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A mais infame de todas as Copas (junto com uma outra)

Mundial do Catar que começa domingo se iguala ao da Argentina, como os dois momentos mais vergonhosos do futebol

ODS 11ODS 8 • Publicada em 17 de novembro de 2022 - 05:07 • Atualizada em 22 de novembro de 2022 - 09:25

A “família futebol” chegará ao fundo do poço da vergonha no início da noite – seca, porque assim funciona no deserto – de domingo, 20 de novembro. Às 19h locais (13h de Brasília), rola a bola da Copa do Mundo do Catar, com os anfitriões – um nada futebolístico – diante do Equador. Estará consumada a maior infâmia da história recente do esporte mais popular da Terra.

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A reunião dos maiores jogadores da atualidade terá como endereço um país subjugado por uma teocracia, que despreza os direitos humanos, oprime mulheres, massacra LGBTs, martiriza trabalhadores e ignora conceitos como sustentabilidade e tragédias como a crise climática. Preceitos das civilizações modernas passam longe daquele rincão sem chuva.

Mas jorra dinheiro – o que realmente importa para a dona do jogo. Ao levar seu principal produto para um emirado absolutista e hereditário, numa viagem no tempo até a Idade Média, a Fifa virou sócia de um multimilionário projeto de lavagem da imagem do país. A 22ª Copa do Mundo afundou-se no sportswashing – quando o esporte se traveste de chamariz para virar do avesso a visão sobre lugares, pessoas, empresas. Está feio? Bota Messi, Benzema, Neymar, Mbappé, Vinicius Jr num gramado impecável, de um estádio novinho, que fica bonito.

Dessa vez, a receita desandou por servir a um paroxismo como o Catar. O país constrói sua obscena riqueza a partir de uma atividade venenosa para o planeta – a extração de petróleo e gás. Dono da 14ª maior reserva do combustível fóssil do mundo, com renda per capita de US$ 144 mil (22 vezes a do Brasil e 2,5 a dos EUA), o emirado absolutista não precisa tourear questionamentos e prestações de contas típicos dos estados democráticos. Seus governantes fazem o que bem entendem – inclusive Copa do Mundo.

O país não tinha equipamento minimamente próximo do Padrão Fifa, outra bizarrice da entidade que exige arenas caras para a realização de suas competições (mesmo sem perspectiva de utilização depois). No caso catari, moleza – os organizadores bancaram a construção de sete estádios, aeroporto, metrô, hotéis, estradas e até uma nova cidade, Lusail, onde fica o campo da final, a 15 quilômetros da capital Doha. Tudo num intervalo de 12 anos.

Torcida do Bayern de Munique faz a conta: "15 mil mortos para 5.760 minutos de futebol. Vocês deviam se envergonhar!". Reprodução do Twitter
Torcida do Bayern de Munique faz a conta: “15 mil mortos para 5.760 minutos de futebol. Vocês deviam se envergonhar!”. Reprodução do Twitter

Choveram relatos de violências diversas, de trabalho análogo à escravidão a milhares de mortes entre os 30 mil imigrantes contratados para erguer as instalações da Copa. Um constrangimento planetário, com seres humanos confinados em acomodações indigentes, tendo passaportes confiscados e salários retidos pelos patrões.

“Vi centenas de operários que ficaram dois anos sem receber. O que eles vão comer?”, denunciou o filipino Ambet Yulson, secretário-geral do ICM, a Internacional de Trabalhadores da Construção Civil e da Madeira. “É um caso que vai contra a convenção internacional sobre trabalhos forçados. É escravidão moderna”, atacou ele, após participar de 25 inspeções desde 2017.

As mortes durante as obras somaram algo entre 6,5 mil e 15 mil pessoas, a depender da investigação. (Nos três mundiais anteriores, Brasil incluído, foram nove vítimas.) O emirado zilionário rejeitou clamores de ONGs para criar um fundo que indenizaria as famílias dos mortos, provenientes de países como Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka. E o ministro Ali bin Samij Al-Marri ainda acusou as entidades de direitos humanos de “desacreditar o Catar com afirmações deliberadamente enganosas”.

Ante à pressão internacional, o anfitrião da Copa até aprovou reformas trabalhistas como tentativa de maquiar os problemas, mas era tarde. Assim como será indisfarçável a brutalidade de gênero, motivo de protesto até de uma integrante da elite do poder futebolístico. Em março, a presidente da Federação Norueguesa, Lise Klaveness, assumiu o protagonismo no Congresso Anual da Fifa, realizado em Doha. “Direitos humanos e democracia não estavam no time titular até muitos anos depois. Esses direitos básicos foram deixados na reserva”, protestou a dirigente. “Não pode haver espaço para líderes que não podem ser sedes do futebol feminino. Não pode haver espaço para anfitriões que não podem garantir legalmente a segurança e o respeito às pessoas LGBTQ que vêm a este teatro dos sonhos”.

No bojo, a tragédia humanitária e social expôs o DNA da Fifa (de todo o poder do esporte, na verdade), em sua aventura pelo Oriente Médio. A entidade marcou o maior gol contra de sua história com a desastrada estratégia de escolher as sedes de dois Mundiais – 2018 e 2022 – ao mesmo tempo. Serviu para radicalizar a patológica gula dos cartolas por dinheiro.

Em 2 de dezembro de 2010, seis países europeus apresentaram quatro candidaturas para 2018 (Inglaterra, Rússia, Espanha/Portugal e Holanda/Bélgica); Austrália, EUA, Japão, Catar e Coreia do Sul se lançaram na disputa da edição de 2022. Até as calçadas de Zurique, a cidade da Fifa, sabiam que os melhores projetos eram o inglês e o americano – mas terminaram escolhidos a terra da vodca e a pequenina monarquia que flutua em petróleo.

A Copa de 2018, aliás, serviu como aperitivo da excrescência. A Rússia negligencia os direitos humanos, naturaliza o racismo e a misoginia, e sua democracia tem a solidez de um castelo de areia. O ex-agente da KGB Vladimir Putin está no poder desde 1999, revezando-se entre os cargos de primeiro-ministro e presidente. Ocupa a chefia do executivo desde 2012, cavalgando o oximoro da ditadura que se renova em eleições sem credibilidade. (Em 2021, aprovou lei que lhe permite ficar no posto até 2036.) Além disso, o país criou uma indústria do doping, que levou ao banimento dos Jogos Olímpicos e de mundiais de quase todos os esportes. Não estará no Catar por causa de outra exclusão, pela invasão à Ucrânia.

A corrupção desenfreada na escolha duplamente absurda pôs os mandachuvas da bola na mira do FBI e do Departamento de Justiça dos EUA. A investigação que durou três anos terminou, em 2015, com sete cartolas presos, por desvio de US$ 150 milhões. O sol passou a nascer quadrado para, entre outros, José Maria Marin, presidente da CBF, e Chuck Blazer, caricatura ambulante que comandava a Federação de Futebol dos EUA.

O então presidente da Fifa, Sepp Blatter, escapou da cadeia, mas perdeu o emprego. Encurralado pela denúncia (publicada pelo “New York Times”) de que Jérôme Valcke, secretário-geral e seu braço-direito, tinha conhecimento da propina de US$ 10 milhões paga a um cartola do Caribe pelo voto em favor da África do Sul como sede da Copa de 2010, renunciou após comandar a Fifa por 17 anos – e, segundo investigação interna, embolsar, com dois funcionários, o equivalente a R$ 286 milhões.

(Processado, Blatter acabou inocentado na primeira instância, mas a promotoria suíça recorreu. O escândalo envolveu mais gente, inclusive um astro dos campos, o francês Michel Platini, que renunciou à presidência da Uefa por ter recebido 1,8 milhão de euros, também na baixaria do Catar.)

O cartola suíço não inventou nada. Apenas seguiu o caminho aberto por seu antecessor, o brasileiro João Havelange, que vislumbrou o potencial de dinheiro e poder do futebol a partir das artesanais copas dos tempos de Garrincha, Pelé, Eusébio, Beckenbauer, Bobby Moore. Pragmático além de qualquer limite ético, o ex-atleta olímpico de natação e polo aquático articulou sua ascensão com as confederações não europeias e comandou a dona do jogo de 1974 a 1998.

João Havelange (segundo a partir da esquerda) ao lado do ditador Jorge Videla: parceiros na Copa da Argentina. Reprodução
João Havelange (segundo a partir da esquerda) ao lado do ditador Jorge Videla: parceiros na Copa da Argentina. Reprodução

A primeira Copa de Havelange empata com a do Catar em indignidade. Em 1978, o brasileiro transformou a Fifa em sócia de uma das mais sanguinárias ditaduras do século 20 para realizar o Mundial na Argentina. Ignorou os milhares de mortos e desaparecidos no país e mandou a bola rolar nos campos enlameados pelo inverno sul-americano. Ainda fez pose de estadista na tribuna dos estádios ao lado do general Jorge Videla, primeiro e mais violento ditador do regime.

Os parceiros assistiram juntos ao time do craque Mario Kempes conquistar a competição, batendo a Holanda por 3 a 1 no Monumental de Nuñez – a 3,5 quilômetros da Escola de Mecânica da Armada, onde os torturadores praticavam atrocidades contra homens, mulheres e crianças. História de outro tempo, ancestral do arbítrio catari.

Depois de todo o poder, Havelange terminou seus dias no desterro. Em 2013, renunciou ao posto de presidente de honra da entidade (qualquer semelhança com o cargo dos bicheiros nas escolas de samba não tem nada de coincidência) para escapar de punições pelo envolvimento nos casos de corrupção que arrastaram os outros. Morreu aos 100 anos, em agosto de 2016, durante os Jogos Olímpicos do Rio.

O inventor da Fifa poderosa e multimilionária não viveu para testemunhar o constrangimento da Copa do Catar. Torcidas de vários clubes protestam e pedem boicote ao evento. Países como França e Suíça dispensaram as fan fest (tradição nos mundiais) em protesto pelas violações dos direitos humanos.

Até marcas comerciais estão fazendo o marketing na contramão. A cervejaria escocesa BrewDog espalhou orgulhosos outdoors e painéis em pontos de ônibus, do seu “antipatrocínio” à Copa. “Primeiro Rússia, agora Catar. Mal podemos esperar pela Coreia do Norte”, zomba um deles. “Para sermos claros, amamos futebol, mas não amamos corrupção, abusos e morte. No Catar, a homossexualidade é ilegal, açoitamento é uma forma aceita de punição e está tudo bem que 6.500 trabalhadores tenham morrido construindo estádios”, ataca a empresa, em texto nas redes sociais.

"Primeiro Rússia, agora Catar. Estamos ansiosos pela Coreia do Norte", ironiza o outdoor do "antipatrocínio" da Copa. Reprodução
“Primeiro Rússia, agora Catar. Estamos ansiosos pela Coreia do Norte”, ironiza o outdoor do “antipatrocínio” da Copa. Reprodução

Mas os poderosos do futebol não aprendem a lição. Conceitos como compliance e governança são miragens na vida real do jogo, em todas as esferas. O racismo grassa impune nas arquibancadas; a desigualdade e a concentração de renda imperam e 12 clubes europeus, delirantemente endinheirados, contratam todos os craques, dominando os campeonatos de que participam. Um deles, o Paris Saint-Germain de Neymar, Messi e Mbappé, tem como dono o Fundo Soberano do mesmo Catar.

A Premier League, maior e mais rica competição nacional, é uma espécie de paraíso fiscal da bola. Aceita dinheiro de qualquer procedência – até outro dia, o Chelsea integrava o patrimônio de Roman Abramovich, bilionário russo que só foi enxotado por causa da invasão à Ucrânia. O Manchester City, ex-pequeno que, comandado pelo genial Pep Guardiola, joga o melhor futebol entre clubes, pertence ao sheik Mansour Bin Zayed Al Nahyan, vice-primeiro-ministro dos Emirados Árabes e dono de uma fortuna de US$ 41 bilhões (pouco mais de R$ 200 bilhões).

O capítulo mais recente dá um passo adiante na promiscuidade: o Newcastle foi comprado por 300 milhões de libras (quase R$ 2 bilhões) pelo Fundo Público de Investimento da Arábia Saudita, do príncipe Mohammad Bin Salman – aquele que mandou esquartejar um jornalista na embaixada do país na Turquia. Agora, vai brincar na elite do futebol.

Hora do (breve) intervalo no cotidiano de propinas e escândalos, problemas e vilões – vai começar a Copa. Os craques baterão um bolão, haverá golaços, lances memoráveis, emoção, alegria, choro e ranger de dentes, até um dos capitães erguer a taça, dia 18 de dezembro. Mas uma derrota está garantida: dessa vez, será impossível esconder a sujeira.

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