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Veja o que já enviamosPelo direito inalienável das mulheres a uma vida que preste
Neste 8 de março, e também no Oscar e no Carnaval, devemos berrar 'a vida presta' ao enfrentarmos as pequenas e grandes violências de gênero do dia a dia
Lá pelas tantas de uma madrugada de segunda de Carnaval, com a cara cheia de glitter, eu e um coro de ébrios entoávamos “É preciso dar um jeito, meu amigo”, canção de Erasmo Carlos que se tornou ícone da caminhada de “Ainda estou aqui” ao Oscar. Havíamos vencido “Melhor Filme Internacional”. A luta de Eunice Paiva, tão silenciada, e que tanto tentaram manter sob o imundo tapete da ditadura militar brasileira, agora é conhecida pelo mundo, assim como a atuação sublime das Fernandas, filha e mãe. Na boca do povo, em várias línguas. De fato, “a vida presta”.
Leu essa? Fernanda Torres e Eunice Paiva: liberdade é transcender o medo – e abocanhar um Globo de Ouro
Não foi à toa que o bordão de Fernanda Torres ao ser indicada ao Globo de Ouro (que veio a ganhar) se tornou um mantra no país, sobretudo no clima de Carnaval. Além disso, legendou fotod, stories, camisetas, bonés, canecas – e virou também bloco de carnaval e plaquinha de fantasia para mais de mil Fernandas nos salões carnavalescos espalhados pelo Brasil. Queremos tanto gritar que a vida presta porque temos consciência e conhecimento prévio – em graus diferentes- de que ela não presta o tempo todo. Principalmente para as mulheres. E principalmente para algumas mulheres.

Tenho certeza de que não prestou em muitos momentos para MC Xuxú, cantora trans preta e periférica de Juiz de Fora (MG). Ao longo dos anos em que conheço a artista, por vários momentos pude ser testemunha de como tentaram apagá-la, intimidá-la, inferiorizá-la e fazer com que ela se sentisse sem direito, de fato, a estar aqui. No sábado de Carnaval, algumas horas antes do delírio coletivo com o Oscar, Xuxú foi carregada algemada do bloco que comandava depois de uma ação policial truculenta que ainda deixou dezenas de foliões, inclusive idosos e crianças, caídos, pelo uso indevido e indiscriminado de spray de pimenta.
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Veja o que já enviamosXuxú foi presa por “incitar a violência”. Sua fala no palco foi para que as pessoas fossem para suas casas e protegessem as crianças. Não houve ação policial parecida em qualquer outro bloco, justamente no que mais reuniu pessoas trans, pretas e da periferia. Ainda assim, em uma das primeiras publicações sobre o ocorrido nas redes, Xuxú mostrou sua grandeza ao se remeter à gigante de que falava há pouco, Eunice Paiva, mencionando uma das falas de Fernanda no filme premiado: “Nós vamos sorrir. Sorriam”. Ouvi uma vez que “não há nada mais forte do que uma mulher despedaçada que se reconstruiu”. E não há nada mais irritante também para os opressores.
Nada enraivece mais o conservadorismo do que mulheres que saem com a bunda pra jogo, adesivos mínimos de mamilo, fantasias e brilhos que deixam o corpo à mostra, seja lá como ele for. Mesmo sob o risco iminente de um assédio ou violência. Mesmo sob a quase certeza de julgamento alheio. Mesmo sabendo que, na maioria ds vezes, “não é não” acaba sendo uma frase que estampa leques, mas que na prática e aos olhos dos homens, é condicionada ao que a vítima está vestindo, bebendo, e a como se comporta, no Carnaval e na vida. Ainda que seja comprovado que NADA disso importa, e que a única coisa que faz um estupro acontecer seja a existência de um estuprador.
Pouca coisa incomoda mais do que uma mãe que ousa viver – para si também, e não para a família, e as crianças. “Mas com quem seu filho está?”. Outra pedra no sapato de bico fino do conservador é a mulher empobrecida que se diverte, como se lazer fosse um privilégio, e não um direito: “Ah, mas quanto que custa uma cerveja/uma fantasia?”. (E é por isso também que o Carnaval enraivece tantos). O mesmo vale para uma mulher gorda que esteja feliz com seu corpo, uma mulher negra que aprendeu a responder aos racismos que sofre. Uma afronta ao cidadão de bem.
Por isso, eu volto a dizer: é justamente porque a vida não presta o tempo todo que nos agarramos a cada fonema para berrar o contrário. No Oscar, no Carnaval e na vida, enfrentando horrores de um governo ditatorial; a força da truculências policial ou as pequenas e grande violências de gênero do dia a dia. Neste 8 de março, tudo que eu desejo a todas as mulheres é a vivência do direito inalienável a uma vida que presta.
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