmente ao bebê incompatível com a vida.
As entrevistas foram feitas depois de Eliza interromper a gravidez e também depois do fim de seu casamento (o documentário mostra tudo isso). Ela reviu todas as cenas gravadas e decidiu, depois de conversar com o montador Daniel Grispum (a montagem também foi premiada no É Tudo Verdade), buscar mulheres que tivessem passado por situações semelhantes, que, através dos depoimentos, elaboram também suas vivências de dor e luto. São seis mulheres – de diferentes classes sociais, de diferentes pontos do país; em comum, a frustração, a impotência, a dor, o abandono e o medo.
Em emocionado discurso na premiação, Eliza Capai afirmou esperar que o filme seja “um abraço e também catarse para aqueles que passam pelo processo de luto” e que a discussão trazida pelo documentário de quase duas horas ajude a contribuir com a luta pelos direitos reprodutivos no Brasil. “É inaceitável que uma mulher morra a cada dois dias em nosso país em decorrência de abortamentos inseguros. É inaceitável que tantas mulheres morram, percam seus úteros e saúde física e mental como resultado da injusta lei que criminaliza o aborto. Precisamos tirar o debate do aborto do campo da opinião pessoal e da crença religiosa e encará-lo como o que é: um debate sobre saúde pública”, disse a documentarista durante a cerimônia de premiação em São Paulo.
No lançamento do filme nos cinemas, Eliza disse que o filme tem mais dois objetivos principais: acolher mulheres e casais que viveram a situação de ter um bebê incompatível com a vida e sensibilizar a comunidade médico-hospitalar sobre o momento enfrentado por essas mulheres e refletir sobre como cuidar delas. O júri do É Tudo Verdade destacou a sensibilidade do documentário ao explicar a premiação: “Pela coragem de mergulhar de maneira pessoal e poética num tema delicado e urgente, trazendo à luz a realidade de muitas mulheres e a urgência da discussão sobre direitos reprodutivos no Brasil”. Essa maneira pessoal e poética da documentarista pode ser testemunhada por quem assistir o filme na plataforma de streaming CurtaOn (que também está abrigada no Prime).
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade