Sobre cabelo black power, política e demais coisas belas

Participante do “BBB21”, João Luiz Pedrosa e seu black power protagonizaram reflexão sobre o significado do cabelo para o movimento negro (Crédito: TV Globo)

Do “BBB 21” à legislação do século 18 que obrigou mulheres negras da Luisiana a usarem lenço na cabeça, a história mostra que a cabeleira afro sempre representou uma discussão muito além da estética

Por Gabriel Trigueiro | ODS 10 • Publicada em 9 de abril de 2021 - 10:36 • Atualizada em 18 de maio de 2021 - 14:58

Participante do “BBB21”, João Luiz Pedrosa e seu black power protagonizaram reflexão sobre o significado do cabelo para o movimento negro (Crédito: TV Globo)

Há coisa de poucos dias o Brasil se viu no meio de uma discussão acalorada sobre racismo e a interseção, sempre presente, mas com frequência negada, entre estética e política. Tudo começou quando no “BBB 21”, Rodolffo, um cantor sertanejo de Goiânia, comparou o cabelo black power de João Luiz, professor de Geografia, natural de Minas Gerais, com a peruca de uma fantasia de homem das cavernas. Disclaimer: não, o cabelo do João não é igual ao de um Neandertal.

Após discussões acaloradas dentro e fora da “casa mais vigiada do Brasil”, e muita pressão da internet, Tiago Leifert fez um discurso dirigido a Rodolffo. O apresentador deixou explícito que o cabelo de João se relacionava menos com uma escolha estética, e muito mais com escolhas e simbologias políticas: de autoaceitação, de antirracismo e de afirmação da beleza e das potencialidades de ser negro em uma sociedade organizada sobre bases estruturalmente racistas.

O conceito de que hoje os negros estão politizando algo que deveria ser tratado em um foro estético se assenta em uma premissa falsa, e na inversão de causalidade e ônus: o cabelo negro sempre foi politizado, invariavelmente em uma chave negativa. O que ocorre hoje é o reconhecimento desse fato e uma reação à altura

É um clichê, mas talvez o seja por um bom motivo, citar aquela velha frase de Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Ainda que obviamente o racismo à brasileira tenha as suas especificidades e dinâmicas próprias, é sempre instrutivo olhar para as formas de resistência política que se organizaram nos Estados Unidos, um país de dimensões continentais, como o nosso. E, além disso, fundado igualmente a partir de uma economia escravista.

Onde a discriminação ao cabelo é ilegal

Em 03 de julho de 2019, a Califórnia foi o primeiro estado dos EUA a criar uma proteção legal a atos discriminatórios ao cabelo de estudantes e empregados negros. Foi quando o governador Gavin Newsom aprovou um projeto de lei do senado, a Senate Bill 188, também conhecido como CROWN Act (Create a Respectful and Open Workplace for Natural Hair), uma lei que declara a discriminação de cabelo ilegal. Segundo o texto da lei, “a ideia de profissionalismo esteve, e ainda está, intimamente ligada às características e maneirismos europeus. Isso implica que aqueles que não se adequam naturalmente às normas eurocêntricas devem alterar a sua aparência, por vezes drástica e permanentemente, para serem considerados profissionais”.

Cabelo black power: pôster do FBI de Angela Davis, da década de 1970. Ativista foi procurada pela justiça americana (Crédito: Ann Ronan Picture Library / Photo12 via AFP)
Pôster do FBI de Angela Davis, da década de 1970. Ativista foi procurada pela justiça americana (Crédito: Ann Ronan Picture Library / Photo12 via AFP)

O conceito de que hoje em dia os negros estão politizando algo que deveria ser tratado em um foro meramente estético se assenta em uma premissa falsa, e em uma inversão de causalidade e ônus: isto é, o cabelo negro sempre foi politizado, invariavelmente em uma chave negativa. O que ocorre hoje é o reconhecimento desse fato e uma reação à altura. Por exemplo, no século 18, as mulheres negras no estado da Luisiana chegaram a ser proibidas de usarem em público os seus penteados por conta de uma lei emitida na época pelo governador colonial espanhol Don Esteban Miró, as chamadas Tignon Laws, segundo as quais essas mulheres deveriam usar um tipo de lenço específico que escondesse os seus cabelos, um marcador de classe social bem explícito, repare.

Cabelo black power: o cantor Tony Tornado em 1971 (Crédito: Arquivo Nacional)
O cantor Tony Tornado em 1971 (Crédito: Arquivo Nacional)

Cabelo black power e direitos civis

Outro marco legal dessa questão nos EUA surgiu a partir do caso histórico em que Beverly Jeanne Jenkins, na época funcionária da Blue Cross and Blue Shield, escutou de seu empregador que “jamais poderia representar a Blue Cross usando um cabelo afro”. Jenkins processou a firma em Jenkins v. Blue Cross Mutual Hospital Insurance Inc, em um entendimento histórico firmado em 1976, em decisão favorável a Jenkins. Entendeu-se que os cabelos afros estariam protegidos sob o guarda-chuva legal do Título VII da Lei dos Direitos Civis: que veda qualquer tipo de discriminação de trabalhadores por conta de raça, sexo, religião e mesmo origem nacional.

Há uma linha de continuidade entre 1968, quando James Brown gritou “Say it loud! I’m black and I’m proud”, e 2016, quando Solange Knowles cantou “Don’t touch my hair”

Cabelo black power e as urnas

Não faz tanto tempo, foi ainda em 2014, em entrevista ao canal britânico Channel 4, que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie argumentou que quando a primeira-dama Michelle Obama apareceu com o seu cabelo natural, durante as eleições, era factível de que isso pudesse ter custado a presidência a seu marido. Esse tipo de afirmação não vem do nada. Precisa de alguma contextualização cultural. Por exemplo, é uma daquelas tristes ironias históricas o fato de que a primeira mulher negra a se tornar milionária, a norte-americana Madam C.J. Walker (1867-1919), tenha se tornado rica vendendo produtos cosméticos destinados a alisar cabelos afro.

A primeira grande onda de valorização dos cabelos afro, nos EUA, ocorreria apenas na década de 1960. Ativistas políticos como Marcus Garvey e Angela Davis foram importantes lideranças negras. Entre muitas outras coisas, eles se insurgiram diante da imposição da tirania de ideais de beleza eurocêntricos. Há uma linha de continuidade entre 1968, quando James Brown gritou “Say it loud! I’m black and I’m proud”, e 2016, quando Solange Knowles cantou “Don’t touch my hair”.

Cabelo black power: Michelle Obama em Kuala Lumpur em 2019: com frequência, ex-primeira-dama tem aparecido com os cabelos naturais após deixar o posto (Crédito: MOHD RASFAN / AFP)
Michelle Obama em Kuala Lumpur em 2019: com frequência, ex-primeira-dama tem aparecido com os cabelos naturais após deixar o posto (Crédito: MOHD RASFAN / AFP)

Não é um tênis, é símbolo de superação

Trocando em miúdos: marcadores de estilo, com frequência, não são apenas um reflexo da moda da estação. São manifestações sofisticadas da história de um povo, de uma região, de uma luta. Podemos tomar como exemplo a paixão dos rappers americanos por tênis caros e extravagantes. Será que é só vontade de torrar mais uns tostões? Ou traz um paralelo íntimo com os antepassados escravizados? Não faz muito tempo que os tataravós desses artistas andavam pelas cidades descalços, o que era um forte indicador de que o indivíduo era um trabalhador escravizado. Em oposição a isso, os tataranetos não admitem sair de casa sem ostentar um pisante de respeito nos pés. Não é um tênis, é um símbolo da superação de uma opressão.

Artistas brasileiros negros de soul, funk, samba e demais ritmos diaspóricos (Hyldon, Cassiano, Tim Maia, Tony Tornado, Gerson King Combo, Sandra Sá, Elza Soares etc.) nos recordam que um cabelo é muitas vezes mais do que um cabelo. Por exemplo, não é à toa que em seu desfile no ano passado, em 2020, a Estação Primeira de Mangueira representou um Jesus Cristo de pele preta e cabelo descolorido: em ascese e santificado. Fosse eu o Rodolffo, aproveitava logo o meu tempo livre fora da casa e dava o play nesse desfile no YouTube. Vai que ele aprende alguma coisa. Mal não vai fazer.

Assista ao vídeo do Canal Reload.

Gabriel Trigueiro

Doutor em História Comparada pela UFRJ e especialista em teoria política e crítica cultural. Escreve sobre política brasileira, política internacional e cultura.

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