‘Bacurau’. Mas pode chamar de… Brasil

Foto icônica da chegada a Bacurau: caminhão-pipa e frase emblemática. Foto de divulgação

Uma lista - COM SPOILERS - das semelhanças, metáforas e referências que conectam ficção e realidade no filme de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles

Por Aydano André Motta | ODS 10ODS 6 • Publicada em 6 de setembro de 2019 - 09:05 • Atualizada em 16 de setembro de 2022 - 00:50

Foto icônica da chegada a Bacurau: caminhão-pipa e frase emblemática. Foto de divulgação

Em cartaz desde a semana passada após viagem de aclamação e prêmios no exterior, “Bacurau” se passa num futuro distópico, mas desfila incômodas semelhanças com a vida real do Brasil – no presente. Aqui, uma lista – COM SPOILERS – da mistura perturbadora.

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1. A falta de acesso a água potável e saneamento. O caminhão-pipa serpenteando por estradas em escombros é um personagem da trama. Ao ser perfurado por tiros, os moradores correm para tentar salvar um pouco da água que escorre pela terra. Na vida real, metade dos brasileiros não tem acesso a esses serviços.

2. O isolamento internacional. Bacurau some do mapa, referência precisa do Brasil que briga com os vizinhos da América do Sul e parceiros estratégicos mundo afora, como França e China.

3. O povo desvalorizado e subjugado. Os visitantes vêm participar de uma competição macabra: o extermínio de pessoas esquecidas, que vivem no “fim do mundo”, onde só tem valor como mercadoria – a população, aliás, foi vendida aos estrangeiros para servir de alvo.

Michael (Udo Kier), o líder dos assassinos: agente do caos. Foto de divulgação
Michael (Udo Kier), o líder dos assassinos: agente do caos. Foto de divulgação

4. A elite patética. Dois habitantes do sul, “a região rica”, contratados pela trupe gringa, se enxergam brancos como os visitantes. Mas descobrem, do jeito mais sangrento, que são, isso sim, latinos, compatriotas dos pobres nordestinos. Como os migrantes que sonham ser “nativos” em Miami ou Portugal, mas continuam brasileiros.

5. A violência tatuada na nossa sociedade. Os oprimidos têm, como grande orgulho de sua cidade, o museu onde se destacam fotos de cangaceiros portando armas. E eles reagem à brutalidade com ainda mais força, utilizando armas antigas e explosivas. Como os opositores, saboreiam a própria violência. Além disso, caixões são transportados o tempo inteiro na cidade. Faz sentido, no país que, em 2018, matou 67 mil pessoas.

6. A sedução pelo extermínio. O filme se passa “daqui a alguns anos”. Num dado momento, a TV transmite evento ao vivo, a tarja informa: “Execuções públicas no Vale do Anhangabaú”. Combina com o discurso vitorioso de extermínio do povo pobre e preto.

7. A milícia. Para reagir aos invasores, os habitantes de Bacurau pedem socorro ao ex-matador que voltou à cidade. Ele se une a outros criminosos, que vivem nas cercanias. Exatamente como a milícia age nas grandes cidades, vendendo segurança num primeiro momento, para depois controlar a vida toda nas comunidades distantes.

8. As drogas. “Nós estamos sob efeito de forte psicotrópico, e você vai morrer”, avisa morador de Bacurau a um dos visitantes. Todos os habitantes ingerem um comprimido, antes da batalha. Um território onde parece se estar delirando, fora do juízo, como o Brasil de hoje.

9. A tragédia dos políticos. Diante do povoado deserto, o prefeito em campanha pela reeleição traz comidas e remédios vencidos. Quando vai embora, leva uma jovem prostituta. Qualquer semelhança com políticos da vida real não será mera coincidência.

10. O abandono das crianças. “Ele parecia ter 16 anos”, despreza um dos estrangeiros, após balear menino bem mais jovem. Encaixa na discussão sobre a redução da maioridade penal, pautada pela intolerância.

11. Sobre enxugar gelo. Domingas, a médica interpretada (magistralmente, mais uma vez) por Sônia Braga vive sob forte pressão, que só consegue aliviar com a muleta da bebida alcoólica.

Sônia Braga, como a médica Domingas: estresse e álcool. Foto de divulgação
Sônia Braga, como a médica Domingas: estresse e álcool. Foto de divulgação

12. A falta de individualidade. As identidades dos moradores são apagadas e vigora o conceito de tribo, onde todos exercem o mesmo papel. Da jovem que chegou de volta à sua terra natal ao idoso com postura de sábio, a população aperta unida o gatilho contra os visitantes.

13. O monstro adormecido. Líder dos estrangeiros exterminadores, Michael (Udo Kier) não é assassinado, mas preso num buraco, como se dali pudesse emergir um dia.

Bônus 1: Num enterro coletivo, são citadas vítimas como “Mariza Letícia” e “Marielle”. Nem precisa explicar, né?

Bônus 2: Repare na placa da foto lá do alto, a distância que falta até Bacurau. De novo, nem precisa explicar, né?

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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Um comentário em “‘Bacurau’. Mas pode chamar de… Brasil

  1. Israel Oliveira Ferraz disse:

    Eu percebo o quanto a esquerda é esquizofrênica e quer por tudo pegar referencias como se o filme fosse uma critica ao atual governo somente, quando se é na verdade uma critica ao coletivo. Ao Estado Brasileiro, ao governo que sempre existiu e exterminou o nordestino. Bolsonaro estava eleito em Canudos? Bolsonaro estava eleito no Carandiru ? Nas favelas queimadas?
    Vocês querem achar um motivo, achar uma unica pessoa para culpar o precipício que o Brasil veio parar, quando na verdade o que nos levou hoje foram anos e anos, séculos de politicas descuidadas.
    Sejam melhores, até mesmo quando citou drogas, que citação ridícula, os cara nem se quer usam comprimidos, é natural, talvez Gloria da manhã.

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