Mutilação genital feminina: epidemia longe do fim

Mulheres – parteiras e até mães – na cadeia em Burkina Faso sob acusação de mutilação genital de meninas: África concentra casos (Foto: Issouf Sanogo/AFP)

Documento da Unicef afirma que o mundo tem 200 milhões de mulheres vítimas da prática e alerta que redução no número de casos é lenta

Por José Eduardo Mendonça | ODS 16ODS 5 • Publicada em 1 de abril de 2020 - 06:43 • Atualizada em 1 de abril de 2020 - 10:31

Mulheres – parteiras e até mães – na cadeia em Burkina Faso sob acusação de mutilação genital de meninas: África concentra casos (Foto: Issouf Sanogo/AFP)

A mutilação genital feminina (FGM, na sigla em inglês for Female Genital Mutilation) levará séculos para ser erradicada, apesar de líderes mundias prometerem que a prática terminará em 2030. Esta é a sombria afirmação de um relatório da Unicef publicado recentemente: o documento aponta que pelo menos 200 milhões de mulheres no mundo estão mutiladas hoje, com sérios danos à saúde. 

A FGM envolve tipicamente a remoção parcial ou total da genitália externa da mulher. A intervenção ocorre legalmente em 31 países, mas a Unicef diz que pode ser praticada em até cerca de 50 nações. Os dados disponíveis de pesquisas mostram que a prática da mutilação está altamente concentrada em uma faixa de países do Chifre da África à costa atlântica do continente, em áreas do Oriente Médio como Iraque e Iêmen e em alguns países da Ásia como Indonésia e Maldivas, com grandes variações de incidência. A prática é quase universal na Somália, Guiné e Djibuti, com níveis em torno de 90%, enquanto afeta apenas pouco mais de 1% das adolescentes em Camarões, Maldivas e Uganda.

A queda mais dramática em décadas recentes é verificada nas Maldivas, conjunto de ilhas no sudeste asiático. Lá, a mutilação afetava quase 40% de mulheres e meninas, mas agora está virtualmente erradicada. Entretanto, a FGM ainda é tão comum quanto há 30 anos na Somália, Mali, Gambia, Guiné Bissau, Chad e Senegal. 

De acordo com a agência da ONU, o percentual das meninas entre 15 a 19 anos submetidas à mutilação caiu de 51% em 1985 para 27%. Não é o suficiente: o número ainda é muito se levado consideração a crescente população de garotas. “Os países que fazem progressos precisariam obtê-los dez vezes mais rápido para alcançar a meta de 2030. Levará séculos se tudo continuar como está”, afirma a Unicef em sua análise.

Nas últimas décadas, 30 países africanos aprovaram leis que tornam a mutilação um crime, uma violação de direitos da infância e de direitos humanos ou uma transgressão contra a integridade física, permitindo que autoridades possam aprisionar os transgressores, com penas entre cinco e 20 anos, e aplicar multas altas. Segundo o relatório da Unicef, em 2016, mais de três mil comunidades, com cerca de 8,5 milhões, fizeram declarações públicas contra as mutilações.

Mas, em muito lugares onde foi banida, a mutilação genital feminina continua ocorrendo por falta de informação e por falta de políticas públicas em áreas rurais onde é mais comum. Em Burkina Faso, por exemplo, o país proibiu a mutilação e ameaçou aqueles culpados de praticá-la com até três anos de prisão. Embora a Unicef note que as taxas diminuíram entre as adolescentes desde 1996 quando a prática virou crime, ainda há muitas jovens em risco. Em setembro do ano passado, cerca de 50 delas foram hospitalizadas no noroeste do país por consequência de mutilações.

Protesto em Marselha, na França, contra a mutilação genital feminina: 200 milhões de vítimas e redução lenta nos números (Foto: Theo Giacometti/AFP)
Protesto em Marselha, na França, contra a mutilação genital feminina: 200 milhões de vítimas e redução lenta nos números (Foto: Theo Giacometti/AFP)

E a FGM persiste em países como o Quênia – onde apesar da proibição, muitas mulheres e garotas são sujeitas à violência. Em algumas áreas do país, a proibição levou à adoção de cerimônias alternativas, como danças e outras celebrações. No entanto, no nordeste do país, a prática é ainda disseminada; muitas pessoas na região vivem em comunidades rurais ou pastorais, onde séculos de tradição e estruturas não oficiais ainda passam por cima da lei nacional. 

Quase sempre praticada por líderes comunais ou parteiras, a mutilação é, com frequência, praticada como rito de passagem para as adolescentes. Mas os males decorrentes envolvem sérias complicações de saúde, incluindo infecções crônicas dos rins, sexo doloroso e dificuldade nos partos. Pior: as operações de MGF são feitas com lâminas de barbear e facas de cozinha. Na maioria dos países com a prática disseminada, as meninas foram mutilada antes dos cinco anos. No Iêmen, 85% das mulheres sofreram a mutilação nas primeiras semanas de vida. “Houve um declínio geral na incidência da mutilação genital feminina nas últimas três décadas, mas nem todos os países fizeram progressos e o ritmo do declínio foi desigual”, alerta o documento da Unicef.

José Eduardo Mendonça

Jornalista com passagens por publicações como Exame, Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo. Criador da revista Bizz e do suplemento Folha Informática. Foi pioneiro ao fazer, para o Jornal da Tarde, em 1976, uma série de reportagens sobre energia limpa. Nos últimos anos vem se dedicando aos temas ligados à sustentabilidade.

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