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Coluna | Vinte e cinco de julho e todos os dias

ODS 10ODS 5 • Publicada em 27 de julho de 2022 - 10:30 • Atualizada em 27 de julho de 2022 - 19:46

Sou boa em guardar datas, não posso negar. No dia 25 de julho, fui atrás das memórias do Facebook para relembrar que já se foram sete anos desde a minha formatura em Jornalismo. Revisitei as fotos – trêmulas e sem foco – com um misto de nostalgia e gratidão. Ao olhar para trás, eu percebo que meu percurso profissional me levou bem mais longe do que eu planejei (e do que planejaram por mim). Nenhum exercício que ensaie projeções como “onde você se vê daqui a sete anos?” se aproximaria das múltiplas experiências, escolhas, reconhecimentos e oportunidades que vivi até aqui. E, enquanto uma mulher negra, considero um ato político pontuar essa retrospectiva com tranquilidade e segurança. Sem culpa, tampouco, discursos meritocráticos. Afinal, o mundo de carreiras de negócios e liderança sempre fechou a porta para pessoas negras.

O que eu, infelizmente, ainda não sabia no dia da minha formatura era que esse mesmo 25 de julho tinha um significado histórico muito maior do que o meu rito de passagem. O Dia Internacional da Mulher Negra, Latinoamericana e Caribenha celebrado na última segunda-feira, oficializa o marco de luta e resistência racial na América Latina. Em 1992, milhares de mulheres negras se reuniram em Santo Domingo, na República Dominicana, para oficializar o plano de visibilidade aos enfrentamentos e opressões das mulheres negras no continente. Geograficamente, o local deste primeiro encontro é o mesmo onde os colonizadores da Europa desembarcaram. Na contramão do luto pela representação desse lugar, aquela multidão de corpos femininos ressignificou não só o passado, mas também o imaginário estrutural do futuro que todas elas desejavam para meninas e mulheres – como eu.

Marcha das Mulheres Negras no Dia Internacional da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha, em São Paulo: marco de luta e resistência racial na América Latina (Foto: Ravena Rosa/Agência Brasil - 25/07/2018)Marcha das Mulheres Negras no Dia Internacional da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha, em São Paulo: marco de luta e resistência racial na América Latina (Foto: Ravena Rosa/Agência Brasil – 25/07/2018)

Pelos sonhos e lideranças de mulheres nos movimentos negros, outra sociedade passa a se tecer. Num projeto de país pautado no resgate ancestral e na identidade negra, com uma visão de futuro onde o bem-viver é um direito garantido a todas as pessoas, mulheres negras e suas perspectivas nutrem os passos que damos hoje

Instituto Ibirapitanga

Para enaltecer ainda mais a profundidade desta data, ela é também um convite à memória ao Dia Nacional de Tereza de Benguela, instituído por meio da Lei nº 12.987/2014. Ícone da resistência negra no Brasil Colonial, a rainha do Quilombo de Quariterê, localizado no Mato Grosso. No século XVIII, bem no auge da colonização, a Rainha Tereza liderou o quilombo, que era uma rota de fuga dos escravizados africanos, por mais de 20 anos. Após um legado político imensurável, nós a perdemos de uma forma cruel e brutal: assassinada por soldados, sua cabeça decepada foi exposta na área central do Quilombo. Nada de heróico nessa tragédia. O racismo continua a nos decepar e calar nossas vozes, interrompendo nossas vidas e sonhos.

Embora eu tenha um forte apreço por efemérides, a avalanche de campanhas, hashtags, posts, homenagens e conteúdos sobre mulheres afrolatinoamericanas e afrocaribenhas publicados somente no dia de 25 de julho me provoca alguns desconfortos. Muitos, na verdade. Como disse Jurema Werneck, “nossos passos vêm de longe”. É muito covarde que produções textuais e audiovisuais de instituições e organizações da branquitude peguem carona no engajamento digital para finalmente dizer o que é silenciado em outros dias do ano. Nada novo sob o sol.

Aliás, vale uma confissão. Desde 2020, tomei a decisão ativa de dizer não a todos os convites para falas, palestras, lives, textos ou aulas no Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro. Agradeço, porém escolhi recusar como forma de protesto individual à invisibilização de pautas de reparação histórica da população negra por parte significativa da sociedade civil, do poder público e do setor privado.

Contudo, com faíscas de esperança ainda pulsantes, fiquei feliz ao receber na minha caixa de entrada a pesquisa “Desigualdade de Gênero e Raça na Política Brasileira”, coordenada e lançada pelo Instituto Alziras e a Oxfam Brasil. Estruturado em três capítulos, o estudo mergulhou em dados e números das prefeituras brasileiras e câmara de vereadores, ambas em 2016 e 2020, além da desigualdade de acesso a recursos para campanhas políticas. A proposta metodológica analisou o perfil das candidaturas, das pessoas eleitas, representatividade indígena e LGBT+ nas eleições para o legislativo municipal no último quadriênio. As análises foram realizadas por meio dos dados abertos produzidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e disponibilizados na página eletrônica da instituição.

Nas considerações finais, o relatório é bem taxativo: “apesar do aumento recorde de cadeiras em Prefeituras e Câmaras Municipais ocupadas por pessoas negras, resultado que pode estar ligado ao impacto positivo das cotas raciais de financiamento de campanha determinado pelo TSE em agosto de 2020, o quadro de subrepresentação história demanda um ritmo de mudança mais célere”. Não obstante, mulheres negras – que representam o maior grupo populacional do Brasil (28%) – ainda lideram apenas 4% das prefeituras e 6,3% das vereanças.

(Arte: Bruna Souza/Mulheres Negras Decidem)
(Arte: Bruna Souza/Mulheres Negras Decidem)

Estamos enegrecendo a política. Não existe democracia com racismo e não existe uma política brasileira com a cara do povo que não tenha o rosto das mulheres negras. Estamos rompendo com as estruturas, e viemos para ficar. Somos mulheres cansadas de ser silenciadas. Mas agora estamos prontas para ocupar esse espaço de decisão que sempre nos foi negado

Manifesto Carta Preta: A Política Que Queremos

Ainda há muita estrada para se trilhar e, certamente, muitas marchas para ecoar além de 25 de julho. Priorizar justiça racial e de gênero em um ano eleitoral é um dos caminhos cruciais para assegurar que os planos de governo levem em consideração, sobretudo, os direitos das mulheres negras. Olhar para os dados faz nossa luz acender. Nosso ritmo ainda está lentíssimo e insuficiente frente aos desafios que se impõem. Enquanto isso, nos resta recorrer às recordações como a minha formatura, a eleição de Francia Márquez como vice-presidenta da Colômbia, o legado de Tereza de Benguela, Lélia Gonzáles, Luiza de Bairros, Neusa Santos Souza, Benedita da Silva, Marielle Franco, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Flavia Oliveira, Ana Carolina Lourenço, Anielle Franco, Nina da Hora, Silvana Bahia, Marcela Bonfim, Lígia Batista, Marina Motta, Taynara Cabral, Debora Pio, Gabriele Roza, Clariza Rosa, Claudia Alves e tantas vozes que compõem o movimento de mulheres negras que queremos e precisamos no Brasil. Viva o vinte e cinco de julho e todos os dias!

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