O café do próximo

Triste a cidade que precisa trancar as portas das salas de aula, lacrar os remédios vendidos nas farmácias e ignorar o próximo

Por Agostinho Vieira | ArtigoODS 11 • Publicada em 6 de junho de 2023 - 11:42 • Atualizada em 25 de janeiro de 2024 - 16:59

No charmoso Café Severino, no Leblon, o café do próximo segue resistindo, mas anda em baixa. Foto Divulgação

A primeira vez que conheci a história do “café do próximo” foi exatamente na Livraria Argumento, no Leblon. Mais precisamente no charmoso Café Severino, que fica nos fundos da loja. A tradição teria começado em Praga, na República Tcheca, onde era chamado de “café pendente”. Um personagem do livro “The Hanging Coffee”, do escritor tcheco Jan Burian, entra num bar, toma um café e, na hora de pagar a conta, paga dois, explicando para a garçonete: “Pago o meu e deixo um pendente”. O simpático gesto se espalhou por alguns lugares do mundo: o cliente toma um café, paga dois e ajuda os desprevenidos que chegam sem trocado. Em um pequeno quadro negro pendurado na parede as garçonetes se encarregam de anotar o número de cafés disponíveis. Não é necessário brigar, basta dizer que quer um café do próximo. Para mim, um bom sinônimo de civilização. Já bebi alguns de graça no Severino e já paguei vários também.

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Na semana passada, fui tomar a minha vacina da gripe no posto de saúde da Gávea e passei pela Argumento. Tomei um café e pedi para deixar o do próximo pago. A garçonete fez uma cara de surpresa, como seu eu fosse tcheco: “não tem muita gente pagando o café do próximo?”, perguntei. “Não tem muito não, mas eu também sou nova aqui e não sei direito como fazer”. Sanada a dúvida inicial, fui confirmar com a gerente se o próximo estava mesmo em baixa. Ela me explicou que as vezes tem semanas que fica sem nada mesmo, mas também tem dias em que aparece alguém que paga 11 cafés de uma vez. Achei uma pena. Seria o fim da esperança? Paramos todos de acreditar?

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Alguns vão dizer que isso é bobagem, romantismo, que estou fora da realidade. Afinal de contas, com o preço pago por um “café do próximo” no Leblon dá para tomar um pingado na Tijuca, comer um pão na chapa e ainda sobra troco. É verdade. Mas não estamos falando de preço, estamos falando do próximo. A ideia de deixar um café pago para quem vier depois poderia ser aplicada perfeitamente na Estrela do Andaraí ou na Rainha do Meier, duas padarias ótimas do subúrbio. Basta ajustar os preços à realidade local.

A Academia do Café, em São Paulo, também adota o café do próximo: "gentileza gera gentileza". Foto Divulgação
A Academia do Café, em São Paulo, também adota o café do próximo: “gentileza gera gentileza”. Foto Divulgação

Minutos antes de entrar na Argumento eu tinha passado na farmácia para comprar um remédio. A atendente, muito simpática, perguntou se eu precisava de mais alguma coisa. Eu disse que não e ela colocou o remédio numa sacola plástica, lacrada, com um alarme na ponta. Daqueles que apitam na saída das lojas de roupa. Fiquei curioso: “Você precisa mesmo colocar o remédio nessa sacola? Eu já estou indo para o caixa, já vou pagar”, indaguei. “Desculpe, moço, mas não é nada contra o senhor não, é ordem do patrão, tem muita gente que pega o remédio, bota no bolso e sai sem pagar”, explicou. Não sou ingênuo a ponto de achar que isso não aconteça, sei que acontece, mas ter “MUITA GENTE que pega remédio e sai sem pagar” me assusta um pouco. Desanimador.

Aqui no #Colabora sou conhecido como um otimista incorrigível, um caso patológico, do tipo de acha que os bons são maioria e que acredita que o mundo pode ser mais criativo, tolerante e generoso. Ando revendo esses conceitos. Desde março estou fazendo um curso na Escola de Comunicação, da UFRJ. Logo no início reparei que um grupo de alunos, eu entre eles, chega um pouco mais cedo e fica esperando em pé no corredor. Até que o professor apareça com as chaves, abra a porta e deixe todo mundo entrar na sala. Depois da terceira ou quarta vez resolvi perguntar por que a porta não ficava aberta para os alunos entrarem e se sentarem logo. Parecia uma boa pergunta, óbvia: “Não dá, não é possível, tem gente que rouba as coisas da sala”, me respondeu o professor, sem pensar duas vezes. É sério? Vem meteoro. Para o mundo que eu quero descer.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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