Recordo-me quase à flor da pele do primeiro discurso de Bolsonaro na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2019, de Nova York (EUA) — de onde escrevo neste momento. Na realidade, sempre tive uma memória mais aguçada para episódios traumáticos. Lembro de detalhes, do que senti, da vergonha e da indignação ao presenciar um discurso tão violento. Um vexame inconsistente. Uma fatalidade que se repetiu muitas vezes em outros espaços internacionais e toda vez que o então presidente teve a ousadia de falar. Ontem foi um daqueles dias marcantes para nós, brasileiros e brasileiras. Luiz Inácio Lula da Silva estava de volta não apenas aos holofotes da ONU, mas também para repetir quantas vezes forem necessárias que: “o Brasil está de volta”.
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Lembro-me que, no primeiro discurso de Bolsonaro, além da fatídica oratória e monotonia na voz que sempre teve, ele mentiu sem escrúpulo algum sobre a realidade socioambiental no Brasil. O que causou tamanha onda de revolta, sobretudo entre ativistas e organizações socioambientais da sociedade civil do nosso país, foi o discurso totalmente manipulador de um presidente que parecia autorizado a se posicionar contra seu próprio país. Nunca vou me esquecer de um determinado trecho em que o sujeito, como praxe, atacava o jornalismo, contrapondo episódios de eventos extremos e violações ambientais veiculados na época como mera invenção da mídia, fake news. Lembro-me também que ele chegou a dizer que a Amazônia praticamente permanecia “intocada”, sendo que – na época – a região já havia perdido 20% da cobertura original.
Não quero me ater ao passado, embora seja sempre crucial não esquecê-lo. Presenciar, ontem, o discurso do presidente Lula na 78ª Assembleia Geral da ONU reavivou em mim algumas faíscas que, em uma democracia, constantemente acendem e apagam – uma vez que estamos inseridos em um sistema político falho, sujeito a contradições, injustiças e desesperança. Com dados, contextualização e, sobretudo, verdade e compromisso, o presidente apresentou às autoridades do mundo o retrato de um Brasil em reconstrução, de uma nação sobrevivente à degradação democrática.
Vale pontuar que Lula retorna ao palco mundial da ONU catorze anos após o segundo mandato para discursar pela oitava vez. Só a gente sabe quantas memórias de luta e resistência aconteceram entre essa matemática cronológica. Por isso, a simbologia de um discurso de aproximadamente 20 minutos é uma nota de alívio. O presidente iniciou com um ato de solidariedade às vítimas do recente terremoto na Líbia e dos ciclones no Rio Grande do Sul. Trouxe gerações em sua fala, destacando, em diferentes momentos, crianças e juventudes como sujeitos políticos. Na arguição de que estamos na trilha por um país “soberano, justo, sustentável, solidário, generoso e alegre”, ele mencionou sobre o combate à insegurança alimentar e energética, perdas e danos e alertou sobre o princípio de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” na cooperação internacional pela justiça climática. Em oito meses de governo, reduzimos 48% do desmatamento, que estava imerso em um cenário entre auges de recordes e incontáveis retrocessos durante o governo anterior.
Além de alertar sobre o caráter de urgência da luta contra a desinformação e o negacionismo científico, tenho a felicidade de dizer que a classe jornalística brasileira recuperou a reputação global quando o presidente afirmou o quão fundamental é preservar a liberdade de imprensa. Com ênfase em sua oratória nesse exato momento da fala, Lula afirmou que um jornalista não pode ser punido por informar à sociedade de forma transparente e legítima. Se eu pudesse dar um feedback, acrescentaria que o Brasil é um dos países mais perigosos para jornalistas. E, enquanto essa realidade se impor, precisamos de medidas para a proteção dos profissionais e repórteres que estão em campo registrando e reportando injustiças, riscos e ameaças das zonas de sacrifício.
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Veja o que já enviamosNão acho que tenha sido um discurso perfeito, porém, o fato de ter sido centrado no combate às desigualdades já significou muito. Digo mais: se 44% dos brasileiros consideram que raça, etnia e cor são os principais fatores de desigualdade no Brasil, de acordo com a pesquisa “Percepções do racismo no Brasil” (Action Aid e Instituto Peregum), nada mais óbvio que, enfim e finalmente, tenhamos mais um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de combate ao racismo – ação e mérito do Ministério da Igualdade Racial, liderado por Anielle Franco.
“No Brasil, estamos comprometidos a implementar todos os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, de maneira integrada e indivisível. Queremos alcançar a igualdade racial na sociedade brasileira por meio de um décimo oitavo objetivo que adotaremos voluntariamente”, afirmou o presidente. Como costumo dizer ironicamente, “antes tarde do que muito tarde”.
Véspera da primavera, despedida do inverno. Não há absolutamente nada de poético nessa transição, uma vez que o Brasil não é um país de estações muito demarcadas. A nota de pesar que nos surpreendeu foi a notícia de que nove estados entraram em alerta de onda de calor, na última terça-feira, dia 18. De acordo com uma nota técnica do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), as temperaturas vão ultrapassar 20% da média histórica de todas as regiões do Brasil, exceto o Sul. Isso significa que chuvas e ondas de calor violentas estão por vir. A pergunta que já sabemos a resposta não é mais se estamos preparados, mas sim como vamos enfrentar o pior ônus dos eventos extremos? Com quais recursos financeiros? Com quais políticas públicas? Com qual capacidade de adaptação local e resiliência regional?
O Brasil é um país de notas de alívio e pesar na mesma semana, como historicamente estamos testemunhando. É por isso que, honestamente, acho dúbia confiar em quem não sente indignação diante da desigualdade, como o presidente Lula construiu seu jogo de palavras durante o discurso. Sem indignação com a fome, a pobreza, o racismo, a guerra, a crise climática – e todos e todas que têm seus direitos violados ficamos alicerçados em um círculo fechado de passividade e necropolítica. O agir – no infinitivo, verbo transitivo indireto e intransitivo – não depende apenas da ação coletiva, mas sim, eu diria, de até onde somos capazes de ir movidos pela indignação à crise climática, desigualdades e surtos contra a democracia. Você saberia me responder?