Quem tem medo de (ser) mulherzinha?

Faixa de grupo de torcedoras do Corinthians contra o machismo: mais times e torcidas contra o ambiente hostil a mulheres no futebol (Foto: Reprodução/Facebook)

Masculinidade tóxica, violenta e opressora nos espaços de futebol é cada vez mais gritante, apesar dos avanços femininos no país de Marta

Por Júlia Pessôa | ODS 5 • Publicada em 10 de julho de 2023 - 10:03 • Atualizada em 22 de novembro de 2023 - 18:44

Faixa de grupo de torcedoras do Corinthians contra o machismo: mais times e torcidas contra o ambiente hostil a mulheres no futebol (Foto: Reprodução/Facebook)

Não é raro me ouvir dizendo que odeio futebol. Digo sempre que não me engajo com o ir e vir da bola pelo campo, que não entendo o apelo, mas não sei se é inteiramente verdade. Outra de minhas piadas recorrentes é que fui criada para ser vascaína, mas falhei (ou me rebelei, vario os verbos a depender do meu espírito no dia). Mas me lembro bem de ser muito menina e, como meu irmão, vibrar com as conquistas de um Vasco da Gama em boa fase (lá nos anos iniciais da década de 1990, muito tempo atrás).

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Mas algo se passou entre a pequena Júlia torcedora e a adulta de hoje, avessa a tudo que se relacione ao universo futebolístico, e eu duvido que seja só desinteresse. O futebol não me quer lá: a mim ou a qualquer mulher. E tampouco quer homens que não exerçam um determinado tipo de masculidade. Pergunte a qualquer um que tenha sido o menino gay da turma na aula de Educação Física.

A masculinidade tóxica, violenta e opressora nos espaços de futebol e entre seus protagonistas é cada vez mais gritante. Do ambiente frequentemente inseguro para mulheres, do estádio ao bar que transmite jogos. De estupros cometidos por grandes astros do esporte à desigualdade (de patrocínio, de espaço midiático, de atenção popular) com o futebol de mulheres. Da traição de esposas grávidas ao desrespeito absoluto com repórteres, árbitras, jogadoras, narradoras, torcedoras e qualquer uma que tente furar a bolha machista em que a bola rola. De gritos de torcida homofóbicos ao dito direito inalienável do macho ao futebol, custe o que custar – ou a quem custar. Não se trata, óbvio, de comparar qualquer dessas ações com a outra – até porque algumas são crimes tipificados, inclusive basta digitar o tipo de infração com o verbete “jogador” no Google para ver exemplos de casos em julgamento.

Mas há algo de deplorável na maneira como o futebol vem ensinando gerações e gerações de meninos a se tornarem homens. Sim, porque é às crianças que se ensina, conscientemente ou não, como é que se “é mulher” ou se “é homem” em sociedade, inclusive com essa restrição binária (mas isso é papo para outro dia). Para usar um clichê como exemplo, quando um menino chora e ouve que “isso não é coisa de homem” ou que assim “parece uma mulherzinha”, ele aprende duas coisas. Uma é que chorar o afasta da masculinidade, e que o torna motivo de chacota, inferior, algo que ninguém deve querer ser: “mulherzinha”.

No Brasil, a sociabilidade de meninos na infância é muito permeada por peladas, escolinhas de futebol, álbuns de figurinhas de campeonatos, e outros desdobramentos da cultura futebolística, mais ou menos acessíveis dependendo do grupo de crianças. Mas uma bola e um campo são possibilidade para quase todo mundo. O esporte também tem um papel sociológico fundamental na identidade brasileira, seja na possibilidade de ascensão social e econômica de garotos pobres e pretos (em sua maioria), seja na suspensão temporária de desigualdades, hierarquias, problemas e dores sob a égide do “meu (nosso) time está jogando”. Então não surpreende que ele seja uma parte significativa do processo de se fazer entender como homem na cultura brasileira e em várias outras.

Resta entender em que momento a misoginia entrou nessa conta, nesse processo de produzir-se homem, exercer a masculinidade. Dá pra encontrar pistas. Na maneira como entendemos gênero em nossa sociedade, a masculinidade é produzida em oposição à feminilidade, ao feminino. Em outras palavras e no limite, ser homem “de verdade” seria eliminar tudo que é “ser mulher”. Afinal, como pontua bell hooks em “Tudo sobre o amor” (Elefante, 2020), “a masculinidade patriarcal exige que meninos e homens não só se vejam como mais poderosos e superiores às mulheres, mas que façam o que for preciso para manter sua posição de controle”. Rejeitar. Ridicularizar. Desrespeitar. Subjugar. Objetificar. Apagar. Aniquilar. E como o futebol é um lugar construído como privilegiado para se ser homem, ele se torna também, pelo menos potencialmente, em uma máquina de moer tudo aquilo entendido como “de mulher”.

Só que neste percurso, ninguém sai ileso e, mesmo os homens autodeclarados e/ou reconhecidos como mais viris nestes termos do futebol e do patriarcado, são triturados. Ou melhor, trituram-se a si mesmos. É impossível corresponder às expectativas dessa masculinidade que não pode sentir, não pode vacilar e precisa se afirmar o tempo todo – sexualmente, financeiramente, no status, nos cabelos que não podem cair, na agressividade que é preciso expressar.

E na pressão das tentativas de adequação a esse modelo de masculinidade tão restrito e opressor, muitos que não se enquadram nele pagam com suas vidas por isso – por violência alheia ou contra si próprio. Um levantamento do Ministério da Saúde, com base nos dados de óbitos por suicídio registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) entre 2010 a 2019, e de notificações de violências autoprovocadas registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) de 2019, constatou que, no Brasil, homens cometem 3,8 vezes mais suicídios do que mulheres. Fazer uma ligação direta com o futebol seria forçar a barra? Sim. Mas não é errado supor que a maioria destes homens brasileiros tenha tido boa parte de sua vida social atrelada ao universo do esporte.

Há caminhos possíveis para desmantelar essa cultura adoecida e essa maneira nociva de ser homem atrelada ao futebol? Os estádios, bares, vestiários, campos, casamentos e banheiros de casas noturnas refletem o que se vê na sociedade. Enquanto vivermos sob uma lógica machista e heteronormativa, é difícil vislumbrar alternativas ao estereótipo do macho futeboleiro opressor.

Mas, como sempre lembra Foucault, onde há poder, há resistência. Um levantamento feito em 2022, da Kantar Ibope, aponta que as mulheres representam 44% da base on-line de fãs de futebol no país. É quase metade. Há torcidas e times com nítidas tomadas de posição contra o ambiente hostil que o futebol tem sido historicamente para mulheres e pessoas LGBTQIA+: a camisa do Vasco com as cores do arco-íris; o posicionamento abertamente antimachista, antirracista e anti-LGBTQIA+fobia da Fanfarra Festiva Tricolor (@fanfarrafestivatricolor, no Instagram), a incrível torcida Resistência Coral (@resistenciacoral), do Ferroviário (CE), entre muitos outros exemplos. Dezenas de torcidas organizadas apenas com integrantes mulheres têm surgido pelo país. Mais mulheres tornam-se dirigentes, árbitras, narradoras, comentaristas e outras figuras de poder e prestígio no cenário do futebol, antes restritas a homens. Marta, Formiga e Bárbara são nomes hoje muito mais amplamente conhecidos no cenário esportivo e no senso comum do que dez anos atrás. Ainda é um movimento tímido? Sim.

Mas são passos decisivos para que o futebol deixe de ser um lugar tornado sistematicamente perigoso e hostil por homens que se borram nas calças em resposta ao temor absoluto de (ser) “mulherzinha”.

Júlia Pessôa

Júlia Pessôa é jornalista, mestra em comunicação, especialista em gêneros e sexualidades e doutoranda em ciências sociais. Atuou no jornalismo diário por mais de dez anos, cobrindo principalmente cultura, gastronomia, gêneros, sexualidades e direitos humanos. Tem experiência de docência no ensino superior público e privado, no qual atua até hoje. É autora do livro de crônicas “Heteronímia” (2017), publicado pela Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura (Juiz de Fora- MG) e tem publicações em veículos como UOL Tab, BBC Brasil e O Globo. Inexoravelmente feminista.

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