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“Travessia do luto à luta”: ninguém solta a mão de ninguém em 2023

ODS 10 • Publicada em 11 de janeiro de 2023 - 17:46 • Atualizada em 30 de janeiro de 2023 - 18:33

Na véspera da posse da nossa mais nova ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, estava quase tudo pronto. A passagem para Brasília estava comprada. Minhas roupas sociais estavam lavadas e já no cabide. Já tinha duas opções de hospedagem. Esbocei alguns tópicos para a minha décima coluna jornalística. Enviei alguns e-mails para potenciais encontros na capital dos três poderes. Porém, como de costume, nunca faço o check-in com muita antecedência pré-embarque. “Vai que acontece alguma coisa?”. E aconteceu.

E, neste ano de 2023, em que estamos celebrando 20 anos do primeiro governo Lula, que criou em 2003 a primeira Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil, daremos um passo à frente na institucionalização da luta política antirracista. Trazendo o racismo para o debate público e institucional de um modo até então não vivenciado na política brasileira, uma conquista fruto das mobilizações sociais incessantes

Anielle Franco
Ministra da Igualdade Racial

Eu estava animadíssima como nunca para a cerimônia. Mandei mensagem para os meus pais, para companheiros e companheiras de jornada, para o meu orientador do mestrado. Não tinha tido a oportunidade ainda de entrar no Palácio do Planalto. E o evento não era qualquer um. Um ministério de continuidade ao trabalho da Nilma Lino Gomes, que carrega uma das pautas mais preciosas que norteiam o meu trabalho, que é a luta – ora incansável, ora exaustiva – por justiça social.

Quando comecei a acompanhar a série de atentados na invasão do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Planalto, confesso que tentei me enganar repetindo para mim mesma que não passaria de um susto. À medida que os ataques tomaram proporções mais graves, tive um surto de ansiedade pensando como aquilo estava acontecendo diante dos holofotes da mídia, das redes sociais, da polícia militar e federal, e do Brasil. Há exatos sete dias antes da depredação, estávamos chorando de felicidade e esperança com a cerimônia de posse. E, uma semana depois, choramos de indignação e revolta diante do inadmissível ataque à democracia. Os bolsonaristas destruíram parte do nosso patrimônio e memória geracional.

Obviamente as cerimônias restantes dos Ministérios da Igualdade Racial e dos Povos Originários foram canceladas. Não havia clima nem segurança para tal. Contudo, como sinal de resistência, as solenidades foram realizadas. Não pude realizar meu sonho de presenciar, mas acompanhei virtualmente e fui capaz de sentir a força de cada pronunciamento daquele discurso que conclamou por igualdade, justiça e reparação.

Anielle Franco na posse como ministra da Igualdade Racial: "O enfrentamento ao racismo e a promoção da igualdade racial é um dever de todos nós" (Foto: Ricardo Stuckert)
Anielle Franco na posse como ministra da Igualdade Racial: “O enfrentamento ao racismo e a promoção da igualdade racial é um dever de todos nós” (Foto: Ricardo Stuckert)

“E neste ano de 2023, em que estamos celebrando 20 anos do primeiro governo Lula, que criou em 2003 a primeira Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil, daremos um passo à frente na institucionalização da luta política antirracista com este Ministério. Trazendo o racismo para o debate público e institucional de um modo até então não vivenciado na política brasileira, uma conquista fruto das mobilizações sociais incessantes que antecederam e culminaram neste momento”, afirmou a ministra.

Só iremos vivenciar uma verdadeira democracia a partir do momento em que a preocupação com a dignidade da população negra seja também uma preocupação de cada um dos outros ministérios, e esperamos poder contar com vocês para enfrentar este desafio. Só conseguiremos dar uma resposta eficaz às dívidas do passado se trabalharmos juntas

Anielle Franco
Ministra da Igualdade Racial

Nesse momento, lembrei imediatamente dos meus quatro sobrinhos, de idades 2, 4, 5 e 13 anos, que tão novos terão a oportunidade de crescer em um Brasil mais assertivo quanto à conscientização do racismo e políticas antirracistas. Não tive essa chance, o que gerou profundas cicatrizes na minha autoestima e maturidade política. Difícil se conectar com discursos da política institucional, sobretudo em uma democracia de baixa representatividade e identificação.

“Estamos falando de diferenças raciais hierárquicas que instituem condições materiais desiguais de vida e de morte de brasileiros e brasileiras. Não podemos mais ignorar ou subestimar o fato de que a raça e a etnia são determinantes para a desigualdade de oportunidades no Brasil em todos os âmbitos da vida. Pessoas negras estão sub-representadas nos espaços de poder e, em contrapartida, somos as que mais estamos nos espaços de estigmatização e vulnerabilidade”, provocou Anielle, lançando uma flecha na naturalização das múltiplas disparidades em todos os setores do nosso país.

“Reitero o que foi dito no pronunciamento de posse do Presidente Lula: O Brasil do futuro precisa responder às dívidas do passado! E é por isso que em um governo de reconstrução, nós gostaríamos também de falar com os não negros. O enfrentamento ao racismo e a promoção da igualdade racial é um dever de todos nós. A população brasileira não pode ser onerada com o custo das violações das quais é vítima”, apontou como crítica ao diálogo ainda ineficaz com a branquitude do nosso país que, recorrentemente, apresenta-se aliada à luta antirracista, mas não tem ousadia de levantar do trono do privilégio. Seguiremos caminhando em labirintos cíclicos enquanto não rompermos com essa lógica de morte.

“Só iremos vivenciar uma verdadeira democracia a partir do momento em que a preocupação com a dignidade da população negra seja também uma preocupação de cada um dos outros ministérios, e esperamos poder contar com vocês para enfrentar este desafio. Só conseguiremos dar uma resposta eficaz às dívidas do passado se trabalharmos juntas”, evocou a ministra, que me fez levantar, gritar, chorar e aplaudir. A democracia tem um custo e eu estarei aqui, no exercício do meu jornalismo e compromisso com equidade, para denunciar as injustiças que a perfuram, a atrasam e a interrompem. O discurso de Anielle Franco hoje foi como um ansiolítico. Me trouxe de volta o fôlego que eu preciso para enfrentar os próximos combates e ataques de 2023. Porque sonhos individuais são importantes, mas sonhos coletivos se transformam em políticas públicas. Isso é o que chamamos de travessia “do luto à luta”.

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