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Notas de alívio, notas de pesar: o discurso do presidente Lula na ONU

Presidente apresentou ao mundo o retrato de um Brasil em reconstrução, de uma nação sobrevivente à degradação democrática

ODS 10ODS 13 • Publicada em 20 de setembro de 2023 - 10:36 • Atualizada em 21 de setembro de 2023 - 09:39

Recordo-me quase à flor da pele do primeiro discurso de Bolsonaro na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2019, de Nova York (EUA) — de onde escrevo neste momento. Na realidade, sempre tive uma memória mais aguçada para episódios traumáticos. Lembro de detalhes, do que senti, da vergonha e da indignação ao presenciar um discurso tão violento. Um vexame inconsistente. Uma fatalidade que se repetiu muitas vezes em outros espaços internacionais e toda vez que o então presidente teve a ousadia de falar. Ontem foi um daqueles dias marcantes para nós, brasileiros e brasileiras. Luiz Inácio Lula da Silva estava de volta não apenas aos holofotes da ONU, mas também para repetir quantas vezes forem necessárias que: “o Brasil está de volta”.

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Lembro-me que, no primeiro discurso de Bolsonaro, além da fatídica oratória e monotonia na voz que sempre teve, ele mentiu sem escrúpulo algum sobre a realidade socioambiental no Brasil. O que causou tamanha onda de revolta, sobretudo entre ativistas e organizações socioambientais da sociedade civil do nosso país, foi o discurso totalmente manipulador de um presidente que parecia autorizado a se posicionar contra seu próprio país. Nunca vou me esquecer de um determinado trecho em que o sujeito, como praxe, atacava o jornalismo, contrapondo episódios de eventos extremos e violações ambientais veiculados na época como mera invenção da mídia, fake news. Lembro-me também que ele chegou a dizer que a Amazônia praticamente permanecia “intocada”, sendo que – na época – a região já havia perdido 20% da cobertura original.

No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível. Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente

Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente do Brasil, em discurso na ONU

Não quero me ater ao passado, embora seja sempre crucial não esquecê-lo. Presenciar, ontem, o discurso do presidente Lula na 78ª Assembleia Geral da ONU reavivou em mim algumas faíscas que, em uma democracia, constantemente acendem e apagam – uma vez que estamos inseridos em um sistema político falho, sujeito a contradições, injustiças e desesperança. Com dados, contextualização e, sobretudo, verdade e compromisso, o presidente apresentou às autoridades do mundo o retrato de um Brasil em reconstrução, de uma nação sobrevivente à degradação democrática.

Vale pontuar que Lula retorna ao palco mundial da ONU catorze anos após o segundo mandato para discursar pela oitava vez. Só a gente sabe quantas memórias de luta e resistência aconteceram entre essa matemática cronológica. Por isso, a simbologia de um discurso de aproximadamente 20 minutos é uma nota de alívio. O presidente iniciou com um ato de solidariedade às vítimas do recente terremoto na Líbia e dos ciclones no Rio Grande do Sul. Trouxe gerações em sua fala, destacando, em diferentes momentos, crianças e juventudes como sujeitos políticos. Na arguição de que estamos na trilha por um país “soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre”, ele mencionou sobre o combate à insegurança alimentar e energética, perdas e danos e alertou sobre o princípio de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” na cooperação internacional pela justiça climática. Em oito meses de governo, reduzimos 48% do desmatamento, que estava imerso em um cenário entre auges de recordes e incontáveis retrocessos durante o governo anterior.

O presidente Lula discursa na abertura da Assembleia Geral da ONU: combate à desigualdade e defesa da democracia e da liberdade de imprensa (Foto: Ricardo Stuckert/PR - 19/09/2023)
O presidente Lula discursa na abertura da Assembleia Geral da ONU: combate à desigualdade e defesa da democracia e da liberdade de imprensa (Foto: Ricardo Stuckert/PR – 19/09/2023)

Além de alertar sobre o caráter de urgência da luta contra a desinformação e o negacionismo científico, tenho a felicidade de dizer que a classe jornalística brasileira recuperou a reputação global quando o presidente afirmou o quão fundamental é preservar a liberdade de imprensa. Com ênfase em sua oratória nesse exato momento da fala, Lula afirmou que um jornalista não pode ser punido por informar à sociedade de forma transparente e legítima. Se eu pudesse dar um feedback, acrescentaria que o Brasil é um dos países mais perigosos para jornalistas. E, enquanto essa realidade se impor, precisamos de medidas para a proteção dos profissionais e repórteres que estão em campo registrando e reportando injustiças, riscos e ameaças das zonas de sacrifício.

Não acho que tenha sido um discurso perfeito, porém, o fato de ter sido centrado no combate às desigualdades já significou muito. Digo mais: se 44% dos brasileiros consideram que raça, etnia e cor são os principais fatores de desigualdade no Brasil, de acordo com a pesquisa “Percepções do racismo no Brasil” (Action Aid e Instituto Peregum), nada mais óbvio que, enfim e finalmente, tenhamos mais um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de combate ao racismo – ação e mérito do Ministério da Igualdade Racial, liderado por Anielle Franco.

“No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível. Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente”, afirmou o presidente. Como costumo dizer ironicamente, “antes tarde do que muito tarde”.

Véspera da primavera, despedida do inverno. Não há absolutamente nada de poético nessa transição, uma vez que o Brasil não é um país de estações muito demarcadas. A nota de pesar que nos surpreendeu foi a notícia de que nove estados entraram em alerta de onda de calor, na última terça-feira, dia 18. De acordo com uma nota técnica do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), as temperaturas vão ultrapassar 20% da média histórica de todas as regiões do Brasil, exceto o Sul. Isso significa que chuvas e ondas de calor violentas estão por vir. A pergunta que já sabemos a resposta não é mais se estamos preparados, mas sim como vamos enfrentar o pior ônus dos eventos extremos? Com quais recursos financeiros? Com quais políticas públicas? Com qual capacidade de adaptação local e resiliência regional?

O Brasil é um país de notas de alívio e pesar na mesma semana, como historicamente estamos testemunhando. É por isso que, honestamente, acho dúbia confiar em quem não sente indignação diante da desigualdade, como o presidente Lula construiu seu jogo de palavras durante o discurso. Sem indignação com a fome, a pobreza, o racismo, a guerra, a crise climática – e todos e todas que têm seus direitos violados ficamos alicerçados em um círculo fechado de passividade e necropolítica. O agir – no infinitivo, verbo transitivo indireto e intransitivo – não depende apenas da ação coletiva, mas sim, eu diria, de até onde somos capazes de ir movidos pela indignação à crise climática, desigualdades e surtos contra a democracia. Você saberia me responder?

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