#RioéRua – Café Gaúcho em defesa das tradições cariocas

Chope em pé, cachorro quente de linguiça e caldos de dobradinha e mocotó fazem parte do charme de bar em sobrado centenário no Centro

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 23 de março de 2020 - 12:11 • Atualizada em 23 de março de 2020 - 14:10

Chope e cachorro quente de linguiça em mesa na calçada: combinação matadora do Café Gaúcho, há 85 anos em sobrado no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)

Em tempos de isolamento forçado, pego uma carona em livro do mestre Nei Lopes – sambista, escritor, advogado – para dar uma volta pela cidade. O cenário principal de Rio Negro, 50 é o bar fictício, na Avenida Rio Branco, que dá nome ao livro; o melhor coadjuvante é outro bar fictício, o Abará, situado pelo compositor na Cinelândia. Mas a narrativa de Nei Lopes passa, sem parar, pelo Café Nice, também na Cinelândia, e pelo Café e Bar Simpatia, na esquina de Rua do Rosário com Rio Branco – ambos históricos estabelecimentos em pleno funcionamento em 1950, quando a história começa, mas fechados desde o século passado e vivos hoje apenas na memória dos muito antigos.

Sobrado com o Café Gaúcho no térreo na esquina de São José e Rodrigo Silva: ponto de encontro de pintores modernistas em meados do século passado (Foto: Oscar Valporto)
Sobrado com o Café Gaúcho no térreo na esquina das ruas São José e Rodrigo Silva: ponto de encontro de pintores modernistas em meados do século passado (Foto: Oscar Valporto)

Mas o livro leva este leitor saudoso dos botecos ao Café Gaúcho, citado no romance, como “dos pintores e escultores” – assim como o Nice era dos cantores e compositores do rádio e o Simpatia dos corretores de imóveis. A diferença é que, neste ano de pandemia de 2020, o Gaúcho onde sempre esteve: plantado na esquina de São José com Rodrigo Silva, desde 1935. As paredes são de clássico azulejo, não tem lugar para sentar, o balcão sinuoso deve ser um dos mais longos da cidade, o chope é excelente e a oferta de baixa gastronomia variada.

O Café Gaúcho fica no térreo de sobrado bem conservado de três andares, erguido no começo do século, após as obras que deram fim ao Morro do Castelo – um dos acessos ao monte era a Ladeira do Castelo que começava ali pela Rua São José. O bar já estava lá quando mudou-se para o segundo andar o Núcleo Bernardelli, grupo de pintores modernistas, fundado no começo da década de 1930 para fazer oposição ao modelo de ensino da Escola Nacional de Belas Artes. O grupo reivindicava o acesso dos artistas modernos ao Salão Nacional de Belas Artes e aos prêmios de viagens ao exterior, dominados pelos pintores acadêmicos. José Pancetti, Milton Dacosta e Eugênio Sigaud fizeram parte do núcleo que, após as reuniões, costumava esticar no Café Gaúcho que também era frequentado por Cândido Portinari, de outro grupo mas com amigos ali.

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Não há registro – ou eu não descobri – do que essa turma bebia há mais de 70 anos, mas chope já era popular nos anos 30. Neste século 21, o chope – a honestos R$ 6,90 – ainda é uma das principais atrações do Café e Bar Gaúcho, apreciado por quem encosta no balcão ou por aqueles que disputam as mesas altas, sem cadeiras, espalhadas pela calçada da Rodrigo Silva. A depender da disposição e da inspiração, vale pedir uma batida de gengibre que não chega a ser tão boa quanto a que meu pai preparava mas faz bem ao coração e à memória. A marca registrada do lugar é o cachorro quente de linguiça – no pão francês, com muita linguiça e muito molho – que sai sem parar: custa menos de R$ 10.

O Café Gaúcho com seus azulejos, seu longo balcão, sua ilha para o cafezinho clássico: tradição de beber em pé (Foto: Oscar Valporto)
O Café Gaúcho com seus azulejos, seu longo balcão, sua ilha para o cafezinho clássico: tradição de beber em pé (Foto: Oscar Valporto)

O bar tem uma sólida reputação na baixa gastronomia: sopas de ervilha, feijão branco caldo verde, feijão preto, dobradinha, feijão mexicano e – minha predileção – mocotó. O bolinho de carne – quase tão feio quanto o do Amendoeira, em Maria da Graça – faz sucesso semelhante; as empadas de palmito, camarão e frango também. Os sanduíches de pernil, carne assada e bife à milanesa são alternativas para quem teme o clássico de linguiça. O café é coado; o Gaúcho passou a aceitar cartões há pouco tempo mas café expresso é uma modernidade que ainda não se estabeleceu.

Cardápio de caldos e sopas rabiscado em quadro negro: mocotó, dobradinha , moela e outras tradições da baixa gastronomia (Foto: Oscar Valporto)
Cardápio de caldos e sopas rabiscado em quadro negro: mocotó, dobradinha , moela e outras tradições da baixa gastronomia (Foto: Oscar Valporto)

Há 85 anos na mesma esquina, o Café e Bar Gaúcho é testemunha das mudanças no Centro da Cidade: viu o horizontal Terminal Rodoviário Erasmo Braga, criado após a demolição total do Morro do Castelo, dar lugar ao Edifício Garagem Menezes Cortes; assistiu a demolição dos antigos sobrados do lado ímpar da São José para a construção da sede da Lume Empresarial, que jamais foi erguida; acompanhou a área cercada de tapumes ser batizada pela população de Buraco do Lume e, depois de urbanizada, ganhar os nomes oficiais de Melvin Jones e, posteriormente, Mário Lago. Durante a semana, o ainda Buraco do Lume é uma área movimentada, com artesãos, camelôs, comícios relâmpagos de esquerdistas, gente apressada. Está tudo meio vazio em dias de quarentena e isolamento – até o Café e Bar Gaúcho que minha fé carioca confia que resistirá a esses tempos sombrios.

#RioéRua

Chope e cachorro quente de linguiça em mesa na calçada: combinação matadora do Café Gaúcho, há 85 anos em sobrado no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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