Silvio Meira: ‘Estamos em uma armadilha chamada Planeta Terra’

Silvio Meira em sua estação de trabalho, no Recife: pesquisador, pensador e tocador de alfaia em blocos de maracatu. Foto Arquivo Pessoal

Cientista e fundador do Porto Digital fala sobre saúde, educação e mudanças climáticas: ‘Temos 1,7 mil coronavírus desconhecidos esperando por nós’

Por PH de Noronha | ODS 3ODS 4 • Publicada em 8 de abril de 2021 - 09:25 • Atualizada em 14 de abril de 2021 - 09:19

Silvio Meira em sua estação de trabalho, no Recife: pesquisador, pensador e tocador de alfaia em blocos de maracatu. Foto Arquivo Pessoal

Entrevistar Silvio Meira não é tarefa fácil. Dele, não espere respostas monossilábicas. Para qualquer pergunta, Meira, um cientista que pensa de forma ampla, complexa e macrodisciplinar, responderá como se estivesse argumentado uma tese diante de uma banca científica. Dá trabalho ao entrevistador, suas respostas são longas e densas. Mas, ao mesmo tempo, são ideias fascinantes e inovadoras. Que ele consegue expressar de forma clara, sem ser prolixo.

Seu currículo já consome um parágrafo grande da entrevista. Silvio Meira é engenheiro eletrônico, doutor em Ciência da Computação pela universidade de Kent (Inglaterra), pesquisador, pensador, professor universitário, empreendedor e tocador de alfaia em blocos de maracatu de Recife e Olinda. Não necessariamente nessa ordem. Paraibano de Taperoá (pequena cidade de uns 15 mil habitantes, perto de Campina Grande), Meira foi um dos fundadores do Porto Digital no Recife (maior parque tecnológico urbano do país) e do Cesar – Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (instituto de pesquisa e inovação sem fins lucrativos, que fica dentro do Porto Digital). É também fundador da TDS – The Digital Strategy Company, que se propõe a transformar as empresas para ajudá-las a inovar e competir digitalmente.

Hoje, conseguimos sequenciar em semanas a genética de um dos vírus mais letais da história. As melhores vacinas são vacinas de informação, baseadas em RNA mensageiro. Estamos falando de vacinas que são um código, usadas para “reprogramar” o seu corpo. Em um futuro breve vamos poder, por exemplo, zerar a miopia, ou introduzir resistências à covid-19 diretamente no estágio celular pré-fetal

A mente de Silvio Meira navega pelo desenvolvimento humano em quase todos os seus matizes sociais, econômicos, tecnológicos, filosóficos, comportamentais e culturais. Do complexo, ele busca respostas e sinalizações simples para questões básicas do dia a dia, como as vacinas contra a covid-19 e a nova escola figital (física + digital).

Apesar não ser profissional de saúde, a pandemia de covid-19 foi um prato cheio para suas leituras e análises durante o longo confinamento – desde março de 2020, só saiu para dar umas poucas pedaladas e, recentemente, para se vacinar. “Ficamos o ano inteiro em casa, foi um tempo de reflexões, li e escrevi muito.” Quem quiser conferir, é só olhar no blog dele, silvio.meira.com, que tem artigos geniais sobre trabalho, carro autônomo, carnaval, tendências, o futuro etc.

Silvio Meira: "O Brasil tem excesso de alunos de Direito e uma falta enorme de profissionais de computação". Foto Arquivo Pessoal
Silvio Meira: “O Brasil tem excesso de alunos de Direito e uma falta enorme de profissionais de computação”. Foto Arquivo Pessoal

Entrevista com Silvio Meira: a covid-19 e seus impactos sobre nossa vida e o futuro

A pandemia de covid-19 é o evento que mais impactou o mundo desde a Segunda Guerra Mundial, em todos os campos. Mas, ao contrário do conflito de 1939-45, que teve vários alertas nos anos anteriores, ninguém previu essa pandemia. Por quê?

Houve muita incompetência de todos os tipos de agentes públicos e privados. Incompetência e irresponsabilidade. Há décadas sabe-se que animais, especialmente animais selvagens, são repositórios de vírus. E se você mexer com eles, se desarticular o ecossistema deles, eles vão soltar esses vírus. Eles passam por um negócio chamado pressão evolucionária: se meu ambiente está aparentemente difícil para viver, eu vou tentar sobreviver de outra forma. Como se diz em inglês, “I’m gonna jump, I’m gonna jump somewhere” (“Eu vou saltar, vou saltar para algum lugar”). E se a gente estiver por perto, eles vão saltar em cima da gente.

Era possível, então, prever o novo coronavírus?

Já faz algum tempo, como no caso de terremotos, que se espera “the big one”. O Sars-Cov-2 é um vírus de alta infectabilidade e baixa letalidade. Muito mais baixo do que Ebola, ou que um vírus chamado Nipah, que apareceu em regiões limitadíssimas do planeta (particularmente na Índia) e que tem uma taxa de letalidade de até 75% (a taxa do novo coronavírus é abaixo de 5%). Imagine se a gente encontrar um vírus desses na natureza selvagem… Isso não é brincadeira. Se esse Nipah saltar de um repositório animal para outro, vamos enfrentar algo nunca visto antes, que mata três em cada quatro pessoas e que tem uma capacidade de espalhamento muito maior do que o Ebola. Não está fora da razoabilidade pensar que um vírus assim possa surgir. Porque ele existe, está em algum lugar. Há algo como 1,7 milhão de vírus desconhecidos em repositórios animais. Em cada mil, um é coronavírus. Então, estatisticamente, temos 1,7 mil coronavírus que a gente não conhece, que estão lá esperando a gente. E a humanidade está provocando o ecossistema o tempo todo e criando as condições para que essas coisas se espalhem no ambiente ao redor.

Temos uma coisa muito mais complicada que covid-19, que vem se desenvolvendo há 200 anos, que é o aquecimento global. Que as empresas de petróleo já sabiam há 50 anos, mas continuaram incentivando o uso de combustível fóssil. Há coisas totalmente estúpidas do tipo “como a Terra está ferrada, vamos colonizar Marte…”. Cara, o custo de você fazer uma habitação mínima em Marte, seja ela qual for, é ordens de magnitude acima do custo de você desenvolver uma humanidade coerente na Terra. Essa história de Marte, agora, é uma das maiores ideias de jerico do universo

Mas por que ninguém previu?

Porque não temos um sistema antivírus global. Que é um sistema mínimo de vigilância epidemiológica e de virologia, onde se tenha um painel nacional, que é parte de um painel global, e que, na hora que for identificado um Nipah na Índia, todo mundo saiba em tempo real. É preciso um nível de convergência, coerência e transparência internacional para termos esse sistema. Mas com gente como o presidente do Brasil, que acha que podemos viver isoladamente, estamos num nível tal de desagregação internacional, que vamos na direção contrária. Para fazer vacina no Brasil, é preciso insumo da China. A China, para fazer o insumo, precisa alimentar pessoas. E para alimentar pessoas na China, é preciso de insumos que saem do Brasil. Se os países se fecharem neles próprios, não conseguirão fazer nada.

O que nos trouxe a essa pandemia?

No momento, estamos em uma armadilha chamada Planeta Terra. O uso indiscriminado de antibióticos vai gerar bactérias que resistem absolutamente a tudo ao seu redor (exceto à radiação). O uso indiscriminado de conservantes e defensivos vai gerar níveis de câncer que a gente não vai conseguir controlar no sistema de saúde. Porque é “mais barato” destruir o meio ambiente para produzir carne; é “mais barato” destruir floresta para ter palmito industrial. Sempre que é “mais barato”, aí ferra tudo. Porque sempre será “mais barato” fazer a coisa de um jeito que não leva em conta o ecossistema. Esse é o problema. Temos uma coisa muito mais complicada que covid-19, que vem se desenvolvendo há 200 anos, que é o aquecimento global. Que as empresas de petróleo já sabiam há 50 anos, mas continuaram incentivando o uso de combustível fóssil. Há coisas totalmente estúpidas de um certo tipo de capitalismo, tipo “como a Terra está ferrada, vamos colonizar Marte…”. Cara, o custo de você fazer uma habitação mínima em Marte, seja ela qual for, é ordens de magnitude acima do custo de você desenvolver uma humanidade coerente na Terra. Essa história de Marte, agora, é uma das maiores ideias de jerico do universo.

A tecnologia da informação é um caminho para melhorar a saúde, especialmente a saúde pública?

É absolutamente inevitável, mas antes dela ainda há muito a ser feito. Quais são as grandes oportunidades de inovação no sistema de saúde? Primeiro, é preciso criar as condições para que, ao invés de ir para o hospital, você seja acompanhado por um sistema que não precisa de tecnologia, mas que seja um sistema de cuidados de saúde. O SUS (Sistema Único de Saúde) de Cuba é muito mais barato do que o SUS brasileiro, e os cubanos são muito menos doentes do que os brasileiros. Uma parte significativa do investimento em saúde deveria ser na realidade um investimento em educação. Se fizéssemos um investimento no Brasil em urbanismo e moradia, para melhorar a qualidade das cidades e das casas das pessoas nas cidades, esse seria o maior investimento em saúde pública da história do Brasil. Se combinasse isso com um investimento em educação, para as pessoas entenderem o que é uma bactéria, um vírus ou um micróbio… O Brasil é um dos cinco países com a maior incidência de câncer de pênis do mundo. Por quê? Falta de higiene, as pessoas não lavam o pênis… isso em 2021! Educação é uma parte fundamental do sistema de saúde. O sistema de saúde tem que ser acima de tudo um sistema de educação. Educação e saúde têm que trabalhar juntas com a seguridade social. Não adianta colocar inteligência artificial nos hospitais do SUS se as pessoas estão morando em palafitas em cima do esgoto. Você pode aumentar o que quiser em gastos de saúde. Se não resolver as infraestruturas socioeconômicas de desigualdade e desequilíbrio da população, você não vai resolver o sistema de saúde.

Trechos do artigo “A escola figital”, escrito por Silvio Meira e André Neves:

“(…) A natureza participativa de muitas aplicações e atividades sociais na Internet está alinhada a princípios fundamentais de como os seres humanos aprendem, especialmente as práticas de criação, compartilhamento, colaboração e crítica.”

“(…) Na escola figital, as aulas monológicas deram lugar a jornadas dialógicas de aprendizagem: redes de pessoas orquestram o tempo de aprender e constroem mapas, rastros digitais dos seus percursos de descobertas. E a necessidade de decidir o que, e quando, aprender demanda estratégias pessoais, grupais.”

“Mestres e aprendizes encontram novos papéis nas redes de pessoas, dialógicas, nesse retorno à escola das descobertas. Uma escola que não foi desenhada para formar repetidores de verdades, mas para preparar pessoas a aprender o tempo todo, no seu contexto. E para aprender a aprender, em qualquer contexto.”

“A escola figital, portanto, está longe de representar o fim da escola, mas o seu resgate da escola do obscurantismo medieval perpetuado por séculos e repetido como se fosse, ela, a escola medieval, a única experiência escolástica possível e realizável.”

“No tempo de aprender, o ponto de partida não é a resposta, mas as questões a serem exploradas. Escolas dialógicas adotam posturas didáticas invertidas, onde o mestre não responde, mas pergunta, incentiva os aprendizes a explorar o espaço das informações para construírem, juntos, conhecimento. E dados sobre ele.”

Mas vale a pena botar inteligência artificial no SUS?

Vale. Há estudos que mostram que você poderia aumentar a eficiência e a eficácia do sistema em números que variam, por área, de 10% a 20%. Se eu aumentasse a eficiência e a eficácia do SUS de 10% a 20%, eu atenderia de 10% a 20% mais pessoas, ou diminuiria o custo em 10% a 20%. Mas não adianta só comprar a tecnologia e botar lá. O investimento é em pessoas. Se a tecnologia está lá e as pessoas não sabem usar, não adianta nada. Outra coisa: dados para criar resultados é outra parte do problema da saúde no Brasil. Se você não tem dados, e no Brasil não temos dados para quase nada, você não consegue planejar. Estamos precisando vacinar as pessoas, mas não sabemos em que postos de saúde temos geladeiras que conseguem manter vacinas a 18 graus abaixo de zero. Você não sabe quais equipamentos básicos e quantos enfermeiros existem nos lugares para onde você tem que mandar vacina. É capaz de o cara lá receber a vacina e guardar na geladeira da casa dele.

Imagine um estudante que, hoje, quer tentar a universidade, neste momento em que profissões, negócios e a própria educação estão sendo reinventados. Que conselhos daria a esse jovem?

Primeiro, ele tem que descobrir quais profissões têm futuro. Veja o caso dos bacharéis de Direito. O Brasil já tem um excesso monumental de bacharéis em Direito. Mas há uma demanda não atendida de 310 mil profissionais de computação e não tem gente suficiente estudando Programação e Análise de Sistemas. Há grandes cidades onde uma única faculdade de Direito tem mais alunos do que todas as faculdades de computação somadas. Aqui no Recife, temos mais de três mil vagas abertas não preenchidas no Porto Digital, que já emprega 13,7 mil pessoas em tecnologia, e temos o mesmo problema: excesso de alunos de Direito e, apesar da maior taxa de alunos de computação por 100 mil habitantes do Brasil, temos escassez de formados em computação.

Em segundo lugar, há cinco coisas que eu aprenderia muito bem, se estivesse entrando na universidade hoje. Primeiro é o português. Se você não souber ler e escrever textos complexos e longos na sua língua mãe, dificilmente ascenderá numa carreira relevante. Segunda coisa, a matemática. Se você não conhecer matemática, não vai entender por que a inflação acelera. E se você não entender a inflação, será incapaz de participar de discussões sobre o futuro da sociedade. Em terceiro lugar, você tem que saber lógica – que é a infraestrutura da argumentação e da construção de discursos sólidos. Com a lógica, você consegue entender os argumentos dos outros e sabe, explicitamente, porque um argumento é válido ou inválido. Em quarto lugar, também é preciso aprender a programar. Programação é o “novo inglês”, quase como uma língua estrangeira obrigatória. Se você vai ser um médico, você vai ter que programar robôs de cirurgia, vai ter que usar inteligência artificial para processamento de imagens. Aprender a programar é uma estrutura mental, é o pensamento algorítmico, é entender por que certas coisas são possíveis para a pessoa num contexto, e impossíveis em outro. Por fim, aprenda uma língua estrangeira verdadeiramente internacional que possibilite a você trabalhar no mercado mundial. Essa língua hoje é o inglês. Quem fala apenas o português, tem como ambiente de trabalho o Brasil; se fala inglês, tem como ambiente de trabalho o mundo. Quem fala inglês fluentemente pode ficar em Taperoá, no interior da Paraíba, e trabalhar em Berlim ou Nova York. O brasileiro sai do ensino médio sem falar bem o inglês… isso é um desastre nacional! Além disso, durante o tempo de vida da carreira das pessoas que estão terminando o ensino médio hoje, a língua inglesa terá uma companheira chamada mandarim, pois a China já é a maior economia do mundo.

Português, matemática, lógica, programação e uma língua estrangeira são fundamentais. Não importa se você está fazendo engenharia civil ou computação gráfica. O que vai valer, na realidade, é a sua capacidade de aprender, e não o que você sabe. E essas cinco habilidades proporcionam a capacidade de aprender.

E a educação nesses tempos pandêmicos? O que acha do ensino a distância (EAD), que de repente virou a tábua de salvação das escolas?

O ensino a distância que vem sendo feito no Brasil durante a epidemia é uma catástrofe. Porque é simplesmente a projeção da sala de aula no universo virtual, uma ferramenta que está vencida, do ponto de vista do prazo de validade de seu uso efetivo (que é a combinação de eficácia e eficiência). A aula clássica não é o melhor contexto para criação de oportunidades de aprendizado, e sua versão online, EAD, é extremamente limitada pelos dispositivos que você usa para participar da tal aula à distância. Tem uma coisa que já se entende há muito tempo em educação: ela deveria ser um processo combinado de criação de oportunidades de aprendizado, dentro de um contexto de experiência prática, para a criação de habilidades e competências. A aula tradicional é um formato processual de transmissão de conhecimento baseado numa assembleia monológica dentro de uma sala, onde um detentor do conhecimento fica tentando, pela voz e pela imagem, enfiar seu conhecimento na cabeça das pessoas sentadas lá. Ela não é a ferramenta, artefato, processo ou método nem mais eficiente, nem mais eficaz, para conseguir isso. E já sabemos disso há mais de 100 anos! Se a gente vai mudar o ensino, na realidade a gente teria que mudar até a palavra, que deveria ser aprendizado. E aí o processo de aprendizagem precisa de uma forma totalmente diferente, muito mais com jogos online (ou não), em tempo quase real, jogados em rede por grupos de pessoas, onde a distância é apenas um detalhe. Isso é diferente de você pura e simplesmente projetar a sala de aula na internet, com os mesmos problemas que essa sala de aula vem arrastando há mais de mil anos.

Silvio Meira: "Há estudos que mostram que é possível aumentar a eficiência e a eficácia do SUS em números que variam, por área, de 10% a 20%". Foto Arquivo Pessoal
Silvio Meira: “Há estudos que mostram que é possível aumentar a eficiência e a eficácia do SUS em números que variam, por área, de 10% a 20%”. Foto Arquivo Pessoal

Então, a mudança da escola é inevitável?

A chegada da internet comercial e todo seu potencial colocou em xeque os mecanismos históricos da escola. Principalmente o monólogo silencioso das salas de aula, onde estudantes assistem passivamente a aulas expositivas sobre temas que quase nunca os interessam. Até porque são temas distantes do seu contexto, definidos a priori para cumprir um plano de conteúdo pré-estabelecido. Daí o desengajamento estrutural da escola nos dias de hoje. As primeiras tentativas de combinar a escola clássica com a internet foram, e continuam sendo, desastrosas. A sala de aula online de hoje não usa os princípios, os fundamentos e o poder das redes. E muito menos têm desenho e estratégia digitais. Temos uma escola desconectada e desconexa diante do mundo de possibilidades em rede, que por sua vez já está percebido e incorporado pela grande maioria dos estudantes, que aprendeu a aprender na internet, usando plataformas abertas e conectadas, onde cada um e cada grupo decide, a partir de hipóteses de aprendizado, o que aprender.

Mas como é, na prática, essa nova escola?

A nova escola é um espaço para aprender. Potencialmente, a escola conectada já poderia existir há muito tempo, desde os primeiros passos da internet. A escrita quase oral ou a oralidade escrita desse ambiente mutante e digital resgata o descobrir como um processo de construção contínua do aprender. Na escola conectada, tudo está pronto para mudar o tempo todo e, portanto, para ser descoberto e construído. Expandida pelo digital, a escola conectada é ubíqua, está em todo lugar e em todo tempo, o tempo todo. Não há muros, nem mesmo fronteiras, aprender é uma ação voluntariosa, que demanda engajamento dos aprendizes, curiosidade comparável à dos aprendizes da escola de Aristóteles, ou da academia de Platão. No mundo figital das redes de pessoas, não há mais espaço para a escola monástica da Europa medieval. Os novos aprendizes nasceram conectados, realmente iluminados pelo acesso amplo à informação e, mais do que isso, ao diálogo contextualizado, em rede, de pessoas que querem aprender, descobrir e construir conhecimento.

A pandemia também está mexendo no universo corporativo. Em seus artigos e palestras você tem falado na necessidade de novas lideranças para tocar as mudanças, usando o design estratégico. As empresas brasileiras estão sensíveis a isso?

O ambiente competitivo do Brasil é muito esquisito, porque você tem pouquíssimas empresas de classe global, que podemos definir como empresas nacionais que competem mundialmente, ou que resistem à competição global em território brasileiro. Temos muito poucas empresas com sua teoria do negócio montada no Brasil e onde os líderes lideram a mudança. Você tem líderes executivos muito bons no Brasil, mas normalmente o que eles fazem em quase todas as empresas é tocar um modelo de negócios me too, ou seja, pegam alguma coisa que já existe em algum lugar e repetem aqui, descontextualizados das demandas, das necessidades e das peculiaridades locais. Como você tem muito poucos negócios que são claramente brasileiros, há bem poucos business designers brasileiros. Tem muito pouca estratégia no Brasil. Temos muita tática, operação, reação ao que está acontecendo, temos muita cópia, mas temos bem pouca estratégia. O que estamos tentando fazer na Cesar School e na TDS é mudar esse cenário e fazer com que as pessoas aproveitem o contexto competitivo e as demandas da sociedade para desenhar coisas efetivamente mais competitivas e de classe global.

Com a pandemia, estamos entrando em uma nova era?

Essa era que a gente está entrando, para mim, começou nos anos 1970. Na Segunda Guerra, tivemos o fim da era de energia, de mais velocidade, de mais potência e precisão e ainda um bocado de coisas. Tudo o que acontece nos 30 anos depois (bombas atômicas, centrais nucleares, aviões a jato e supersônicos) começou com as teorias, métodos, processos e engenharia desenhados na Segunda Guerra. Houve um hiato quando você exauriu aquele conjunto de teorias e tecnologias, que eram muito mais da física e da química: ali, começou a era da informação.

É a informação que determina como a energia é tratada em sistemas biológicos e computacionais. Esses dois sistemas fazem parte do mesmo universo filosófico, porque ambos são códigos. A descoberta da estrutura e da arquitetura do DNA, depois da Segunda Guerra, marca o começo dessa nova era. Estamos vendo agora o fim dos primeiros 50 anos de estabelecimento do que eu chamo de era do código sobre silício, e estamos vendo talvez o começo dos primeiros 50 anos da era do código sobre carbono.

Hoje, conseguimos sequenciar em semanas a genética de um dos vírus mais letais da história. As melhores vacinas contra esse vírus são vacinas de informação, baseadas em mRNA (RNA mensageiro), como a da Pfizer/BioNTech. As mRNA são vacinas que têm informação sobre o vírus para que a célula humana fabrique os anticorpos sem que precise ter entrado em contato com o vírus. Estamos falando de vacinas que são um código, que são usadas para “reprogramar” o seu corpo. Esse código será usado pelas células do organismo para elas se reprogramarem e criarem anticorpos, sem nunca terem visto o vírus. As vacinas mRNA, aplicadas em larga escala, são o primeiro passo de um processo em que estamos programando uma parcela da humanidade para evoluir.

É um processo de evolução programada. Os próximos 50 anos dessa era da informação vão passar pela análise de DNA, de entender como é que esse código funciona, por edição/modificação desse DNA, tirando e botando pedaços nele para fazer coisas diferentes. Como, por exemplo, zerar a miopia, ou introduzir resistências à covid-19 diretamente no estágio celular pré-fetal. Até chegar num processo de síntese onde você conseguirá “escrever” seres vivos, diretamente. Isso vai acontecer nos próximos 30 a 40 anos, e aí sim teremos feito o primeiro grande ciclo de 100 anos dessa revolução de informação, que vai nos acompanhar para o resto de nossas vidas.

Como você, que toca alfaia em blocos de maracatu, vê o impacto da pandemia na cultura popular?

A cultura de cada era representa, se olharmos historicamente, as relações humanas, ou a crise dessas relações. Representa a alegria e a tristeza profunda das pessoas, dos grupos e da humanidade. Na forma de música, arte, literatura, ópera ou teatro, a cultura serve para comemorar e ao mesmo tempo questionar. Desde as pinturas rupestres, de 14 mil, 20 mil anos atrás, até o grafite nas paredes, que é um novo tipo de pintura rupestre urbana (em muitos casos tratada de forma depreciativa), a arte está dando um sinal dos tempos, do que acontece ao redor.

Quando você vê a música das comunidades imersas em violência em Rio, São Paulo ou Recife, nem sempre interpretamos apropriadamente, como sendo uma música que a gente gostaria de ouvir, como bossa nova ou Villa-Lobos. Mas a gente vê ali o contexto em que essa música foi criada, é o funk que reclama do mundo, é o hip hop que retrata a realidade extremamente difícil das pessoas daquele contexto. À medida que o mundo vai mudando, a cultura vai se modificando.

É muito difícil imaginar que consigamos voltar para uma era onde as pessoas estarão compondo valsas ou desenvolvendo manifestações arquitetônicas da Belle Époque. Acho que uma das partes mais importantes e menos bem avaliadas da cultura contemporânea é a ficção científica. Talvez devêssemos estar lendo e escrevendo muito mais sci-fi, e não estamos. Por fim, respondendo à sua pergunta… a cultura mudará. Assim como mudarão o carnaval e os maracatus. Porque tudo vai mudar.

O mundo figital

O termo figital surgiu antes da pandemia. Representa a integração entre o físico e o digital e popularizou-se no comércio das grandes redes varejistas, físicas e online. Por exemplo, Amazon e Magazine Luiza, apesar do sucesso de vendas pela internet, preparam novas lojas físicas, porque perceberam que os consumidores, em geral, não são totalmente digitais. Eles gostam de trocar uma prosa com o vendedor sobre o produto, para extrair coisas que as especificações técnicas do site não revelam. E querem ver o produto ao vivo e em cores. E, ainda, desejam comprar no site e receber na loja, ou ver na loja e depois ir comprar no site. No comércio figital, loja e e-commerce integram um sistema único de vendas, complementando-se.

PH de Noronha

É jornalista, trabalhou nas editorias de Economia e Internacional do Jornal do Brasil e O Globo e foi editor de Macroeconomia e Política no Brasil Econômico. Atuou na comunicação corporativa de empresas como Cetip e TIM Brasil e nos governos federal (Anac e BNDES) e estadual (Secretaria de Segurança).

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