ODS 1
Coronavírus: para 100 mil pessoas, ficar em casa significa ficar nas ruas
Sem os cuidados básicos de higiene, dificuldades na alimentação devido ao isolamento social e entraves no acesso à saúde, população em situação de rua no Brasil vive cenário de vulnerabilidade e muitos questionamentos.
Sem os cuidados básicos de higiene, dificuldades na alimentação devido ao isolamento social e entraves no acesso à saúde, população em situação de rua no Brasil vive cenário de vulnerabilidade e muitos questionamentos.
Ana Paula, 44 anos, tenta manter o ambiente onde dorme o mais organizado possível. Diz que tem mania de limpeza. Há dois meses, passa as noites em uma calçada da Rua Desembargador Izidro, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Antes, habitava uma ocupação no mesmo bairro, mas devido a um incêndio se viu obrigada a viver em situação de rua, até o dia em que consiga reconstruir sua casa. Ao seu redor, no pequeno espaço localizado atrás de um quiosque de chaveiro, um colchão, balas que vende para conseguir uma renda e algumas doações, que estão ficando mais escassas. Em tempos da pandemia do coronavírus, Ana Paula e mais de 100 mil pessoas no país que vivem essa mesma condição estão entregues à própria sorte. A grande maioria não tem como colocar em prática os principais cuidados de prevenção recomendados pela OMS, como lavar as mãos com frequência, usar álcool em gel, evitar aproximação e, o principal, ficar em casa. Afinal, eles já estão na deles.
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Ao pensar na vulnerabilidade dessa população, decido sair rapidamente da minha quarentena – iniciada na última segunda-feira, 16 – para ir ao encontro de Ana Paula, que se abriga na mesma rua da minha casa. Meu objetivo é descobrir o que ela está sabendo sobre o coronavírus e, como, na medida do possível, está se cuidando. “Estou acompanhando, sim. Vejo pelas televisões dos bares. Nem sei se quero voltar para minha ocupação agora, lá tem muita gente e deve estar cheio de vírus”, responde. Mantendo a distância de 1,5m recomendada pela OMS, aproveito a oportunidade para entregar alimentos, garrafas de água e itens de higiene pessoal. Ana conta que consegue tomar banho todos os dias e lavar as mãos sempre que precisa, mas sabe que essa é uma realidade distante dos seus colegas. “Tenho um amigo aqui perto que deixa eu usar o banheiro do posto. Se não fosse ele, não sei não, viu? Tenho que agradecer. Tem gente aqui que fica uma semana sem banho”.
[g1_quote author_name=”Leonardo Flávio Nunes” author_description=”Médico infectologista” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O principal problema é a falta de acesso ao sistema de saúde: para a atenção básica ou para o momento em que estamos vivendo. Depois, a dificuldade de estabelecer uma terapêutica adequada para essas pessoas que não sabem, geralmente, nem onde vão dormir. E outra: como você fala para higienizar as mãos frequentemente e corretamente?
[/g1_quote]Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), das 101,8 mil pessoas vivendo em situação de rua, 40% estão em municípios com mais de 900 mil habitantes, como é o caso do Rio de Janeiro e São Paulo: as duas cidades brasileiras com maior número de casos positivos para a Covid-19. Ambas já estão em situação de transmissão comunitária – quando não é mais possível saber a origem da infecção. Logo, nesse contexto, a população de rua, como qualquer outra, pode ser afetada mesmo que não tenha contato com pessoas que viajaram para o exterior. Em um cenário onde todas suposições devem ser analisadas para evitar um futuro preocupante, penso: e se uma pessoa em situação de rua for contaminada? Já que a ampla orientação é de isolamento social e quarentena domiciliar pelos órgãos oficiais de saúde, como lidar com essa questão junto a eles?
“Como você fala para uma população que não sabe que horas vai ter uma refeição, tomar uma medicação de forma regular? Só aí você já começa a entender o difícil contexto que eles estão inseridos em relação à saúde”, traz ao debate o médico infectologista Leonardo Flávio Nunes, que aponta as principais barreiras no atendimento adequado ao grupo. “O principal problema é a falta de acesso ao sistema de saúde: seja para a atenção básica ou para o momento em que estamos vivendo. Depois, a dificuldade de estabelecer uma terapêutica adequada para essas pessoas que não sabem, geralmente, nem onde vão dormir. E outra: como você fala para higienizar as mãos frequentemente e corretamente?”, lamenta o profissional.
O agravante da fome e a precarização de abrigos
“Eles sempre dizem que o domingo é o único dia em que passam fome, agora, eles vão ter 15 ou 20 domingos seguidos”, preocupa-se Michelle Montenegro, coordenadora do projeto “De Volta ao Lar”, do Rio, que resgata os laços familiares de pessoas em situação de rua promovendo o retorno para casa. Em seis meses de existência, mais de 60 voltaram ao convívio familiar em diferentes estados do país. A angústia de Michelle faz total sentido: com as pessoas cada vez mais evitando ficar nas ruas e bares e restaurantes de portas fechadas, como esse grupo vai se alimentar? Por conta da inquietação, as ações da iniciativa mudaram completamente.
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Veja o que já enviamos“A gente não ajuda ninguém a ficar na rua, mas não podemos fechar os olhos nesse momento. Além do problema da falta de informação, eles vão sofrer com a escassez de alimentos, porque dependem dos transeuntes e das sobras dos estabelecimentos. Com fome, a imunidade fica baixa e eles ficam ainda mais expostos. Uma vez vetores do coronavírus, vai ser ruim para todo mundo”, alerta.
Para tentar reverter essa lógica, a equipe do projeto vai começar a distribuir quentinhas no Centro do Rio – local com alto índice de pessoas em situação de rua e que tende a ficar mais deserto por conta do encerramento das atividades comerciais. Além disso, Michelle conta que já estão sendo distribuídos kits de higiene, como álcool em gel, máscara e panfletos com orientações sobre a pandemia adequadas à vivência da população de rua. O material será entregue com o apoio da Operação Segurança Presente, na capital fluminense. Para custear a alimentação e os kits, o projeto está contando com doações (clique para saber como ajudar).
Uma das apoiadoras do “De Volta ao Lar” é Elika Takimoto, doutora em Filosofia, professora de Física do Cefet/RJ e escritora. Ela joga luz sobre outras importantes questões: os abrigos estariam preparados para acolher essa população de rua? E quem já vive lá, está seguro? Para ela, que já visitou vários na cidade do Rio de Janeiro, as respostas são preocupantes e vexatórias. “Os abrigos que nós temos não conseguem atender a grande parte dessa população. Isso é gravíssimo. As condições de higiene são horrorosas. Mesmo que essa população não manifeste sintomas, elas podem se tornar transmissores silenciosos e os abrigos são muito precários. Visitei um que tinha uma garrafa pet no ralo do banheiro para não sair rato nem cobra”, relembra.
[g1_quote author_name=”Michelle Montenegro” author_description=”Coordenadora do projeto De Volta ao Lar” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eles sempre dizem que o domingo é o único dia em que passam fome, agora, eles vão ter 15 ou 20 domingos seguidos
[/g1_quote]Dados da Defensoria Pública de quatro anos atrás – a Prefeitura não tem um número atualizado – mostram que são 15 mil pessoas em condição de rua no Rio, embora o prefeito Crivella fale em 5 mil. Os 63 abrigos da cidade têm 2,3 mil vagas – menos de 15% do total necessário para atender a todos. Uma possível superlotação não poderia ocasionar em mais problemas?
Uma emergência em uma emergência
Por aqui, entidades e ONGs de apoio à causa temem que ocorra o mesmo que na Itália – país com segundo maior número de mortos por causa da Covid-19 -, onde, segundo a imprensa local, houve uma queda drástica no número de voluntários, boa parte dos chuveiros públicos fechados e as cantinas públicas suspensas. Lá, são 55 mil pessoas em situação de rua – quase a metade em relação ao Brasil. “A luta deles é pela sobrevivência, todos os dias, com ou sem coronavírus. Estão confusos, não sabem o que fazer e para onde ir. Eles não têm mais seus pontos de referência. Isso é uma emergência em uma emergência. Não há ninguém na rua e eles estão cada vez mais sozinhos”, disse Davide Parisi, coordenador da Croce Rossa Milano (Cruz Vermelha) ao portal italiano Open. Em outros países, como a Inglaterra, observou-se também a queda nas doações de alimentos.
O Projeto Ruas (clique para saber como contribuir), que desde 2014 atua na inserção social desse grupo no Rio, alterou suas ações e não está realizando mais rodas de conversa e dinâmicas. Mas, manteve o trabalho, com menos voluntários, focado na entrega de itens de higienes, alimentos e cartilhas de prevenção e informação como “não dividir cigarro ou cachimbo e não compartilhar garrafas copo e talheres”. Além de uma bastante importante: redobrar os cuidados em casos de histórico de doenças como hipertensão, câncer, diabetes, tuberculose, entre outras.
[g1_quote author_name=”Rogério Barba” author_description=”Ex-morador de rua” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Nossa preocupação maior são com as pessoas idosas e em situação de risco, que não têm nem banheiro, não tem o básico. Escutamos o tempo todo: lave a mão. Mas a população de rua não tem acesso à água nem para beber
[/g1_quote]Pessoas com esse histórico estão, assim como os idosos, nos grupos mais suscetíveis a pegar a Covid-19 pelo fato de terem menor capacidade de frear o vírus, o que aumenta o risco dele chegar nos pulmões e causar pneumonia. Para o médico infectologista Leonardo Flávio Nunes, outro ponto de atenção que deixa a população de rua ainda mais vulnerável.
“Justamente por essa dificuldade de acesso ao sistema de saúde e a falta de cuidado, essa população está mais exposta. Se uma pessoa mora na rua, dificilmente ela trata a diabetes de forma correta. Se ela tiver pressão alta, dificilmente consegue controlar adequadamente. Isso tudo gera um risco maior de desenvolver formas graves seja da Covid-19 ou de tuberculose, por exemplo, doença com alta mortalidade em população de rua justamente pela falta de assistência”, explica.
Quem ecoa a fala do médico, é Rogério Barba, que morou nas ruas por mais de 30 anos e, hoje, é educador social no Distrito Federal. Em entrevista ao “Tarde Nacional”, da Rádio Nacional de Brasília, no dia 16 de março, o ativista levantou mais uma série de questões pertinentes e cobrou ações efetivas do poder público: “Nossa preocupação maior são com as pessoas idosas e em situação de risco, que não têm nem banheiro, não tem o básico. Escutamos o tempo todo: lave a mão. Mas a população de rua não tem acesso à água nem para beber. O que os nossos governantes estão fazendo por essa população?”.
Respostas
O Ministério da Saúde, que não ainda não divulgou se existe alguma pessoa em situação de rua entre os casos confirmados para a Covid-19, informou por meio da assessoria de imprensa que atualmente existem em atividade 152 consultórios na rua de todo o país. Esse número pode chegar a 176, “a depender da capacidade de gestão dos municípios e do quantitativo da população em situação de rua no município”.
[g1_quote author_name=”Elika Takimoto” author_description=”Doutora em filosofia, professora e apoiadora da causa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eles precisam de muito cuidado e estão jogados pela rua, praticamente invisíveis diante dos olhos das pessoas
[/g1_quote]A Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro disse que as abordagens sociais, os encaminhamentos para os serviços socioassistenciais e acolhimento institucional estão ocorrendo regularmente, porém, seguindo as recomendações preventivas. Afirmou também que a secretária Tia Ju se reuniu com representantes da Santa Casa, Ministério Público e Igreja Católica para viabilizar parcerias para adaptação de espaços para acolher a população mais vulnerável e distribuir kits de higiene. Em coletiva de imprensa no mesmo dia, Marcelo Crivella anunciou que poderá decretar o recolhimento compulsório de pessoas em situação de rua, caso o número de casos aumente. Se alguém receber o diagnóstico positivo, será retirado imediatamente, segundo o prefeito, e levado para as unidades de acolhimento da prefeitura.
A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, manifestou-se dizendo que a equipe do Serviço Especializado de Abordagem Social (SEAS), composta por 600 orientadores, intensificará as orientações à população de rua nos cuidados de contágio do vírus. Acrescenta que oferece 10 Núcleos de Convivência para pessoas em situação de rua na cidade, com 3.172 vagas. Mas, na capital, segundo a própria gestão municipal, existe uma população de rua de quase 25 mil pessoas, sendo 7.002 com 50 anos ou mais – grupo em que a doença pode ser mais letal. Até agora, a cidade registra 259 casos confirmados da doença, com cinco mortes. É líder entre os municípios brasileiros.
“Na identificação de caso suspeito é oferecido máscara, realizada pesquisa de onde ela dorme e circula, para identificar contatos e novos suspeitos. A pessoa é encaminhada à unidade de saúde para atendimento e diagnóstico e, em caso de maior gravidade, o SAMU é acionado”, informa a Secretaria em resposta ao #Colabora. Em meio a um cenário de incertezas e mobilizações de todos os lados, Elika Takimoto arremata: “É necessário urgentemente garantir uma condição estrutural para acolher essas pessoas, precisamos promover uma acesso rápido às medidas de higiene, de forma efetiva, para que possam ter o mínimo de dignidade. Eles precisam de muito cuidado e estão jogados pela rua, praticamente invisíveis diante dos olhos das pessoas”.
Outras matérias do especial Covid-19: duplamente vulneráveis
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Yuri Alves Fernandes
Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.
Brilhante pela sensibilidade na abordagem, a que quase ninguém atentou. Merece um prêmio, embora o que o autor deve ter almejado é uma resposta das autoridades e da sociedade para um problema tão grave que nos passa despercebido.
Confesso que não havia pensado por esse ângulo… E é justamente isso que uma grande matéria faz: nos chama à realidade, nos incita à reflexão, nos faz acordar para o outro em um momento em que nos forçamos a pensar em nós e nos nossos…