Para além do Rebouças

Esquecida na divisão simbólica da cidade entre um lado e outro do túnel, a Zona Oeste se firma no mapa cultural do Rio

Por Gilberto Porcidonio | ODS 9 • Publicada em 27 de abril de 2017 - 16:18 • Atualizada em 2 de maio de 2017 - 01:44

A trupe do Lá Vai Maria, que vai ocupar um casarão na Barrinha: música, teatro, poesia, artes plásticas, gastronomia e ações sociais. Foto de divulgação

“Surfista Zona Sul sempre tá contente, surfista Zona Norte ri, mas falta muito dente”, diz o ‘Rap do surfista’, um dos funks da equipe Furacão 2000 mais populares da década de 1990, tentando traduzir uma cidade partida em duas: de um lado, os abastados da Zona Sul. De outro, os despossuídos da Zona Norte.  Para além da divisão simbólica da cidade entre um lado e outro do Túnel Rebouças, está a Zona Oeste, que, ironicamente, não é tão lembrada mas responde por  70% do território carioca.

A expansão do Rio, que se deu, em um primeiro momento, entre o Centro e a Zona Sul, não contemplou a região, vista como rural até a década de 1970. Com a expansão urbana que chegou tardiamente, ela acabou incorporando as visões de cidade que já existiam. “Em Realengo e Padre Miguel, por exemplo, é comum identificarem a parte do bairro de um lado da linha do trem como ‘Zona Sul’ e, a outra como, ‘Zona Norte’. Ao fazerem isso, estão, sem dúvida, retificando o quanto a distribuição de riqueza é concentrada no Rio. A Zona Sul carioca concentra riqueza econômica, equipamentos culturais e de lazer, em uma escala que não se vê em outras grandes cidades”, diz o professor Marcelo Burgos, do departamento de Ciências Sociais da Puc-Rio.

O que se construiu ali foi um grande dormitório sem cidade, com boa parte de moradores sem laços com a região, egressos de favelas das áreas centrais da cidade. Tudo isso teve um saldo muito claro: uma área urbana desprovida de identidade e com uma vida associativa muito frágil

Para Burgos, a Zona Oeste entrou no “mapa simbólico” da cidade por duas vias: pela crescente identificação da área como “carente”, que se renova a cada ciclo eleitoral, e pelo boom do mercado imobiliário na Barra, no Recreio e em Jacarepaguá. “A combinação de loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais fez com que a ‘urbanização’ da região, antes rural, se desse sem indícios de cidade. O que se construiu ali foi um grande dormitório sem cidade, com boa parte de moradores sem laços com a região, egressos de favelas das áreas centrais da cidade. Tudo isso teve um saldo muito claro: uma área urbana desprovida de identidade e com uma vida associativa muito frágil”. Mas a Zona Oeste, para usar uma palavra da moda, está se reinventando. Estimulados pela própria carência representativa e simbólica da região, uma turma luta muito para inserir a ZO no circuito cultural da cidade. Abaixo, listamos algumas dessas iniciativas.

A turma do sarau Poesia de Esquina, na Cidade de Deus: microfone aberto para quem quiser cantar ou declamar poemas. Foto de divulgação

CIDADE DE DEUS – E DA POESIA

Fruto do deslocamento forçado de moradores de favelas removidas na Zona Sul, a Cidade de Deus vai muito além do que diz o noticiário e o filme homônimo, que eternizou o conjunto habitacional como exemplo de violência e distanciamento do poder público. Criado em 2011, o sarau Poesia de Esquina reúne jovens que chegam para declamar poesias, cantar e se descobrir como artistas no microfone aberto do Bar do Tom Zé e de outros espaços públicos da CDD. No momento atual,  com a crise e a violência, que voltou a fazer parte do cotidiano dos moradores, por causa do desgaste do modelo das UPPs,  o happening cultural deixou de ser mensal. Mas a turma resiste e insiste em mostrar que existe beleza e arte dentro da favela.

– Estamos passando por uma reformulação para que o evento seja autossustentável, além de flertar mais com o samba. Não acreditamos que somos uma cena à parte.  Os moradores de Jacarepaguá consomem muita cultura fora do bairro. Precisamos estar mais integrados. Nossa vida cultural é bem mais intensa do que parece.  As pessoas precisam ficar com as antenas mais ligadas – diz Viviane Salles, criadora e uma das organizadoras do sarau.

DJs do coletivo Budega Hermética: baladas ao som de vinil. Foto de divulgação

FESTAS HYPADAS NA FREGUESIA

Tidos como redutos do rock alternativo, nas décadas de 1990 e 2000, Jacarepaguá e seus sub-bairros viram as atividades culturais irem gradativamente se envaziando. Neste contexto, surgiu o coletivo sonoro Budega Hermética, no bairro da Freguesia. O grupo promove baladas com sets que vão do afrobeat à lambada, sempre com base nos vinis. Havia uma carência de festas desse tipo, nos moldes das baladas hypadas da Zona Sul.

– Nossa sensação sempre foi de total exclusão no que diz respeito a exposições, cinema, teatro, shows etc. Para ter acesso a programas culturais,  só enfrentando quatro horas num ônibus (entre ida e volta). Era um perrengue. Nem bares descolados e festinhas da moda tínhamos por aqui. Sempre existiu uma cena interna independente bem modesta. Fora isso, tinha apenas a cultura orgânica que todo território tem, com festas religiosas, juninas, encontros de pipa, blocos de carnaval”, enumera o DJ Evandro Coelho, integrante do Budega Hermética.

Coelho percebe uma efervescência maior no bairro. “Hoje, vemos uma atividade legal. Estão rolando rodas culturais nas praças, deram uma repaginada na programação da lona cultural, abriram casas dispostas a dar espaço pra bandas, há mais opções de gastronomia, marcas independentes e engajadas têm aparecido, figuras com nome na cena têm vindo se apresentar aqui… Tem uma galera forte produzindo”, comemora.

Sarau do Calango, criado no ano passado: cheia de novidades, Zona Oeste reafirma seu lugar no mapa cultural da cidade. Foto de divulgação

INTEGRAÇÃO ATRAVÉS DA ARTE

O produtor cultural Bernardo Marques trabalha, desde fevereiro, no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, que integra a comunidade da Colônia, bairro emancipado da Taquara desde 2009 e colado ao Parque Estadual da Pedra Branca. Ele conta que serão desenvolvidos projetos para integrar o museu ao bairro, como festas, oficinas e residências artísticas. “Ainda estamos em fase de gestação de projetos adequados ao público da região. Não adianta importar do eixo Centro-Zona Sul”, diz. “É necessário interagir com os outros bairros, para construir um polo de cultura fortalecido. As fronteiras da Zona Oeste são tão indeterminadas que chega a ser um desafio delimitar territórios. Mas isso possibilita uma integração e circulação de cultura por um território muito extenso”.

Integrar culturalmente os bairros da Zona Oeste também é uma preocupação da turma do Lá Vai Maria. O coletivo surgiu com a proposta de reunir música, teatro, poesia, artes plásticas, gastronomia e ações sociais, como as ocupações culturais na Vila Autódromo e em praças públicas. Em abril, eles vão inaugurar um casarão na Barrinha, que também abrigará outros coletivos da Zona Oeste.

A Zona Oeste está no mapa cultural da cidade, sim. Hoje eu percebo isso com muita nitidez

– O exemplo da Barra, com seus condomínios fechados em pequenas ilhotas, representa bem essa falta de conexão dos bairros da Zona Oeste. É essa lógica que a gente tenta quebrar nos nossos eventos, criando opções culturais aqui por essas bandas. Onde tem gente, existe quem queira consumir cultura. Vamos atrás desse público enjaulado em aparelhos de televisão -, diz o DJ Túlio Baía, que também agita a Festa Tupiniquim.

Rogê Ferreira, que frequenta há 15 anos o circuito de saraus da cidade, em 2016 resolveu criar o seu. O Sarau do Calango acontece mensalmente na Praça da Capelinha, em Magalhães Bastos (a da Lona Cultural Gilberto Gil), misturando música, poesia e artes plásticas. Rogê também comemora a  maior efervescência cultural na Zona Oeste. “Eu chegava a ir para o Centro várias vezes por semana. No ano passado, fui pouquíssimas vezes, devido à quantidade imensa de eventos que acontecem por aqui”, diz. “Estão rolando novidades em Nova Sepetiba, em Campo Grande, com a galera do Lavanderia Lírica, o Festival de Música e Cultura de Rua de Bangu, do qual em também sou colaborador, o Sarau dos Poetas Anônimos, o Lata Doida, aqui na Cohab, o Maria Realenga, o Viaduto de Realengo, o Sarau do Velho, coletivo Mariscarte… A ZO está no mapa cultural da cidade, sim. Hoje eu percebo isso com muita nitidez”.

Gilberto Porcidonio

É repórter do jornal "O Globo" e sociólogo em formação pela PUC-Rio. Especializa-se em cultura e questões raciais. Como poeta, mantém o alter-ego Frederico Latrão e, como escritor, é um dos autores da coletânea "Larica Carioca", sobre os quitutes dos bares do Rio de Janeiro, além de manter o blog 'O Títere'.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *