Diário da Covid-19: O censo demográfico é essencial para combater a pobreza e a pandemia

Parentes acompanham sepultamento de vítima da covid-19 em São Paulo: sem o censo, Brasil sabe cada vez menos sobre os brasileiros vivos, enquanto conta o número de mortos (Foto: Miguel Schincariol/AFP – 17/04/2021)

Cancelamento leva a vácuo estatístico no Brasil onde, nos quatro meses de 2021, morreram mais vítimas da doença do que em todo o ano de 2020

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 25 de abril de 2021 - 10:27 • Atualizada em 7 de maio de 2021 - 21:34

Parentes acompanham sepultamento de vítima da covid-19 em São Paulo: sem o censo, Brasil sabe cada vez menos sobre os brasileiros vivos, enquanto conta o número de mortos (Foto: Miguel Schincariol/AFP – 17/04/2021)

Uma das lições mais sábias e definitivas da história está no aforismo “Conhece-te a ti mesmo”. Tanto as pessoas quanto os países precisam conhecer suas fragilidades e potencialidades para avançar na qualidade de vida individual e coletiva, no bem-estar geral e na busca da felicidade para todas as pessoas. O conhecimento é uma necessidade básica e um bem comum da maior relevância. As vitórias da racionalidade ganharam destaque no lema do Iluminismo: Sapere aude (ouse conhecer). Assim sendo, as pessoas e as nações investiram em informações, educação, ciência e tecnologia para promover o progresso material, espiritual e civilizacional. É dentro desta perspectiva que o IBGE definiu como sua missão: “Retratar o Brasil com informações necessárias ao conhecimento de sua realidade e ao exercício da cidadania”. O censo demográfico é a pesquisa mestra do IBGE, pois é o único levantamento do país que tem como objetivo visitar todos os domicílios e contabilizar todos os habitantes do país.

O máximo denominador comum do censo é revelar o tamanho da população, nos diversos níveis geográficos, e enunciar a estrutura demográfica por idade e sexo, que são as variáveis básicas da pirâmide etária. O censo é a base populacional para todas as demais pesquisas domiciliares, quer sejam dos órgãos públicos ou das instituições privadas. Sem o conhecimento desta base universal, todas as pesquisas amostrais probabilísticas ficam incapazes de retratar a realidade ou, em última instância, apresentam resultados enviesados.

Mas além do tamanho da população e da estrutura por sexo e idade do país, dos estados, dos municípios e dos subníveis intramunicipais o censo agrega as informações sobre as características físicas dos domicílios e seu entorno e o perfil socioeconômico das famílias e da população, além da mobilidade espacial das pessoas. O censo traz informações fundamentais sobre atributos individuais relativos à educação, renda, moradia, raça/cor, religião, condições de saúde, mercado de trabalho etc.

Os novos questionários aprovados pelo Conselho Diretor do IBGE serão testados, em Poços de Caldas, nos meses de setembro e novembro. Foto Divulgação
Seguidos cortes no orçamento do IBGE inviabilizaram Censo 2021 e ameaçam censo demográfico em 2022 (Foto: Divulgação)

O censo é a coluna vertebral de todo o sistema estatístico nacional. Políticas educacionais, assim como de saúde, de emprego, de moradia, dentre outras, precisam das informações da base universal do censo. Não somente as políticas públicas, mas também os planos de investimento das empresas estatais ou privadas, necessitam de dados e informações que estão alicerçadas no censo demográfico. Da mesma forma, as projeções populacionais têm como referência básica os parâmetros censitários. Estas são usados para o cálculo das estimativas populacionais que servem de referência para a repartição dos recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), fundamentais para a gestão das políticas municipais.

Por conta de tudo isto, a Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda que o censo seja feito de 10 em 10 anos e que no meio deste período se realize uma contagem populacional para atualização das estatísticas nacionais. A Lei 8.184/1991, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, determina que os censos demográficos sejam realizados em intervalos não superiores a 10 anos.

Para efeito de comparação, os Estados Unidos realizaram censos decenais desde 1790 e já concluíram 24 recenseamentos, inclusive no ano passado. Mas o Brasil, com somente 12 levantamentos, não fez a contagem de 2015 e tem enfrentado dificuldades desde 2019, como mostrei no artigo “Bom-senso: a receita para um bom Censo em 2020”, aqui no #Colabora (Alves, 10/07/2019). Numa conjuntura desfavorável, o país não conseguiu fazer o censo 2020. O motivo foi as incertezas trazidas pela covid-19 e a inexistência de vacinas naquele momento.

Todavia, a realização do censo em 2021 seria imprescindível e inadiável, pois o retrato estatístico do Brasil mudou bastante desde 2010, especialmente depois de três anos de forte recessão econômica (2015, 2016 e 2020) e após uma pandemia de impactos catastróficos. Houve aumento da pobreza, das desigualdades sociais, do desemprego e da insegurança alimentar. Na região Sudeste, pela primeira vez na história houve decrescimento vegetativo, já que o número de óbitos superou o número de nascimentos no mês de abril de 2021. As mudanças sociais e econômicas foram de grande monta e o debate democrático que ocorrerá em 2022 não poderia prescindir das informações do censo demográfico. As pesquisa mensais e anuais do IBGE estão perdendo a acurácia, pois a base cadastral usada na amostra está muito desatualizada.

Lastimavelmente, o Brasil não fez o censo demográfico em 2020 e, no dia 22 de abril, o secretário de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, disse que não há recursos no Orçamento da União para realizar o recenseamento geral do país em 2021. E o mais grave é que o orçamento aprovado compromete até mesmo a preparação do censo demográfico em 2022. Portanto, o Brasil está entrando em um vácuo estatístico e não terá informações precisas para combater a pobreza, a evasão escolar e a pandemia. Neste quadro desanimador, a cidadania brasileira está comprometida. E nem mesmo haverá estatísticas atualizadas para mensurar o tamanho desta tragédia sociodemográfica antes das comemorações dos 200 anos da Independência e das eleições gerais de 2022.

Em quatro meses de 2021, Brasil tem mais mortes por covid-19 do que 2020

O número de pessoas infectadas e de mortes da covid-19 aumentaram no mundo, mas, felizmente, diminuíram no Brasil, que se afastou do patamar diário de mais de 3 mil vidas perdidas para a covid-19. O número de vítimas fatais diminuiu na última quinzena e a média móvel de 7 dias ficou em 2,5 mil mortes no dia 24 de abril de 2021.

Todavia, a mortalidade no país ainda permanece em alto platô e não dá para baixar a guarda, pois o mês de abril já é o mais letal desde a chegada do SARS-CoV-2 e a marca de 400 mil mortes será atingida em uma semana, provavelmente no dia 01 de maio, Dia do Trabalhador. Indubitavelmente, os desafios para colocar fim à pandemia continuam sendo gigantescos.

Neste domingo (dia 25/04), o Brasil bate um outro triste recorde, pois, em menos de 4 meses (apenas 115 dias), ultrapassará o montante de mortes da covid-19 ocorridas durante todo o ano de 2020. Foram 194,9 mil vidas perdidas no ano passado e serão mais 195 mil óbitos de 01 de janeiro até 25 de abril de 2021. Esse turbilhão de mortes foi responsável pela redução da esperança de vida ao nascer brasileira em quase 2 anos em 2020 e deve provocar uma queda ainda maior em 2021.

Em todo o período Republicano (1889-2021), nunca houve qualquer queda significativa do tempo médio de vida dos habitantes do país, muito menos uma queda consecutiva em um biênio. Também nunca houve decrescimento populacional, como tem acontecido neste mês de abril na região Sudeste, onde há um montante de óbitos acima do número de nascimentos.

A Índia é o novo epicentro da pandemia global

A pandemia deu uma certa trégua no Brasil, mas bateu o recorde planetário de casos na semana que passou. A média móvel global de pessoas infectadas ficou pela primeira vez acima de 800 casos diários e o número global de mortes também está em ascensão. A nova ameaça de descontrole se transferiu para a Índia, que, com a propagação de uma nova cepa do coronavírus (denominada B.1.617), bateu todos os recordes de infecções com mais de 300 mil casos diários e uma média de mortes que já ultrapassou 2,2 mil óbitos diários e continua subindo.

O gráfico abaixo mostra a “dança” das curvas epidemiológicas de mortes nos EUA, no Brasil, no México e na Índia, os 4 países com maior volume de vidas perdidas para a covid-19. Nota-se que o Brasil ultrapassou o México em fevereiro, assumiu a liderança global em março e deve passar este triste bastão para a Índia nesse final de abril. Uma nova variante do coronavírus Sars-CoV-2 foi descoberta recentemente na Índia.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) está estudando a variante denominada B.1.617 e, embora ainda não esteja comprovado se ela é mais transmissível ou mortal, ela pode ser um dos motivos por trás do aumento exponencial de casos de covid-19 na Índia nas últimas semanas. O número diário de infecções caminha para o recorde de 400 mil casos diários e o número de mortes segue para uma média acima de 3 mil óbitos diários na Índia. A pandemia também cresce em outros países asiáticos como Turquia, Irã, Paquistão, Bangladesh, Indonésia e Filipinas.

O ritmo diferenciado da vacinação no mundo

Enquanto surgem novas mutações do SARS-CoV-2 e a pandemia continua fazendo estragos globalmente, o processo de imunização avança em ritmo lento na maioria dos países do mundo, embora tenha conseguido grande sucesso em alguns países de pequena dimensão demográfica. O caso de maior sucesso até o momento é o do pequeno território de Gibraltar (administrado pelo Reino Unido), que tinha o maior coeficiente de mortalidade do mundo, mas, depois de um lockdown muito rigoroso e um plano de imunização que atingiu 100% da população, conseguiu reduzir os novos casos e, praticamente, zerou as mortes (houve apenas 1 óbito por covid-19 nos meses de março e abril).

O gráfico abaixo, do site Our World in Data, fornece um panorama da imunização em alguns países selecionados. Israel está na frente e já vacinou cerca de dois terços da população, conseguindo reduzir a média diária de mortes que existia no final de janeiro, de 65 óbitos para 5 mortes no dia 24 de abril, sendo que não foram registrados óbitos no dia 23/04.

O Reino Unido também tem apresentado bons resultados, pois já vacinou 50% da população e conseguiu reduzir a média de infectados de 60 mil casos no começo de janeiro para 2,5 mil casos em 24/04/2021 e reduzir a média de vidas perdidas de 1.250 óbitos para 22 óbitos, no mesmo período. Os EUA já vacinaram 40% da população e também conseguiram reduzir bastante o número de casos e de mortes, embora não na mesma proporção do Reino Unido.

Já o Chile, a Hungria e o Uruguai conseguiram vacinar mais de um terço da população, mas não obtiveram bons resultados na redução dos casos e das mortes. Índia, Indonésia, Paquistão, Bangladesh, Filipinas e Irã estão muito atrasados no processo de imunização e vivenciam uma nova onda de infecções e de mortes.

Marcha lenta no Brasil

No Brasil, o ritmo da vacinação está tão lendo que será investigado pela CPI da pandemia. O país aplicou ao menos uma dose de vacina contra Covid em cerca de 28 milhões de pessoas, mas isto representa menos de 15% da população, em mais de 3 meses de vacinação. Dezenas de milhares de vidas poderiam ter sido salvas se o Brasil tivesse começado o programa de imunização, com vacinação em massa, em janeiro, com cerca de 2 milhões de doses aplicadas por dia, segundo o estudo “COVID-19 Underreporting and its Impact on Vaccination Strategies”, de Vinicius Albani e colegas, publicado na plataforma MedRxiv (03/2021).

Os autores dizem que tudo seria diferente se o governo federal tivesse aceitado as ofertas de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer e de 100 milhões de doses da Coronavac no segundo semestre de 2020. Houve desleixo na política de saúde, especialmente na época do ministro Eduardo Pazuello.

Mais recentemente, o atual ministro da saúde, Marcelo Queiroga, havia prometido mais de um milhão de doses por dia, mas agora diz que a conclusão da vacinação contra a covid-19 de todos os grupos prioritários do país só ocorrerá em setembro. Isto quer dizer que boa parte da população mais vulnerável ao coronavírus ficará desprotegida no período de inverno e o Brasil pode assistir ao surgimento de uma nova onda pandêmica nos meses de junho, julho e agosto. No ritmo atual, a população adulta e em idade produtiva (15 a 59 anos) só deverá ser vacinada completamente em meados de 2022, ficando expostas às novas cepas do SARS-CoV-2.

O processo de rejuvenescimento da pandemia

A pandemia da covid-19 é mais letal para os homens e para a população idosa. O gráfico abaixo, do Portal da Transparência do Registro Civil, administrado pela ARPEN Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), mostra que os homens são maioria entre as vítimas fatais em todas as faixas etárias, com exceção de 90 anos e mais. No acumulado das vidas perdidas do país, os homens representam 56% do total de mortes e as mulheres 44%. O Portal mostra que a maior parte das 384,7 mil mortes no período de 16/03/2020 a 24/04/2021 pela covid-19 no Brasil está concentrada nas idades acima de 60 anos (73,9%).

Contudo, nas últimas semanas, o Brasil está passando por um processo de rejuvenescimento da pandemia, conforme constatado no Boletim do Observatório Fiocruz Covid-19, referente às semanas epidemiológicas 14 e 15, de 4 a 17 de abril de 2021. Os autores observam que a semana epidemiológica 14 (SE 14) apresenta idade média dos casos internados de 57,7 anos, versus idade média de 62,4 anos na semana epidemiológica 1 (SE 1). Para óbito, os valores foram 71,6 anos (SE 1) e 64,6 anos (SE 14).

O texto diz: “O aumento global de casos, para todas as idades, entre a SE 1 e a SE 14, foi de 643%. Algumas faixas etárias mantiveram aumento superior ao aumento global: 20 a 29 anos (746%), 30 a 39 anos (1.104%), 40 a 49 anos (1.174%), 50 a 59 anos (1.083%) e 60 a 69 anos (748%). Para os óbitos, o aumento global foi de 429%. As mesmas faixas etárias obtiveram aumento diferenciado: 20 a 29 anos (1.082%), 30 a 39 anos (819%), 40 a 49 anos (933%), 50 a 59 anos (845%) e 60 a 69 anos (572%)” (p. 7).

Este processo de rejuvenescimento da covid-19 no Brasil é preocupante, pois a população abaixo de 60 anos tem maiores taxas de inserção no mercado de trabalho e somente uma pequena parte tem condições de permanecer em casa em regime de home office. A grande maioria dos adultos precisa enfrentar o dia a dia do trabalho, estando sujeita à contaminação e, consequentemente, à internação. A solução seria ampliar o isolamento social e acelerar o ritmo da vacinação, mas devido aos reiterados erros do Ministério da Saúde, não há vacina para todos e o Governo Federal, de modo geral, continua sabotando as medidas de proteção e prevenção. A CPI da Pandemia terá muito a fazer nas próximas semanas para responsabilizar os culpados por esta tragédia sanitária e humanitária e para indicar soluções para colocar fim à pandemia no país.

Frase do dia 25 de abril de 2021

“Fiquei impressionado com a urgência de fazer. Saber não é suficiente; devemos aplicar. Estar disposto não é o suficiente; devemos fazer”

Leonardo Da Vinci (1452-1519)

Referências

ALVES, JED. Bom-senso: a receita para um bom Censo em 2020, # Colabora, 10/07/2019

ALBANI, Vinicius et. al. COVID-19 Underreporting and its Impact on Vaccination Strategies, MedRxiv, 03/2021 

Boletim do Observatório Fiocruz Covid-19, Fiocruz, semanas 14 e 15, de 4 a 17 de abril de 2021

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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