Delírios de consumo de uma
black friday

Aproveite a época das liquidações para pensar sobre comprar (ou não comprar) com responsabilidade

Por Valquiria Daher | ODS 12 • Publicada em 27 de novembro de 2015 - 08:00 • Atualizada em 29 de novembro de 2015 - 14:20

Black fridayA primeira black friday ninguém esquece. O ano era 2000, e eu estava em Washington. Fui parar lá no dia de ação de graças, o que deve ser parecido com passar o Natal em Brasília. Museus abertos, mas ruas, bares e restaurantes desertos. Comecei a perceber que algo mais estava prestes a acontecer ao zapear os canais na TV do hotel. Anúncios mostravam imagens que me fizeram lembrar desta cena épica de Jerry Lewis em “Errado pra cachorro” (“Who’s minding the store?”, 1963).

Na época, eu não fazia ideia de que os americanos se reuniam com as famílias para comer peru e, no dia seguinte, partiam para o que era a maior liquidação do ano – o verbo tem que ficar no passado porque hoje existem Cyber Monday, Green Monday e outras datas que rivalizam com a pioneira. Pois bem. Naquela sexta, há 15 anos, parti para um shopping e fui tomada por uma euforia. Uma hora depois, como um cabide humano, tinha roupas e bolsas penduradas no corpo. Mais um pouco, e estava exausta mental e fisicamente, já sem encontrar o prazer inicial de me sentir fazendo bons negócios.

Por isso mesmo, a autora desta matéria não tem moral para pregar que as pessoas não façam suas compras na black friday brasileira – um fenômeno ainda recente e, diga-se, bem diferente da americana em proporção e redução de preços. A ideia é que se aproveite este dia para, por que não?, pensar sobre comprar com responsabilidade e também tentar praticar isso.

Pesquisadora de consumo sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), Renata Amaral listou alguns conselhos para quem não quer se deixar levar apenas enxurrada de propagandas das últimas semanas.

Pense, logo…
“O principal conselho é pensar se realmente aquele produto ou serviço é necessário ou se você está sendo seduzido pela possibilidade de compra por um menor preço ou condição. É importante se perguntar qual o uso desse produto, pensar no futuro (quantas vezes usarei? onde ele estará daqui um ano?). Só vale aproveitar as ofertas se aquele era um produto ou serviço que você precisava anteriormente”, ensina Renata.

Não à obsolescência programada
“Outro aspecto importante é a durabilidade do produto, que também deve ser levada em consideração. O fenômeno da obsolescência programada é real e está cada vez mais presente. Então, procurar saber (em fóruns ou até mesmo junto ao fabricante) qual a durabilidade estimada do produto e os problemas que geralmente aparecem é uma boa forma de escolher o mais durável e que trará menos problemas”, ela avalia.

Caminho das pedras
“Se a compra for imprescindível, algumas dicas para torná-lo mais consciente: verificar o fabricante, as condições de trabalho, como ele foi produzido e o ciclo de vida do produto (da extração da matéria-prima ao descarte). Por exemplo, se você sabe que determinada empresa possui denúncias de trabalho escravo ou até mesmo de exploração irregular de matéria-prima, é melhor não comprar”, destaca a pesquisadora.

Faça as contas
“E, claro, também importante entender se aquela oferta cabe no orçamento. Porque, afinal, não é porque temos uma grande oferta que precisamos fazer um rombo em nosso orçamento”, ela previne.

Todos os conselhos anotados, pergunto a mim mesma, como consumidora, porque nem sempre conseguimos esse equilíbrio diante de grandes descontos. Em outras ocasiões em que testemunhei (e, sim, comprei também) as liquidações de black friday, destas vezes em Nova York, admito que ver gente formando fila de madrugada em frente a algumas lojas e tentar me desviar das multidões em uma Macy’s abarrotada foi além do cansativo, foi um pouco vazio.

Esta é uma perspectiva moralista do consumo, como se fôssemos manipulados, com uma pseudoindividualidade. Se for consciente, não pode comprar? Vamos separar os dois conceitos – comprar e consumir. O consumo é uma prática da vida humana, é social, desde bebê você tem necessidade de consumir leite

Será que somos tão levados por nossos impulsos e busca de prazer na hora de comprar? Flavia Galindo, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, com doutorado em sociologia do consumo e membro do Grupo de Estudos sobre o Consumo, destrói essa ideia de que o consumidor é passivamente levado às compras numa black friday. “Não vejo essa coisa do consumo por impulso nesta data. Isso serve para certas categorias de produto. Gilete e pilha, por exemplo, são compradas por impulso. Você tem que ver e pegar”, ela explica, completando: “Esta é uma perspectiva moralista do consumo, como se fôssemos manipulados, com uma pseudoindividualidade. Se for consciente, não pode comprar? Vamos separar os dois conceitos – comprar e consumir. O consumo é uma prática da vida humana, é social, desde bebê você tem necessidade de consumir leite, por exemplo”.

Já Renata crê que “a vontade de comprar estimulada pela sociedade de consumo (publicidade, criação de desejos, etc.) que vivemos se concretiza nesses momentos de mega promoções. É difícil julgar as motivações e desculpas que levam as pessoas a consumirem nessa ou nas demais datas promocionais, mas, com certeza, a culpa não está totalmente no consumidor. Ele é bombardeado por milhares de propagandas e estímulos que o fazem sentir necessidade da compra daquele produto ou serviço, mesmo não precisando”.

De fato, não há como endemonizar somente a black friday, uma vez que a data ao menos entrega uma sinceridade. É dia de comprar, e ponto final. Não é Dia da Criança, dos Pais, das Mães, dos Namorados em que você compra porque quer demonstrar afeto. “Todas essas datas ‘comemorativas’ existem para estimular o consumo. Em época de crise, onde pessoas estão consumindo menos, dias como a BF são chamarizes, levam a possibilidade de se continuar consumindo a preços menores que ‘cabem’ em épocas de restrição orçamentária. Além disso, não acalmam a geração de necessidades junto aos consumidores, determinando mais uma data onde, necessariamente, é bom comprar e aproveitar”, comenta Renata, relacionando datas de compras à atual crise econômica.
Para Flavia, a black friday tem “pontos positivos e negativos” e o que, realmente, é inovador em termos de mudança de comportamento são os reaproveitamentos de materiais e fazer escolhas pensando no planeta, por exemplo: “Michele Micheletti (professora da Universidade de Estocolmo e autora de ‘Political Virtue and Shopping’) fala sobre o buycott, quando consumidores dão um sinal por meio do que compram ou deixam de comprar”.
Buycott or not, o #Colabora recomenda nesta sexta-feira negra e em toda a temporada de Natal: antes de comprar, pense; se for possível, troque; se tiver que comprar, pesquise; se comprou um novo, doe. E divirta-se.

Valquiria Daher

Formada em Jornalismo pela UFF, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Foi repórter do jornal “O Dia”, ocupou várias funções no “Jornal do Brasil” e foi secretária de redação da revista de divulgação científica “Ciência Hoje”, da SBPC. Passou os últimos anos no jornal “O Globo”, onde se dedicou ao tema da Educação. Editou a Revista “Megazine”, voltada para o público jovem, e a “Revista da TV”. Hoje é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas.

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