“Picham ‘Jesus é o dono do lugar’ e siglas de facções”

O babalorixá Adailton Moreira Costa, do respeitado terreiro de candomblé Ilê Omijuarô, em Nova Iguaçu: ‘os traficantes de Cristo, se é que podemos chamar assim, participam desses ataques mais violentos que estamos sofrendo” (Foto: Divulgação)

Babalorixá Adailton Moreira, sucessor da respeitada Mãe Beata de Iemanjá, denuncia descaso de autoridades com ataques de traficantes a terreiros de candomblé e umbanda

Por Chico Alves | ODS 16 • Publicada em 9 de julho de 2019 - 08:12 • Atualizada em 6 de março de 2023 - 15:57

O babalorixá Adailton Moreira Costa, do respeitado terreiro de candomblé Ilê Omijuarô, em Nova Iguaçu: ‘os traficantes de Cristo, se é que podemos chamar assim, participam desses ataques mais violentos que estamos sofrendo” (Foto: Divulgação)

Babalorixá do respeitado terreiro de candomblé Ilê Omijuarô, localizado em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, Adailton Moreira Costa, 55 anos, faz uma observação antes de se despedir do jornalista que acaba de entrevistá-lo. “Acrescenta aí que sou também mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Tem umas pessoas que acham que o povo de terreiro não tem formação, uma ideia etnocêntrica, racista”, explica. O comentário denota preocupação com o racismo religioso, tema da entrevista, a que Adailton atribui a motivação para a multiplicação dos ataques a espaços de umbanda e candomblé, com depredações e agressões físicas.  O toque de crueldade mais recente é a participação dos traficantes nessas ofensivas criminosas, que determinam o fechamento dos terreiros e só permitem em suas áreas de domínio o funcionamento de igrejas neopentecostais.

“Somos a bola da vez, um alvo fácil”, lamenta o babalorixá, uma das vozes mais representativas na defesa dos direitos das religiões afro. Seu prestígio vem tanto da sua capacidade de análise e coragem na exposição do pensamento, quanto do fato de ser ele o sucessor da Yalorixá Mãe Beata de Iemanjá, uma das maiores defensoras do povo de terreiro e ativista anti-racista, que morreu em 2017, aos 86 anos. Adailton recebeu dela a incumbência de cuidar do Ilê Omijuarô, encravado justamente na região onde há o maior número de denúncias de violência contra adeptos de religião de matriz africana. Segundo informações recentes, mais de cem terreiros na Baixada receberam dos traficantes ultimato para fechar as portas e deixar espaço livre para os evangélicos. Ameaças semelhantes ocorrem em vários outros estados.

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Para Adailton, esse clima de terror é consequência de um projeto político de tomada do governo por um grupo religioso, em que o Estado deixa de ser laico para se tornar teocrático. Sob o clima do racismo, tanto os agentes da lei (que não punem os agressores) quanto os que transgridem a lei se tornam opressores do candomblé e a umbanda. “Há um projeto salvacionista da igreja dentro dos presídios que é algo muito grave. Acontece a conversão de traficantes à religião em que essa pessoa muitas vezes continua no crime e sendo abençoado pelos pastores. Muitos deles se tornam pastores sem largar o tráfico”, relata. Segundo ele, como resultado dos ataques dos “traficantes de Cristo” várias favelas do Rio não têm mais um terreiro sequer em funcionamento.

COLABORA: Quando começaram esses ataques a terreiros?

Adailton Moreira Costa  – A gente já vem denunciando esses ataques a terreiros por intolerância religiosa desde a década de 80. Não é um projeto novo. É um projeto bem antigo, arquitetado. Existe também interesse econômico por trás disso tudo. Por parte de igrejas neopentecostais. E agora a gente tem esses ataques de pessoas ligadas ao tráfico também, os “traficantes de Cristo”, se é que podemos chamar assim, que também participam desses ataques mais violentos que estamos sofrendo. Há dois anos, o município de Nova Iguaçu tinha a maioria desses casos. Agora já está em Caxias e outras regiões do Brasil. Não há uma política pública efetiva que combata esse casos de intolerância. E não é falta de denúncia. Existe um descaso político no que diz respeito às religiões de matriz africana por conta de um racismo religioso.

Nós, na verdade, somos a bola da vez, somos um alvo muito fácil.

COLABORA: A polícia não leva a investigação da denúncia até o final?

Adailton: Para começar, há a falta de vontade de tipificar como intolerância religiosa. Algumas vezes os casos são classificados como “briga de vizinhos” e quando você vai procurar saber  qual o motivo da briga, descobre que foi  por causa da orientação religiosa. O poder público, as  instituições, não se sensibilizaram com esses direitos violados. As pessoas de terreiro estão se sentindo acuadas, desrespeitadas, e isso é muito ruim para essa população. Já temos racismo em várias áreas, há a falta de sensibilidade das instituições de lidar com esses assuntos dos povos de matriz africana. A tendência é piorar nesse momento político que estamos passando no país, extremamente racista. Nós, na verdade, somos a bola da vez, somos um alvo muito fácil.

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COLABORA: Há, então, um plano para acabar com as religiões de matriz afro?

Adailton: Já na década de 80, havia um projeto político de extermínio dessa população de terreiro. Havia essa estratégia política, de um Estado neopentecostal. Era o projeto “Brasil Para Cristo”. Em vários encontros realizados em terreiros na década de 80 nós denunciamos isso,  as pessoas não acreditavam muito. Mais de 30 anos se passaram e a cena é essa. Temos uma Constituição que nos dá liberdade de culto, mas é uma Constituição chapa branca, que não pega, não é respeitada.

COLABORA: Há uma aliança dos neopentecostais com o tráfico ou os traficantes se dizem evangélicos indevidamente?

Adailton: Há um projeto salvacionista da igreja dentro dos presídios que é algo muito grave. Acontece a conversão de traficantes à religião em que essa pessoa muitas vezes continua no crime e sendo abençoado pelos pastores. Muitos deles se tornam pastores sem largar o tráfico.Temos essa perseguição que classifica as religiões de matriz africana como sendo algo  do demônio, do diabo, essa confusão que faz com que as  pessoas acreditem nisso. Resultado: em algumas favelas não há mais espaço de religião de matriz africana porque o tráfico proibiu. Em alguns lugares da periferia do Rio começa a ter essa visão também, em outros estados também. É um fenômeno nacional e as autoridades não fazem nada para coibir essas ações. Há um descaso muito grande. A quem os ameaçados podem fazer denúncias e cobrar resultados? A ninguém. Não há denúncia que chegue ao final, com resultado, alguém preso.

COLABORA: O que determina isso?

Adailton: São diversos fatores. Esse estado que vai se tornando teocrático,  que faz proselitismo religioso, é muito perigoso. O Estado deixa de ser laico e passa a ter o domínio de um segmento religioso específico na sua gestão. Não há problema de o gestor ter a sua religião, o problema é o gestor impor a sua crença sobre o Estado. Sabemos que há um determinado segmento neopentecostal que tende a fazer exatamente isso. É o que estamos vendo hoje.

COLABORA: Como os adeptos das religiões afro estão reagindo às ameaças?

Adailton: Quando é alguém que tem consciência dos seus direitos políticos e civis, a tendência é cada vez mais  buscar instâncias que podem defendê-los. Quando não é, a tendência é ceder,  deixar de bater seus atabaques, deixar de professar sua tradição religiosa, se esconder. Voltamos aos tempos do Estado Novo, da proibição dos atabaques. Não há esse Estado dizendo claramente que proíbe, mas há diversos mecanismos sociais que fazem com que as pessoas sejam acuadas. É muito ruim essa condição de religioso nesse país dito laico. Estamos tendo apoio apenas do Ministério Público Federal, que é parceiro nessas questões. O caminho é denunciar cada vez mais e cobrar do poder público ações efetivas.

COLABORA: Quais são as formas de ameaças dos traficantes aos terreiros?

Adailton:  Há vários tipoes de ataques e terror feitos às religiões de matriz africana e suas comunidades. Tem esse movimento de constranger publicamente. Casos de violência física e verbal. Ataques aos patrimônio do terreiro, violação dos templos. Essa coisa de dizer para as crianças que a religião é do mal é perseguição e tortura psicológica contra o adepto. Pessoas sentem que podem atacar os terreiros sem que nada lhe aconteça, com arma de fogo, para dizer que não vai mais ter celebração religiosa. É o estado omisso quanto aos direitos do povo de matriz africana. A gente não vê ataques a outras religiões, em especial às religiões hegemônicas. Isso causa a sensação de que não somos nada, não somos cidadãos, o Estado não nos vê como um grupo a ser protegido ou salvaguardado por ele . Picham em vários lugares o lema “Jesus é o dono do lugar”, siglas de facções criminosas e outras frases.

COLABORA: O historiador Luiz Antonio Simas reivindica que os ataques aos terreiros sejam classificados como terrorismo, a exemplo com o que acontece nos casos de templos de outras religiões. O que acha?

Adailton: Já passou de várias denominações que possamos usar para classificar isso. É terrorismo, é tortura, é tirania, autoritarismo, fascismo. Tudo isso que a gente compreende que é muito ruim numa sociedade como a nossa, que é construída com o estupro da sua população. O Brasil vem com essa cultura da violação dos direitos, ele nasce com a escravidão, a colonização… Só podemos identificar a qualidade de uma sociedade, o desenvolvimento humano, quando os direitos são preservados. Vemos que aqui no país, em especial aqui no Rio de Janeiro, os Direitos Humanos não sendo usados para proteger humanos, em especial os adeptos das religiões de matriz africana.  Temos que nos atentar para essas violações porque o saldo será negativo para todos.

Chico Alves

Chico Alves tem 30 anos de profissão: por duas vezes ganhou o Prêmio Embratel de Jornalismo e foi menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog. Na maior parte da carreira atuou como editor-assistente na revista ISTOÉ, mais precisamente por 19 anos. Foi editor-chefe do jornal O DIA por mais de três anos. É co-autor do livro 'Paraíso Armado', sobre a crise na Segurança Pública no Rio, em parceria com Aziz Filho.

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5 comentários ““Picham ‘Jesus é o dono do lugar’ e siglas de facções”

  1. Hudson Novak disse:

    Sou da região afro amo de paixão meu asé meu orixá sempre que posso falo abertamente. Sou graduado e pós graduado em saúde oncológica atualmente curso direito e justamente na diversidade de gênero e religiões que quero atuar pós bacharel em direito. A luta continua e vem com os navios negreiros e não vai acabar . Queria que o país laico entendesse que há espaço crença e divindades para todos aqueles que procuram ….cada um na sua
    Motumbá asé ôôô

  2. Lora disse:

    Lamentável a falta de um singelo conhecimento. Religião maravilhosa extraordinária, infelizmente muitos generalizam acha que todas só praticam coisas ruins. A maldade está na mente das pessoas e não na religião.

  3. André Luís disse:

    Muito triste essa questão de perseguição, violência, terrorismo e discriminação contra as religiões de matriz africana.
    Mas eu creio que o que falta, a esses grupo tão heterogêneo das religiões de matriz africana, é união e coragem para mostrar a cara e cobrar seus direitos!
    Falta politização também!!!
    Veja o exemplo dos homossexuais que sempre foram perseguidos, humilhados, assassinados, e com muita luta e união tem alcançado grandes conquistas!

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