Em meio à pandemia, violência doméstica se agrava no Rio de Janeiro

Tribunal de Justiça do estado emitiu, em 2020, mais de 28 mil Medidas Protetivas de Urgência, o segundo maior número dos últimos oito anos

Por Liana Melo | ODS 5 • Publicada em 8 de março de 2021 - 08:00 • Atualizada em 20 de setembro de 2021 - 17:13

Arte de Carolina Herrera

Arte de Carolina Herrera

Tribunal de Justiça do estado emitiu, em 2020, mais de 28 mil Medidas Protetivas de Urgência, o segundo maior número dos últimos oito anos

Por Liana Melo | ODS 5 • Publicada em 8 de março de 2021 - 08:00 • Atualizada em 20 de setembro de 2021 - 17:13

As tatuagens nas pernas e no tronco confirmavam que a vítima era a jovem Bianca Lourenço. Seu corpo fora encontrado dentro de um tonel à beira da Praia do Fundão, nas proximidades do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho. A jovem, de apenas 24 anos, desaparecera da Favela Kelson´s, na Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde havia morado e voltara para visitar uma amiga logo após o réveillon. Ela saiu da comunidade para fugir do ex-namorado, que não aceitava o fim do relacionamento. E é ele, o traficante Dalton Vieira Santana, conhecido como DT, o principal suspeito do crime.

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O feminicídio é a melhor tradução de um crime de poder sobre os corpos femininos

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O ano de 2021 começou no Rio de Janeiro evidenciando uma herança maldita que vem se perpetuando anos após anos, um misto de patriarcado, machismo estrutural e desigualdade de gênero. “O feminicídio é a melhor tradução de um crime de poder sobre os corpos femininos”, pontua Adriana Ramos de Mello, juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ). Nem mesmo a pandemia da covid-19 conseguiu arrefecer a morte de mulheres sem nenhuma outra causa aparente além do simples fato de serem mulheres. Foi assim com Bianca, Viviane, Mayara, Roberta…

Histórias de amor que terminaram em tragédia mataram 77 mulheres no estado do Rio de Janeiro em 2020, segundo levantamento do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ). O resultado consolidado do ano passado representou uma queda de 9% em relação a 2019, quando 85 mulheres foram vítimas de feminicídio no estado. Desde março, quando começou o período de isolamento social no estado devido à pandemia da covid-19, até dezembro, 65 mulheres foram assassinadas por seus parceiros no Rio de Janeiro, contra 77 mulheres no mesmo período de 2019.

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Com três casos de feminicídio ocorrendo por dia durante a pandemia, o Rio de Janeiro ficou entre os dez estados que registraram queda no número de mortes de mulheres no período de março a dezembro de 2020. A divulgação do terceiro balanço da série de reportagens Um vírus e duas guerras incluiu dados de 25 estados, onde vivem 94% da população feminina brasileira.

O total de feminicídios no Brasil durante a pandemia somou 1.005 casos, uma queda de 3% em relação ao mesmo período de 2019, quando 1.031 foram assassinadas. A cada sete horas uma mulher foi morta vítima de feminicídio. O levantamento é uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, Azmina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Ponte Jornalismo e Portal Catarinas.

A análise dos dados de violência doméstica contra a mulher no Rio de Janeiro apresenta diferenças, dependendo da fonte de informação. O ISP-RJ, por exemplo, trabalha com números provenientes de inquéritos, enquanto o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) levanta dados a partir dos processos penais de feminicídio.

A análise de processos de feminicídios julgados pelas câmaras criminais do TJ-RJ indicou, por exemplo, que 74% das mulheres assassinadas no estado em 2020 eram mães.  As vítimas tinham entre 25 e 45 anos, a mesma faixa etária dos agressores. Mais da metade dos homens usava algum tipo de droga ou medicamento. E 90% deles tinham vínculo íntimo com as mulheres que mataram, sendo que 39% moravam com as vítimas.

As tentativas de feminicídio somaram um total de 30 em 2020, também um pouco menos da metade das registradas no ano anterior, quando o TJ-RJ computou 67 tentativas de feminicídio.

Arte de Fernando Alvarus
Arte de Fernando Alvarus

Ainda que tanto o feminicídio quanto a tentativa de feminicídio tenham tido queda em tempos de pandemia, a violência doméstica contra a mulher no Rio de Janeiro só aumentou. O TJ-RJ emitiu um total de 28.894 Medidas Protetivas de Urgências (MPUs), um número ligeiramente abaixo do de 2019 (29.451), mas superior a todos os outros, desde 2013. O número de prisões realizado com base na Lei Maria da Penha somou 1.978, um total abaixo do registrado em 2019 (2.039), ainda assim bem superior ao dos anos anteriores, desde 2013.

Rio de Janeiro: Arte de Fernando Alvarus
Arte de Fernando Alvarus

O ciclo da violência doméstica contra a mulher pode começar com uma ameaça, um xingamento, um insulto, um empurrão… Ao primeiro sinal dessa violência, alerta a juíza, é preciso buscar ajuda: “O feminicídio é uma morte evitável, já que a Lei Maria da Penha é completa, tem várias medidas de prevenção, assistência e proteção”. Muitas mulheres, no entanto, preferem sofrer caladas, por medo ou vergonha de denunciar seus parceiros. O silêncio acaba levando a uma escalada do ciclo de violência.

Dados do ISP-RJ apontam que, durante o período da pandemia, o número de vítimas de crimes sob a Lei Maria da Penha caiu de 58.182, entre 13 de março e 31 de dezembro de 2019, para 45.429 para o mesmo período no ano passado. Aumentou, no entanto, o número de denúncias. O número de ligações do 190 sobre crimes contra a mulher pulou de 62.300, em 2019, para 65.942, no ano passado.

Rio de Janeiro
A juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi

A morte da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, assassinada a facadas pelo ex-marido na frente das três filhas, na véspera do Natal, é a prova de que não importa a profissão, a classe social, a cor da pele…  Ainda que tenha sido tão grave quanto todas as outras 76 mortes registradas no estado, em 2020, o feminicídio praticado contra uma agente da lei passa um recado aterrador para a sociedade. Se o algoz tem coragem de matar uma juíza, que, por profissão, veste a toga para coibir crimes, o subtexto deste assassinato é que mulheres mais vulneráveis correm ainda mais risco. O crime provocou um movimento de repúdio encabeçado por manifesto assinado por centenas de juízas.

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O feminicídio é um crime de poder, de decisão sobre vida e morte que muitos homens julgam ter sobre os corpos femininos. Nem mesmo a presença dos filhos na cena do crime intimida o agressor, afinal ele já anulou a vontade da vítima

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Juízas, catadoras de lixo, dentistas, donas de casas, médicas… A violência doméstica é uma epidemia causada pelo machismo e vai do assédio moral e sexual, passando pelo estupro até o caso mais extremo, a morte. “O feminicídio é um crime de poder, de decisão sobre vida e morte que muitos homens julgam ter sobre os corpos femininos. Nem mesmo a presença dos filhos na cena do crime intimida o agressor, afinal ele já anulou a vontade da vítima”, escreveu Adriana Mello, em artigo publicado logo após o assassinato de Viviane, também juíza no TJ-RJ.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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