A tecnologia influenciando a arte

“Deep Face”, série de Douglas Coupland, critica a ferramenta de reconhecimento facial

Mostra reúne peças de nativos digitais e de pioneiros que anteviram um mundo hiperconectado

Por Claudia Sarmento | ODS 9 • Publicada em 17 de fevereiro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 24 de fevereiro de 2016 - 13:39

“Deep Face”, série de Douglas Coupland, critica a ferramenta de reconhecimento facial
"Deep Face", série de Douglas Coupland, critica a ferramenta de reconhecimento facial
“Deep Face”, série de Douglas Coupland, critica a ferramenta de reconhecimento facial

Cinco décadas antes de andarmos por aí agarrados a nossos smartphones clicando, editando e postando imagens nas mídias sociais, um grupo de artistas visionários já estava preocupado em explorar as possibilidades multimídia dos primeiros computadores e em debater o impacto da tecnologia. Uma mostra organizada de forma inversamente cronológica, começando pela era dos selfies e terminando na década de 60, como num túnel do tempo, inaugurou no Leste de Londres o circuito das grandes exposições de 2016 na capital britânica.

A construção de novas super-rotas eletrônicas vai se tornar algo ainda maior, uma rede de telecomunicações que opera com grande cobertura, satélites continentais, ondas, e mais tarde por cabos de fibra ótica. Eventualmente, a telecomunicação deixará de ser um mero lubifricante que mantém a engrenagem funcionando. Ela se tornará o nosso trampolim para novos e surpreendentes esforços humanos.

A exposição “Electronic Superighway (2016-1966)”, na centenária Galeria Whitechapel, uma das mecas da arte contemporânea internacional, mostra como as artes visuais vêm se misturando à tecnologia e evoluindo junto com ela, sem deixar de refletir de forma provocativa sobre um mundo cada vez mais dependente de gadgets. A mostra, em cartaz até 15 de maio, reúne mais de cem peças de artistas da nova geração, ou seja, nativos digitais, e de pioneiros, que já vislumbravam um mundo hiperconectado muito antes de Steve Jobs ser ícone pop.

“A construção de novas super-rotas eletrônicas vai se tornar algo ainda maior, uma rede de telecomunicações que opera com grande cobertura, satélites continentais, ondas, e mais tarde por cabos de fibra ótica. Eventualmente, a telecomunicação deixará de ser um mero lubifricante que mantém a engrenagem funcionando. Ela se tornará o nosso trampolim para novos e surpreendentes esforços humanos”, escreveu o coreano Nam June Paik, considerado um dos fundadores da vídeo-arte, num projeto para a Fundação Rockfeller. A data? 1974.

Sua instalação “Internet dream” é uma das atrações da exposição na Whitechapel: uma hipnótica parede com 52 monitores que exibem imagens contínuas como se fosse um gigantesco patchwork eletrônico. A vídeo-escultura, de 1994, já demonstrava uma preocupação com a sobrecarga de informação instantânea que atingiu o auge com a explosão das mídias sociais.

Mas é na era atual que a exposição começa e, já na primeira sala, fica claro como a internet está revolucionando a arte, seja como tela ou como tema. Logo na entrada o visitante se depara com uma foto imensa de um traseiro feminino que serve como pano de fundo para uma troca de mensagens de texto meio sem sentido. A obra, de 2015 – embaralhando arte e trivialidade, público e privado – é do suíço Olaf Breuning. Difícil não pensar em Kim Kardashian e sua foto que “quebrou a internet”…

O escritor e artista canadense Douglas Coupland, por sua vez, assina uma série de retratos com rostos cobertos pelas formas geométricas de Mondrian. A série “Deep face” é inspirada nos sistemas de reconhecimento facial que permitem a marcação de nomes no Facebook, uma técnica que provoca questionamentos complexos sobre vigilância e o direito ao anonimato no mundo digital.

Já a argentina Amalia Ulman usou o Instagram para criar uma narrativa ficcional. Durante vários meses de 2014, ela incorporou uma personagem – uma garota do interior que queria virar modelo em Los Angeles – e contou sua história via posts e selfies. A série “Excellences & Perfections” começou com legendas bobinhas (“Aprendo principalmente com livros e filmes”), fotos de gatos fofos e morangos em forma de coração. Aos poucos, as imagens foram adquirindo um tom depressivo, revelando uma obsessão autodestrutiva com o estilo de vida das it girls da metrópole americana. Ao desenvolver sua performance virtual, que atraiu cerca de 90 mil seguidores, Amalia recebia tanto comentários de incentivo quanto de escárnio. Tudo, com exceção da reação do público, não passava de um script.

Se hoje vivemos nessa tremenda confusão entre vida real e virtual, em 1979 a artista americana Lynn Hershman Leeson já explorava o assunto numa das primeiras produções artísticas interativas da História, com base na tecnologia do disk laser. A instalação “Lorna”, que também pode ser vista na Whitechapel, retrata uma mulher que passa quatro anos sem sair de casa, grudada na TV numa solidão profunda. Com um controle remoto, o público pode escolher o destino da protagonista, a quem vemos através de imagens de TV. O cenário do apartamento de Lorna é datado, típico dos anos 70. Mas Lynn já experimentava ali com as técnicas que um dia permitiriam os videogames e avatares. A diferença é que Lorna – por mais isolada que estivesse – parece inocente se comparada às celebridades que nascem e morrem, compartilhando tudo, nas comunidades virtuais do século 21.

A interseção de arte e tecnologia é um assunto que anda mobilizando cada vez mais os ingleses. O Royal College of Arts – que lidera a lista das melhores universidades de design do mundo – anunciou recentemente um plano para construir um novo campus, avaliado em cem milhões de libras, totalmente voltado para o assunto. O governo britânico prometeu ajudar, por apostar no potencial de jovens profissionais que consigam misturar soluções tecnológicas e criatividade artística. Vamos torcer para que eles consigam fazer isso sem perder o olhar crítico.

Claudia Sarmento

Jornalista, PhD em Mídia e Comunicação pela Universidade de Westminster e professora visitante do Departamento de Humanidades Digitais do King's College de Londres.

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