Só duas em cada dez meninas gestantes em privação de liberdade conseguem habeas corpus

Jovem gestante na cadeia: 5esistências no Judiciário impede execução de decisão do STF garantindo substituição de internação por medida socieducativa em regime aberto para adolescentes infratoras (Foto: Reprodução – Documentário Nascer nas Prisões)

Resistência no Judiciário impede execução de medida do STF garantindo substituição de internação por medida socieducativa em regime aberto e de prisão preventiva por domiciliar

Por Adriana Amâncio | ODS 16ODS 5 • Publicada em 7 de março de 2024 - 09:47 • Atualizada em 12 de março de 2024 - 09:43

Jovem gestante na cadeia: 5esistências no Judiciário impede execução de decisão do STF garantindo substituição de internação por medida socieducativa em regime aberto para adolescentes infratoras (Foto: Reprodução – Documentário Nascer nas Prisões)

Entre os anos de 2019 e 2022, apenas duas de cada dez meninas gestantes ou puérperas sob custódia ou restrição de liberdade em unidades socioeducativas conseguiram a liberdade através do habeas corpus coletivo 143.641. Os dados são da pesquisa “Adolescência, maternidade e privação de liberdade: mães e gestantes no sistema socioeducativo entre 2018 e 2021”, levantamento produzido pela pesquisadora e professora Jalusa Silva, da Universidade de Brasília (UNB), com dados do Instituto Alana. Do público elegível ao recurso, as gestantes são as maiores beneficiadas, aponta ainda o estudo.

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O habeas corpus coletivo substitui a prisão preventiva por domiciliar para gestantes e mães de crianças com até 12 anos. No caso de meninas que cumprem medidas socioeducativas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e Adolescente, ele substitui a internação provisória por medidas socioeducativas em meio aberto. A medida foi concedida pela 2ª turma do Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2018, em uma votação que resultou em um placar de quatro votos a um. 

Muitos julgam que a adolescente não tem bom exemplo a dar à filha por ter praticado um ato infracional, ou seja, a adolescente é completamente reduzida ao ato infracional cometido. Por isso, preferem mantê-las, mesmo gestantes, nas unidades de internação

Pedro Mendes
Advogado

Na avaliação do advogado do Instituto Alana, Pedro Mendes, as restrições impostas à concessão do habeas corpus coletivo é fruto da “forte influência da doutrina do menorismo no Estado brasileiro, que, em vez de seguir a proteção integral prevista no ECA , prioriza a punição.” O especialista, que atuou no levantamento de dados, afirma que, mesmo o Artigo 227 da Constituição Federal considerando dever do Estado assegurar o direito ao convívio familiar às crianças e adolescentes, a privação de liberdade é priorizada pelo Judiciário. 

O advogado também considera que há vieses classistas e machistas nas análises da Justiça. “Muitos julgam que a adolescente não tem bom exemplo a dar à filha por ter praticado um ato infracional, ou seja, a adolescente é completamente reduzida ao ato infracional cometido. Por isso, preferem mantê-las, mesmo gestantes, nas unidades de internação”, observa.

A medida de internação é aplicada em casos de ato infracional gravíssimo. Ela é destinada a adolescentes com idade entre 12 e 18 anos e tem duração máxima de três anos. No direito socioeducativo, essa medida tem uma dupla camada: a pedagógica e a punitiva. Das duas, a camada pedagógica é predominante. Na avaliação de Pedro Mendes, ao priorizar a privação de liberdade em unidades socioeducativas, o Judiciário brasileiro desconsidera o caráter pedagógico. “A gente sabe que as unidades de internação não são pedagógicas, não ressocializam”, frisa. 

Para se ter uma ideia, relatórios de inspeções realizadas por entidades e órgãos públicos, em 2017, apontavam casos de tortura, superlotação, falta de atividades de ressocialização e estrutura precárias nas unidades de internamento brasileiras. Em junho de 2019, Pernambuco tinha 1049 internos para 702 vagas. 

O advogado do Instituto Alana, Pedro Mendes, pondera que de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a medida socioeducativa de internação provisória tem duração de apenas 45 dias, o que seria insuficiente se comparado ao período de uma gestação. 

Uma forma de garantir que as adolescentes grávidas possam acessar o habeas corpus coletivo é, segundo ele, “adotar medidas socioeducativas em meio aberto, a exemplo da prestação de serviço à comunidade ou considerar a extinção da medida, levando em conta que a internação deve ser aplicada em casos de ato infracional gravíssimo e o impacto da privação da liberdade na vida da adolescente e da criança é alto”, complementa ele.

Adolescente grávida atrás das grades Só duas em cada dez meninas gestantes em privação de liberdade conseguem habeas corpus (Foto: Reprodução Documentário Nascer nas prisões)
Adolescente grávida atrás das grades Só duas em cada dez meninas gestantes em privação de liberdade conseguem habeas corpus (Foto: Reprodução Documentário Nascer nas prisões)

Mulheres também enfrentam dificuldades

A ex-catadora de recicláveis Rosimere Pires dos Santos, de 40 anos, cria a neta Jennifer Gabriela Pires, de 9 anos, filha de Geane Gabriela, de 24, que está sob custódia na Unidade Prisional Feminina Bom Pastor, localizada em Recife, Pernambuco. Além de Jennifer, Geane tem outros três filhos, que vivem sob a responsabilidade de outras pessoas. 

Eu já vi juízes falarem que a mulher gestante tinha que continuar presa para garantir que ela realizasse o pré-natal, oferecido pela unidade prisional. A gente sabe que a realidade das prisões brasileiras é de falta de estrutura. Os médicos que atendem são voluntários. A medida do STF de conceder o habeas corpus é positiva, mas, na ponta, não está sendo aplicada

Luciana Silva Garcia
Doutora em Direito e professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)

Em prisão preventiva, Geane é elegível ao habeas corpus, mas não teve acesso ao benefício. “Eu pensava que lá eles viam quem tem direito e mandava para fora ”, explica Rosimere. Além desse direito, a renda do Bolsa Família, outra política pública a que ela tem direito, mesmo estando encarcerada, também não foi concedida. 

Assim, a renda do Bolsa Família de R$ 1.925, contando com os complementos de R$ 150 para cada crianças de até 6 anos e de R$ 50 para crianças acima de 7 anos, é a única para garantir o sustento das 11 pessoas que moram no barraco de madeira, localizado nos Coelhos, bairro da periferia do Recife. 

Doutora em Direito e professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Luciana Silva Garcia afirma que entre as mulheres adultas, os critérios adotados pelos juízes na ponta estão cada vez mais restritivos. “Eu já vi juízes falarem que a mulher gestante tinha que continuar presa para garantir que ela realizasse o pré-natal, oferecido pela unidade prisional. A gente sabe que a realidade das prisões brasileiras é de falta de estrutura. Os médicos que atendem são voluntários. A medida do STF de conceder o habeas corpus é positiva, mas, na ponta, não está sendo aplicada”, avalia 

Jovem encarcerada amamenta filho: mulheres com bebês têm dificuldade em conseguir habeas corpus e seguir para prisão domiciliar (Foto: Reprodução Documentário Nascer nas prisões)
Jovem encarcerada amamenta filho: mulheres com bebês têm dificuldade em conseguir habeas corpus e seguir para prisão domiciliar (Foto: Reprodução Documentário Nascer nas prisões)

O impacto do cárcere nas crianças 

A gravidez por trás das celas gera impactos na formação do feto, assim como o nascimento e a convivência com a mãe até os seis meses, período prioritário da amamentação, afirma Luciana Silva Garcia. “Você tem uma mulher presa, numa gestação que aconteceu na cadeia. A dinâmica da cadeia é muito difícil. Essa cadeia não oferece condições minimas para essa criança”, explica.

Após os seis meses de vida, a criança é retirada do convívio com a mãe e segue sendo impactada pelo cárcere. “Em geral, essa criança é entregue a uma família próxima, via de regra, avó ou tia materna e quando não há membros na família extensa, vão para uma instituição de acolhimento”, explica. Em casos como este citado por Luciana, a criança sai de um cárcere para a orfandade. 

Em muitos casos, essa criança vai parar em uma família, que já vive em condição de pobreza, portanto não tem como  arcar com as suas despesas.  É o caso da ex-catadora Rosimere, que tem 11 filhos e, agora, está responsável pela neta, mas não recebe o benefício do Bolsa Família a que a mãe dela têm direito.

As crianças na primeira infância têm o direito, como previsto nos artigos 227 da Constituição Federal e 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).  Na prática, é comum que esse direito seja violado quando se trata de filhos de crianças encarceradas. “Aqui, no Distrito Federal, mulheres e homens encarcerados com filhos só têm o direito de vê-los três vezes por ano, em datas especiais. Olha que loucura! O Estatuto da Criança e Adolescente defende o direito da criança conviver com os pais. Muitas vezes, essa prisão não tem um lugar adequado para que essa mãe possa receber a criança. Essa visita acontece, na área central, na quadra, em um espaço comum da prisão, não tem uma brinquedoteca, não tem um lugar que possa minimizar o fato de uma criança visitar os pais em uma prisão”, pontua a professora Luciana.

Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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