De Sojourner Truth a Linn da Quebrada: “E eu não sou uma mulher”?

Linn da Quebrada com o prêmio de Mulher do Ano, da Glamour. Ao redor, Sojourner Truth e Audre Lorde. Arte: Dan Torres

Em artigo, Júlia Pessôa pondera que reações após Prêmio Geração Glamour refletem preconceito que torna Brasil líder em transfeminicídios e critica o mito excludente da mulher universal: ‘Flerta com racismo e preconceito de classe’.

Por Júlia Pessôa | ODS 5 • Publicada em 28 de outubro de 2022 - 11:09 • Atualizada em 13 de novembro de 2022 - 17:56

Linn da Quebrada com o prêmio de Mulher do Ano, da Glamour. Ao redor, Sojourner Truth e Audre Lorde. Arte: Dan Torres

Nestes dias entre o primeiro e o segundo turno das eleições mais importantes deste período histórico, tenho me sentido, como a maioria das pessoas com alguma sensatez, exausta. Não que eu venha fazendo um trabalho intenso de campanha ou algo parecido, longe disso. Mas tentar defender a jovem e adoecida democracia brasileira só ali, para o pessoal mais chegado, nas redes sociais, tem se mostrado dia a dia uma tarefa penosa e que esgota até quem tem mais preparo.

Dito isso, sempre me admira como o ódio, atalho dos covardes, tem sempre fôlego para ir adiante, mesmo ante as maiores adversidades. Como se não bastasse o estressante clima eleitoral, nesta semana a multiartista Linn da Quebrada foi eleita Mulher do Ano pelo Prêmio Geração Glamour, e rapidamente houve quem gastasse tempo e energia só para destilar transfobia contra cantora onde quer que a notícia sobre o fato tenha sido veiculada.

Veja também: A arte, a voz e a história de Linn da Quebrada

Um comentário, em especial, me causou mais nojo – porém não surpresa, já que estamos no país em que “imbrochável” é pronunciamento oficial. “Até em ser mulher um homem foi melhor do que as mulheres”, um relincho que é o retrato transfóbico e machista do que o Brasil se transformou. Primeiro, por não reconhecer Linn na identidade de mulher ao chamá-la de homem. Segundo, por supor que homens são sempre melhores do que mulheres.

O mesmo patriarcado que assombra meninas cisgênero e as expõe a abusos desde a primeira infância também violenta meninas trans e travestis desde pequenas.

Júlia Pessôa
Jornalista

Linn, ou Lina, autodeclarada travesti que o grande público conheceu melhor no ‘BBB 22’, não foi sequer criticada por sua atuação como atriz, cantora, compositora, ativista ou em algum discursinho ordinário nos moldes “ai, mas artista é Fulana de tal, ela é celebridade”. Violaram-na em seu direito mais absoluto, existir, arrancando-lhe a identidade que clama para si, a feminina, ao lhe chamarem do que não é: “homem”. (A quem tem a dúvida genuína, travesti é uma identidade feminina, por isso não se diz “o travesti”, mas “a travesti”. E não, nunca se diz “traveco”, alcunha pejorativa).

Desde 2009, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis pelo 13º ano consecutivo, segundo dados da Transgender Europe (TGEU). Apesar de não ser a mesma coisa, o apagamento literal dessas identidades com seu assassinato tem as mesmas raízes do pensamento que arranca à força a identidade de Linn da Quebrada ao chamá-la, repito, do que não é: homem. É buscar não a autorizar de simplesmente ser e estar.  Mas Lina, ainda bem, como toda existência trans, jamais pediu autorização, por saber que prescinde dela- mesmo que isso custe caríssimo.

Numa outra camada, existem feminismos que também se recusam a abraçar identidades trans e travestis, como se fosse possível a qualquer expressão de mulheridade dar-se este luxo. Como lembra Audre Lorde, “não existe hierarquia de opressão”. O mesmo patriarcado que assombra meninas cisgênero e as expõe a abusos desde a primeira infância também violenta meninas trans e travestis desde pequenas. Inclusive é esse Cistema patriarcal que nega a essas crianças T que elas o sejam, e disso decorrem inúmeras violências que  se espalham pela linha do tempo da vida: abandono familiar; agressões físicas, verbais, políticas e sexuais; evasão escolar; violência médica; desemprego; pobreza; e, entre tantas outras, assassinato.

Um feminismo que exclui Linn da Quebrada é um feminismo que se baseia em um mito (com toda carga negativa que a palavra pode ter) de mulher universal, e que flerta também com racismo e preconceito de classe.

Júlia Pessôa
Jornalista

Um feminismo que exclui Linn da Quebrada é um feminismo que se baseia em um mito (com toda carga negativa que a palavra pode ter) de mulher universal, e que flerta também com racismo e preconceito de classe. (Lembrem-se de Lorde novamente, como um mantra: “Não existe hierarquia de opressão”, “Não existe hierarquia de opressão”…). Um feminismo que vê alguma vantagem na socialização infantil de mulheres trans é um feminismo que nunca teve os pais chamados à escola porque “anda dizendo que é menina”. É um feminismo que, ao se agarrar a determinantes biológicos, acaba por excluir também mulheres com corpos dissidentes. Ora, se mulher é quem tem vagina e dois peitos, como ficam as mulheres mastectomizadas? Um feminismo que rejeita o T de LGBTQIA+ se pretende único, e cai na cilada machista de que mulher deve ser “assim ou assado”, recusando todas que não se enquadram ali.

Preta como Linn, e se levantando contra essa noção excludente do que seria uma mulher, a abolicionista Sojourner Truth fez, em 1851, uma intervenção que se tornou histórica na  Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos. Em uma reunião de clérigos onde se discutiam os direitos da mulher, Sojourner levantou-se para falar após ouvir de pastores presentes que mulheres não deveriam ter os mesmos direitos que os homens, porque seriam frágeis, intelectualmente débeis, porque Jesus foi um homem e não uma mulher e porque, por fim, a primeira mulher fora uma pecadora.

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”

Séculos se passam, e continuam tentando nos forçar goela abaixo a ideia de quem é ou não mulher por direito. Por isso eu estou aqui me valendo do meu privilégio branco, hétero e cis para dizer que Linn da Quebrada foi a Mulher do Ano pelo Prêmio Geração Glamour. Porque, ao contrário dela, não serei chamada de homem afirmando isso. (Talvez me chamem de outras coisas, ok, mas aí é papo pra um artigo futuro). É violenta e perversa, e em nada me interessa uma ideia de feminino que não inclua as Linns da Quebrada. E eu não sou uma mulher?

Júlia Pessôa

Júlia Pessôa é jornalista, mestra em comunicação, especialista em gêneros e sexualidades e doutoranda em ciências sociais. Atuou no jornalismo diário por mais de dez anos, cobrindo principalmente cultura, gastronomia, gêneros, sexualidades e direitos humanos. Tem experiência de docência no ensino superior público e privado, no qual atua até hoje. É autora do livro de crônicas “Heteronímia” (2017), publicado pela Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura (Juiz de Fora- MG) e tem publicações em veículos como UOL Tab, BBC Brasil e O Globo. Inexoravelmente feminista.

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