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O negro Rio de Janeiro e sua herança africana

ODS 11 • Publicada em 7 de março de 2023 - 09:08 • Atualizada em 7 de março de 2023 - 09:46

Na semana do aniversário do Rio de Janeiro, que completou 458 anos no dia 1º de março, foi lançado por aqui o documentário ‘Rio, Negro’, abordando a história social, cultural e política da cidade (e seu entorno) com a chegada de africanos escravizados e as transformações provocadas pela presença e influência dos negros na vida carioca. As câmeras do filme circulam pouco pelo Rio de Janeiro do século XXI – dividem-se entre imagens (desenhos, pinturas, fotos e vídeos) históricas e depoimentos sobre o impacto dos afrodescendentes ao longo da trajetória da cidade. Mas a herança africana no Rio de Janeiro, que ganha os holofotes no carnaval e nos desfiles das escolas de samba, pode ser vista em quase toda a parte.

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O Rio de Janeiro foi o maior porto do tráfico negreiro do mundo por onde desembarcaram, desde o século XVII, pelo menos dois milhões de crianças, mulheres e homens escravizados na África. O primeiro porto ficou no Largo do Carmo (hoje Praça XV), tornada área nobre da cidade com a inauguração, em 1743, da Casa dos Governadores (hoje Paço Imperial). O desembarque dos africanos escravizados foi transferido para um lugar improvisado, um pouco mais ao norte da Baía da Guanabara, onde foi construído, em 1811, o Cais do Valongo que recebeu em apenas 20 anos (até 1831, quando foi proibido o comércio de escravos) cerca de 500 mil africanos.

O Cais do Valongo, coração da Pequena África no Rio de Janeiro: herança africana por toda a cidade (Foto: Thiago Lara / Riotur)
O Cais do Valongo, coração da Pequena África no Rio de Janeiro: herança africana por toda a cidade (Foto: Thiago Lara / Riotur)

O sítio arqueológico do Cais do Valongo – que faz breve aparição no documentário “Rio, Negro” – foi descoberto durante as obras para os Jogos Olímpicos 2016. É o coração da da Pequena África – como a região entre a Praça Mauá e São Cristóvão, passando pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, é conhecida desde o começo do século passado, por concentrar descendentes dos negros escravizados no Rio de Janeiro.

Nessa região, não são poucas as referências históricas: também importante é o Instituto dos Pretos Novos – outro sítio arqueológico, onde foram encontrados, a partir de 1994, restos mortais de centenas de escravizados que morreram na travessia do Atlântico ou na chegada ao Rio, além de objetos de uso dos próprios africanos.

Visita ao Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos: sítio arqueológico em local de cemitério de africanos escravizados no século XVIII no Rio de Janeiro (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil - 10/11/2022)
Visitantes no Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos: sítio arqueológico em local de cemitério de africanos escravizados no século XVIII no Rio de Janeiro (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil – 10/11/2022)

O instituto mantém um museu memorial, uma galeria para exposições temporárias e uma biblioteca. Também promove visitas guiadas ao Circuito da Herança Africana, que, além do Cais, inclui os Jardins Suspensos do Valongo (com as estátuas do antigo Cais da Imperatriz, como o Valongo foi chamado após reforma para receber a futura esposa do imperador Pedro II), a Pedra do Sal, o Mirante do Morro da Conceição e o Largo do Depósito (onde ficava o mercado de escravos).

Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira: pinturas, esculturas e fotografias (Foto: Thiago Lara / Riotur)
Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira: pinturas, esculturas e fotografias (Foto: Thiago Lara / Riotur)

Na mesma rua do instituto, na Gamboa, a prefeitura inaugurou, em 2021, o Museu da História e Cultura Afro-Brasileira (Muhcab) com 2,5 mil itens: pinturas, esculturas e fotografias, além de trabalhos de artistas plásticos contemporâneos.

Nesta cidade de São Sebastião, também está preservada – em pleno Saara, área de comércio popular no Centro do Rio – a Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, mandada construir em 1740, pela irmandade formada por negros escravizados provenientes de Cabo Verde, da Costa da Mina e de Moçambique. A igreja é conhecida por sua imagem de Santo Antônio de Categeró – santo nascido na África e escravizado.

Missa na Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Centro do Rio: construída por irmandade formada por africanos escravizados no Século XVIII (Foto: Alexandre Macieira / Riotur)
Missa na Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no Centro do Rio: construída por irmandade formada por africanos escravizados no Século XVIII (Foto: Alexandre Macieira / Riotur)

Da mesma época, é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos (1737), também no Centro do Rio, fundada pela irmandade constituída por africanos vindos de Angola e do Congo – no segundo andar, há um Museu do Negro – um memorial católico com referências ao culto à Nossa Senhora do Rosário, a São Benedito e à Escrava Anastácia quanto à memória de Zumbi dos Palmares, da Princesa Isabel, e do movimento abolicionista.

Nesta cidade de São Sebastião, também existem mais de 500 terreiros de umbanda e candomblé, religiões de matriz africana com outras centenas de locais de culto em municípios da Baixada Fluminense e da Região Metropolitana. O Mercadão de Madureira, tradicional centro de compras da Zona Norte do Rio, tem 25 lojas de artigos religiosos, a grande maioria voltada para os adeptos da umbanda e do candomblé. A gigantesca festa de réveillon na praia de Copacabana nasceu da devoção das religiões de matriz africana.

Entrada do Quilombo do Sacopã, na Zona Sul do Rio: preservação das raízes africanas e da natureza (Foto: Tânia Rego / Agência Brasil)
Entrada do Quilombo Sacopã, na Zona Sul do Rio: preservação das raízes africanas e da natureza (Foto: Tânia Rego / Agência Brasil)

Na área da cidade do Rio de Janeiro, estão ainda sete dos 29 quilombos reconhecidos pela Fundação Palmares no estado. A maioria está na área rural da Zona Oeste (Vargem Grande, Jacarepaguá, Camorim, Campo Grande), mas o Rio tem um quilombo em área nobre da Zona Sul. Nove famílias (cerca de 30 pessoas) vivem no Quilombo Sacopã – que tem 18 mil metros quadrados de Mata Atlântica numa encosta às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas – onde cultivam sua raiz africana e preservam a natureza.

Financiado pela Casa Fluminense, o documentário ‘Rio, Negro’ destaca – através dos depoimentos de ator, diretor e escritor Haroldo Costa, dos historiadores Ynaê Lopes e Luiz Antonio Simas, do ritmista Eryck Quirino, da atriz Juliana França, da ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, da filósofa Helena Teodoro e dos pesquisadores Eduardo Possidonio e Nielson Bezerra, entre muitos outros – as tentativas de apagamento e exclusão dos negros da história do Rio, incluindo o deslocamento para morros e para pontos distantes da periferia e a transferência da capital e do governo federal para Brasília. As tentativas de apagamento e exclusão estão longe de terminar, como mostram as dificuldades criadas a eventos da cultura negra na gestão do prefeito bispo do Rio e os ataques a terreiros de umbanda e candomblé na Baixada Fluminense.

Mas o Rio de Janeiro é do samba, do jongo, da capoeira, do funk. O Rio de Janeiro é da feijoada e do angu. O Rio de Janeiro é das encruzilhadas e de São Jorge. Somos a cidade de Machado de Assis, de Luiz Gama, de André Rebouças, de João Cândido, de Mercedes Baptista, de Cartola, de Abdias Nascimento, de Clementina de Jesus, de Paulinho da Viola, de Martinho da Vila, de Haroldo Costa – mesmo que alguns destes nem tenham nascido aqui. O Rio é negro e não é possível apagar protagonistas de sua história.

*O documentário Rio, Negro está em cartaz no Espaço Itaú de Cinema no Rio de Janeiro (Botafogo) e em São Paulo (Frei Caneca) e no Cine Vitória (Aracaju)

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