(Joana Suarez e Natália Sousa*) – As algemas foram colocadas enquanto ela sangrava na maca do hospital. Foram três dias assim: presa e sangrando. O estado de saúde era grave, quando os policiais militares entraram na unidade hospitalar e decretaram a prisão. Quem denunciou foi o próprio médico ao desconfiar que a paciente tivesse feito um aborto em casa. Uma mulher jovem, preta, pobre e brasileira, que tentou interromper a gestação, e foi levada às pressas ao Sistema Único de Saúde (SUS), depois de sofrer uma hemorragia. O pedido era de socorro, mas a paciente teve sua intimidade violada pelo profissional que deveria protegê-la.
Esse caso é real, ocorreu em Minas Gerais, no ano de 2020, e essa mulher é um retrato das estatísticas de quem mais sofre com a criminalização por aborto no país. O recente aumento dos processos judiciais contra pessoas que abortam mostram que algo está sendo violado nisso: o segredo médico. E ele está previsto tanto no artigo 73 do Código de Ética da profissão, quanto no artigo 207 do Código de Processo Penal. Os textos se complementam ao dizer que é proibido revelar informações que foram acessadas por meio do exercício profissional, a menos que a paciente autorize. O sigilo médico é, antes de tudo, uma questão de saúde pública.
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Nos cinco primeiros meses de 2023, foram 208 processos por abortos praticados pela gestante. Em 2022, foram 464 – os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A Universidade Federal do Paraná analisou 43 processos desse tipo, entre 2017 e 2019. Em 44% deles as mulheres foram processadas por causa de denúncias feitas por profissionais de saúde; em 58% os profissionais foram colocados como testemunhas de acusação; em 65% dos casos os prontuários foram compartilhados com a polícia sem o consentimento da paciente.
Também não é permitido ao profissional de saúde depor, e se for convocado, ele deverá se declarar impedido. Há uma razão para isso: é preciso que a paciente confie na equipe médica para que a consulta, o tratamento, o exame ou qualquer procedimento possa ser bem realizado. O segredo nessa relação existe porque está em jogo a intimidade vinculada à saúde.
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Veja o que já enviamosAlém de sofrerem prisão, muitas mulheres tiveram que pagar multa, de um ou dois salários mínimos. “São pessoas simples, que sequer ganham isso, punidas pela quebra de um direito garantido”, lamenta o médico Cristião Rosas, obstetra da Rede Médica pelo Direito de Decidir. Muitas eram “esteio da família”, sendo as únicas responsáveis pelo sustento da casa. A maior parte é negra e solteira, de acordo com estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
A discussão sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação segue à espera de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmente, a interrupção legal só pode ser feita em três situações: anencefalia, que é uma má formação do feto; quando a mulher corre risco de morte; e quando a gravidez foi resultado de um estupro. Nos casos de violência sexual, não é necessário mostrar o Boletim de Ocorrência, embora há relatos de vítimas que tiveram o procedimento negado por não terem o documento.
Médicos podem ser processados
Como o sigilo em saúde é um direito garantido, médicos que denunciaram suas pacientes podem ser processados, mas a vulnerabilidade social da maior parte dessas mulheres faz com que muitas sequer saibam de seus direitos e da possibilidade de responsabilizar os profissionais de saúde. Essa fragilidade facilita a perpetuação da violação.
O abuso de poder médico e policial é recorrente, dizem especialistas entrevistados pela reportagem. Mulheres pretas, pobres e periféricas, muitas vezes sem instrução, são levadas, inclusive, a confessarem o aborto, compondo contra si mais uma prova na delação, que antes veio do profissional de saúde.
O profissional que quebra o segredo pode ter de responder tanto ao Conselho de Ética da profissão, sendo possivelmente punido com o afastamento do cargo ou a expulsão, mas também criminalmente, em que se prevê as mesmas consequências. A vítima que foi exposta ainda pode entrar com um processo por danos morais.
Provas ilegais, vítimas condenadas
A denúncia feita por alguém da equipe médica em atendimento é considerada ilegal, portanto o processo que se origina de uma prova como essa, deveria ser cancelado e a delação, anulada. Mas, na prática, não é assim. São exceções os casos em que a mulher, mesmo vítima, consegue escapar da punição.
A Justiça de São Paulo concedeu apenas 17% dos habeas corpus pedidos pela Defensoria Pública do estado em processos como esses, entre 2003 e 2016. “Infelizmente, o judiciário brasileiro tem muita dificuldade de anular provas, principalmente quando se trata de uma classe mais pobre”, desabafa o Defensor Público, Gustavo de Almeida Ribeiro, há vinte anos na função. Conseguir um desfecho satisfatório para a vítima depende muito de quem julga o caso. “Quando o processo cai na mão de um juiz que tem o olhar conservador, é muito difícil”, apontou Gustavo.
O perfil majoritário dos juízes brasileiros é homem, branco, católico, casado e com filhos, conforme levantamento do CNJ, de 2018. O machismo judicial também encontra uma forma de punir mais fortemente as mulheres nesses julgamentos. Primeiro porque elas foram contra a lei, segundo porque são vistas como aquelas que se afastaram do papel de mãe. As penas servem, então, para controlar essa “transgressão” contra o sistema patriarcal, como abordou AzMina nesta reportagem.
Grupos antiabortos x Direito das Mulheres
Desde o ano passado (2022), a quantidade de processos judiciais registrados contra mulheres que praticaram o aborto vem crescendo no Brasil – são mais de uma 1 ação desse tipo por dia (em média). De 2021 (136) para 2022 (464), o aumento foi de 340%, três vezes mais. A média mensal de 2021, foi 11,3 processos; em 2022 – 38,6; e este ano já está em 41,6, somente de janeiro a maio.
“É um reflexo dos últimos quatro anos de governo [Bolsonaro], que veio com uma pauta moralista e religiosa muito forte, influenciando a postura dos médicos, que se sentiram autorizados a fazerem isso, porque o Executivo os incentivava”, avalia a advogada Luiza Vasconcelos Oliver, mestre em Direito Penal.
A internet potencializa cada vez mais os discursos de ódio e a desinformação espalhados pelos grupos antidireitos das mulheres e antiaborto. Movimento que se articula dentro e fora do país, com novas estratégias em todos os campos: saúde, justiça, educação, religião e política. AzMina também fez uma reportagem especial e transfronteiriça sobre isso com veículos jornalísticos da Colômbia e Equador, onde os ataques às mulheres seguem a mesma dinâmica daqui.
Para que os profissionais de saúde não insistam nessa violação, é preciso que os hospitais e postos estejam alinhados com a importância do sigilo médico, do bom tratamento, e se coloquem ao lado da paciente. Mas a cultura institucional do atendimento à saúde pode favorecer esse tipo de denúncia. “A gestão do serviço deve cuidar para que as normas éticas e técnicas sejam respeitadas. Não há subjetividade nisso, mas nem todos os gestores entendem dessa forma,” diz Ana Teresa Derraik, diretora geral da Maternidade Santa Cruz da Serra, em Duque de Caxias (RJ), e fundadora do Nosso Instituto e coordenadora do projeto Acolhe.
Entre a morte e a prisão
A criminalização do aborto gera o medo da punição, que faz com que muitas pessoas não procurem ajuda, se coloquem em risco, aumentando o tempo de gestação para fazer a interrupção. Métodos caseiros, como chás abortivos, são comumente utilizados por mulheres pobres, por serem supostamente mais baratos do que procedimentos em clínicas clandestinas, profissionais particulares ou remédios importados. Sem informação de qualidade e acompanhamento, elas acabam nos atendimentos de emergência para sobreviver.
Há cinco anos, inclusive, a campanha Nem Presa Nem Morta foi construída por organizações e coletivos feministas que se uniram para ampliar o debate sobre o direito ao aborto no Brasil.
Em março de 2023, o Supremo Tribunal de Justiça acolheu um pedido da Defensoria Pública de Minas Gerais e trancou a ação penal de uma mulher que havia sido denunciada pelo próprio médico, após realizar um aborto inseguro. O STJ considerou que o médico não pode acionar a polícia para investigar pacientes que procuram atendimento e relatam ter realizado o procedimento. A investigação contra ela foi encerrada.
O processo da jovem que abre essa reportagem corre em segredo de justiça e está em fase de instrução, que é quando o juiz se dedica a colher provas e testemunhas. É nessa instância que será discutido como será o julgamento. Se não for anulado antes, são grandes as chances de ela ter que enfrentar o Tribunal do Júri, formado pela sociedade civil, “o povo”. Isso porque o aborto provocado está no Código Penal brasileiro e não tratado como questão de saúde pública. Com isso, nem os casos previstos em lei têm acesso garantido no país com poucos serviços nos estados que fazem o procedimento.
Um escritório de advocacia de São Paulo está dedicado à defesa dessa jovem de forma voluntária, e tenta conseguir, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o cancelamento do processo, além do habeas corpus – um mecanismo para combater prisões ilegais. “Não se pode admitir que uma mulher seja processada e condenada com base num processo em que a sua origem é completamente legal,” analisa Luiza Oliver, integrante da equipe que defende a jovem.
Precisamos de leis mais rígidas?
Não é necessária uma nova legislação para impedir que o sigilo médico seja quebrado e mulheres não sejam mais denunciadas em ambiente hospitalar, consideram especialistas entrevistados pela AzMina. Para o médico Cristião, é preciso fazer valer as leis que já existem e tirar os “‘porteiros’ que impedem o acesso ao aborto”. Uma maneira disso é estabelecer o caminho oposto: o Estado tomando para si a responsabilidade de advertir os profissionais de saúde – e não punindo pessoas que gestam e abortam.
O cancelamento de todos os processos que se originam a partir de denúncias médicas também seria uma forma de desestimular esse tipo de postura. “Falta firmeza do Poder Judiciário e coragem política”, completa a advogada Luiza.
A mudança precisa ser feita em todas as pontas. Universidades, centros de formação em saúde e órgãos de classe devem ser cobrados para disseminarem a informação sobre o segredo médico e a importância de preservá-lo, bem como promover um debate de qualidade sobre direitos humanos, sexuais e reprodutivos. “Na minha faculdade ,sequer falávamos do tema aborto, o que dirá sobre sigilo médico nesses casos”, recorda a médica Ana Teresa.
*Joana Suarez é gerente de jornalismo de AzMina após trabalhar em mídia impressa em rádio em Belo Horizonte e atuar como jornalista freelancer. Foi selecionada para os projetos Feminist Journalist Project da AWID (Association for Women’s Rights in Development) e o Emerging Media Leaders, do International Center For Journalists (ICFJ); Natália Sousa é jornalista, escritora e podcaster. É também autora do livro “Tua Vida em Mim”, do podcast de autoconhecimento “Para dar nome às Coisas” e do projeto online “Me dá uma notícia boa?”