País respira e volta a falar de políticas públicas

O presidente Lula e o cacique Raoni na cerimonia de entrega da faixa presidencial. Foto Sergio Lima/AF

Maior conquista dos primeiros dias do governo Lula é o retorno à normalidade institucional

Por Agostinho Vieira | ArtigoODS 16 • Publicada em 3 de janeiro de 2023 - 10:23 • Atualizada em 30 de janeiro de 2024 - 14:43

O presidente Lula e o cacique Raoni na cerimonia de entrega da faixa presidencial. Foto Sergio Lima/AF

“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada, ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão. Ninguém podia dormir na rede, porque na casa não tinha parede. Ninguém podia fazer pipi, porque pinico não tinha ali. Mas era feita com muito esmero, na rua dos bobos número zero”. É possível que, neste momento, o poeta Vinícius de Moraes esteja se revirando no túmulo por conta desta analogia esdrúxula, mas foi mais ou menos assim que vivemos nos últimos quatro anos de governo Bolsonaro. Com algumas ressalvas importantes: essa casa não tinha nada de engraçada, os antigos moradores fizeram pipi e cocô por toda a parte e a rua não era dos bobos, mas dos muito, mas muito mal-intencionados.

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Até bem pouco tempo tínhamos um ministério da Saúde que era contra as vacinas, negava a ciência e oferecia remédios ineficazes para o tratamento da covid-19. Um ministério da Educação que não educava, que dizia que as universidades eram antros de perversão e falava em escola sem partido. Um ministério das Relações Exteriores que não se relacionava, brigava com a China, nosso maior parceiro comercial, e recusava oxigênio da Venezuela porque era um país “comunista”. Um ministério das Mulheres que atacava quem tinha que defender e inventava histórias escabrosas de violência sexual sem provas. Puro sadismo. A Fundação que devia combater o racismo era racista. E o ministro do Meio Ambiente, recordista em desmatamento, foi acusado de envolvimento com o contrabando internacional de madeira da Amazônia.

Diante deste cenário de terra arrasada, o grande mérito dos primeiros dias do governo Lula é a simples e saudável volta à normalidade institucional. Parece pouco, mas não é. Certa vez, uma amiga que morava em Paris me disse que a maior saudade que sentia do Brasil e do Rio de Janeiro era do sol. Nós temos sol quase o ano inteiro e não damos o devido valor a ele. Bolsonaro começou o seu mandato criticando o Bolsa Família, dizia que era esmola. Terminou aumentando para R$ 600, numa ação desesperada para tentar vencer as eleições. Assumiu o governo dizendo que o Congresso era um covil de ladrões, terminou com um orçamento secreto e sem nenhuma margem de manobra.

A primeira-dama Rosangela 'Janja' da Silva e Lu Alckmin posam para a foto com as 11 mulheres do primeiro escalão do governo. Foto Sérgio Lima/AFP
A primeira-dama Rosangela ‘Janja’ da Silva e Lu Alckmin posam para a foto com as 11 mulheres do primeiro escalão do governo. Foto Sérgio Lima/AFP

Nos primeiros dias do governo Lula, nas primeiras nomeações de ministros, não vemos nenhuma jogada de efeito, nenhum gol de placa, apenas o básico, um feijão com arroz bem temperado. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, promete um mutirão de vacinação e fala em investir na produção de insumos para reduzir a dependência que o país tem da China e da Índia. O ministro da Educação, Camilo Santana, que até outro dia era o governador do estado com os melhores indicadores de desempenho na área, promete investir em alfabetização e recuperar o tempo perdido com a pandemia. Marina Silva, do Meio Ambiente, fará o óbvio: combater o desmatamento, proteger os demais biomas, cuidar do Cadastro Ambiental Rural (CAR), garantir o cumprimento do Código Florestal…Em 24 horas, o novo governo já conseguiu restabelecer o fluxo de recursos para o Fundo Amazônia, que estava parado desde 2019. São mais de R$ 3 bilhões em verbas internacionais a serem investidos na região.

Durante a campanha, por diversas vezes, Luiz Inácio Lula da Silva disse que só havia concordado em ser candidato porque acreditava ser possível fazer um governo melhor do que fizera nas duas outras oportunidades. Em alguns momentos foi ainda mais longe: “Vocês sabem que eu não tenho o direito de errar”, argumentou. Pois eu tenho uma informação privilegiada e segura para quem está lendo esta coluna. Depois de conversar com várias fontes, de dentro e de fora do governo, sem medo de estar dando um spoiler, posso garantir: Lula vai errar.

Isso não significa que o governo será ruim ou péssimo. Muito pelo contrário, pode até ser o maior governo da história do país, como apostam alguns. Mas é importante deixar combinado que os erros vão acontecer. E não serão dois ou três. A primeira eleição de Lula, em 2002, também foi cercada de muito emoção. Afinal de contas, era a primeira vez que um operário chegava à presidência. Mas a expectativa era menor. Certamente influenciada por uma boa dose de preconceito contra “um operário na presidência”. Havia torcida, contra e a favor, mas era diferente. Para a surpresa de muitos, com um ano de mandato, dois membros do primeiro governo petista foram agraciados com o Prêmio Faz Diferença, dado pelo insuspeito jornal O Globo. O próprio Lula ganhou o Faz Diferença da Política, e o então ministro da Fazendo, Antonio Palloci, de triste memória, fez diferença na economia. No mesmo evento, o prêmio principal ficou com Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança. Vai ser ótimo se esse cenário se repetir. O Brasil precisa muito disso. Mas não podemos esquecer de olhar pelo retrovisor e lembrar o que estamos deixando para trás. Desse ponto de vista, qualquer vitória por 1 a 0 será uma enorme goleada. Saímos das trevas, o sol voltou a brilhar.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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