Celebridades, hits de vingança e paredões contra os relacionamentos abusivos

Shakira, Bruna. Miley: celebridades, hits de vingança e paredões contra os relacionamentos abusivos (Arte: Dan Torres)

Músicas de Shakira e Miley Cyrus para detonar ex-parceiros e casal no BBB23 levam à reflexão sobre urgência do fim da impunidade

Por Júlia Pessôa | ArtigoODS 5 • Publicada em 8 de fevereiro de 2023 - 11:53 • Atualizada em 19 de abril de 2023 - 08:58

Shakira, Bruna. Miley: celebridades, hits de vingança e paredões contra os relacionamentos abusivos (Arte: Dan Torres)

De tempos em tempos, a internet se torna um campo minado de gatilhos para quem já foi vítima de relacionamento abusivo. Falo por experiência própria. Ávida pela fofoca, como todo mundo (porque não pontuei no Enem pra ser santa), quando os novos hits de Shakira e Miley Cyrus sobre seus ex foram lançados recentemente, corri pra ouvir as músicas (que amei) e pesquisar sobre as histórias e referências. Mas paguei pela minha curiosidade com angústia.

Um dos muitos tweets que falava sobre as duas artistas e os relacionamentos abusivos em que estavam trouxe um vídeo que me despertou lembranças das quais eu nunca vou me esquecer. Mas tudo bem, hoje encaro essas memórias no espírito de como devem ser vistas as tragédias (não raramente crimes) que têm responsáveis por elas: “nunca esquecer, nunca perdoar”. Que perdoe Deus, pra quem nele crê. A raiva é um importante motor para a destruição ou a luta constante contra as injustiças.

Leu essa: No BBB23, Fred mostra o que é ser médico, preto e gay num país racista e homofóbico

Mas voltemos ao vídeo. Uma passagem mostra duplamente ex, de Shakira e do futebol, Gerard Piqué, abaixando os braços da cantora, que fazia um coração com as mãos e sorria, provavelmente para fãs. Era como se o dito atleta desaprovasse o gesto dela e tentasse controlá-lo. O sorriso de Shakira desaparece instantaneamente enquanto suas mãos vão sendo abaixadas.

Outra cena mostrava Miley fingindo lamber o então marido, o ator Liam Hemsworth, em um red carpet da vida, algo que é bem a cara da personalidade artística provocativa da cantora. Em resposta, Hemsworth diz, ao ouvido da intérprete de Hannah Montana : “Será que você vai se comportar pelo menos dessa vez?”.

Fiquei completamente tomada por ódio quando vi essas imagens, mostrando homens minúsculos, incapazes de suportar a atenção recebida pelas mulheres ao seu lado. Eu estaria mais rica que as duas artistas juntas se ganhasse um real para cada vez que me vi em situações, muitos anos atrás. E tenho certeza que incontáveis mulheres se enxergaram nesses vídeos que, juntos, não davam um minuto. A gente ali, se reconhecendo em duas das maiores artistas de seu tempo, e não por motivos interessantes como a conta bancária, mas partilhando uma dor. Em menos de sessenta segundos.

A sequência do vídeo de Miley mostra, depois, a atriz fugindo da tentativa de abraço do ex e posando para fotógrafos com suas poses e gracinhas habituais: “Essa sou eu”, diz ela, em alto e bom tom. Delicioso de assistir. Tanto quanto ver uma quadra lotada cantando, na presença de Gerard Piqué, o hino de vingança de Shakira:“Una loba como yo no está ‘pa tipos como túúúúú”. Que sabor! Mas reagir aos abusos não os invalida e nem impede que outros aconteçam.  Não tem fama que proteja das ciladas do patriarcado, inclusive de uma outra, das mais antigas: incitar a rivalidade feminina. Mas isso é papo pra outro dia.

As músicas em que detonam seus ex-parceiros têm letras bem explícitas sobre os problemas das relações abusivas em que as artistas estavam. E muitas notícias giraram em torno da reação das cantoras a traições dos maridos. O que pode até ser, mas reduzir o sofrimento de uma mulher que viveu o horror de uma relação abusiva à reação a uma traição (ou mais) reforça a ideia de que precisamos de validação masculina e do sonho do casamento heteronormativo intacto.

Miley canta no seu revenge hit, “ I can love me better than you can”, posso me amar melhor que você; e Shakira revela “quando te necessitava, diste tu peor versión”, quando precisei, você me deu a sua pior versão.  Alguns anos atrás, Beyoncé lançou um Lemonade todinho jogando vocês sabem o quê no ventilador. Em relacionamentos tão ruins como estes parecem ter sido, a infidelidade é a cereja do bolo (ou o morango da geleia), e não é nem a maior delas. É um detalhe, um traço, uma pachorra de homens ridículos e risíveis com mulheres grandiosas. Talvez seja uma chave virando: um cara desses me traiu? Se eu fosse diva pop, também lançaria música. Afinal, como disse antes: 1) não sou santa 2) acredito no poder reparador da raiva.

Em outros tempos, disseram que a revolução seria televisionada, e eu espero até que aconteça. Mas se a história ensinou alguma coisa, é que homens, sobretudo os brancos, cis, héteros e não pobres (nem precisa ser rico) tendem a sair ilesos pelos abusos que cometem debaixo das fuças de todo mundo. Literalmente. O BBB 23 tem levantado a questão do abuso contra mulheres a partir do lamentável casal que se formou entre a atriz Bruna Griphao e o “ele é só branco” Gabriel, eliminado dias atrás. Repetidas vezes, ele teve posturas agressivas não só com Bruna, mas com as pessoas que tentaram explicar que a maneira como ele agia com ela, e com mulheres em geral, era abusiva.

Ameaças “na brincadeira” de que Bruna levaria “umas cotoveladas na boca”, comentários maldosos “de piada” sobre a aparência da atriz e a insistência inicial para “conquistá-la” são alguns dos muitos traços do perfil de um abusador.  Além disso, quando são abusivos, homens costumam criar desculpa para inverterem o discurso e tornarem-se vítimas: “é meu jeito”, “ela não liga”, “ela também me xinga”, “ela não é fácil”, “agora todo mundo está me demonizando por causa dela”. Gabriel jogou muito com cartas como essas, fazendo-se de vítima. Colou, mas não muito, o “Anitto”, alcunha que recebeu no Twitter, saiu do programa com 53% dos votos. Agridoce.

Uma coisa, sobre estas famosas e todas as mulheres em qualquer situação de abuso, é que a vítima nunca tem culpa. NUN- CA. Então não adianta questionar por que mulheres “como estas” se envolveram com abusadores. Não adianta justificar que elas já os defenderam antes. Não adianta perguntar como elas permitiram que o abuso acontecesse. Não adianta inverter os holofotes, ninguém é culpada por um abuso que sofre, ninguém. Nunca. Abusadores o são apenas porque podem.

Não sou mais tão inocente a ponto de dizer “não passarão”. Eles continuam passando, com impunidade judicial, emocional, financeira e todas as outras, cortesias históricas do patriarcado. O que parece estar acontecendo é que, há algum tempo já, as mulheres que detêm certos privilégios não estão mais dispostas a engolir os abusos a seco, mantendo a discrição e a serenidade depois de serem violadas por anos a fio (ou por dias, horas, tanto faz). Falo de privilégios porque sei que a corda sempre arrebenta do lado socioeconômico mais fraco. Mulheres pobres, não brancas e trans, por exemplo estão tão expostas à vulnerabilização que sair de um relacionamento abusivo tem muito mais obstáculos. E na maioria das vezes, expor o abuso e/ou o abusador não é uma opção, até por segurança.

Por isso é tão importante que essas mulheres, celebridades, externem o abuso que sofrem dentro de suas bolhas para o mundo todo. Mostra a outras que elas não estão sós neste sofrimento. Fazem o assunto ser debatido na internet, no BBB, na vida. Perdi a conta de quantos posts de Instagram e matérias de portais tenho lido (e não vou fazer juízo de valor deles neste momento) falando sobre sinais de relacionamentos abusivos. Resolve o problema? Não. Mas o primeiro passo para se caminhar para algum tipo de solução neste caso é identificar o problema, nomeá-lo. Também não consigo contar quantas mulheres me mandaram mensagens privadas TODAS as vezes em que eu publiquei algo sobre algum relacionamento abusivo. O meu ou de outras, famosas ou não.

“Ah, mas estragar a vida do cara?”, “ Ah, mas e os filhos?”, “Ah, mas pra que essa exposição?”… Por que a sociedade insiste em preservar a suposta índole de homens em detrimento da raiva genuína das mulheres? Por que, para as crias, é pior a exposição de um pai abusivo do que os traumas causados por ele à mãe e à família? Por que o sofrimento das mulheres deve ficar confinado à esfera privada enquanto homens saem repetindo atrocidades em público desde o início dos tempos?

O silêncio das mulheres sobre abusos que sofrem de homens só favorece adivinha quem? Os próprios! E digo isso amparada por minha pensadora e ativista feminista favorita, Audre Lorde. “Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você. Mas a cada palavra verdadeira dita, a cada tentativa que fiz de falar as verdades das quais ainda estou em busca, tive contato com outras mulheres enquanto analisávamos as palavras adequadas a um mundo no qual todas nós acreditávamos, superando nossas diferenças. E foi a preocupação e o cuidado dessas mulheres que me deram força e me permitiram esmiuçar aspectos essenciais da minha vida.”

Que venham mais revenge hits e paredões contra os abusadores. Na cultura pop, na Justiça e na vida. 

Júlia Pessôa

Júlia Pessôa é jornalista, mestra em comunicação, especialista em gêneros e sexualidades e doutoranda em ciências sociais. Atuou no jornalismo diário por mais de dez anos, cobrindo principalmente cultura, gastronomia, gêneros, sexualidades e direitos humanos. Tem experiência de docência no ensino superior público e privado, no qual atua até hoje. É autora do livro de crônicas “Heteronímia” (2017), publicado pela Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura (Juiz de Fora- MG) e tem publicações em veículos como UOL Tab, BBC Brasil e O Globo. Inexoravelmente feminista.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *