Chiquinha Gonzaga: uma compositora contra o machismo e o racismo

Chiquinha Gonzaga: documentário em exibição no CurtaOn uma compositora pioneira na música enfrentando também contra o machismo e o racismo (Foto: Divulgação)

Pioneira na música, artista tem outras facetas de sua vida debatidas em documentário em exibição na plataforma de streaming CurtaOn

Por Oscar Valporto | ODS 5 • Publicada em 21 de fevereiro de 2024 - 09:44 • Atualizada em 23 de fevereiro de 2024 - 09:49

Chiquinha Gonzaga: documentário em exibição no CurtaOn uma compositora pioneira na música enfrentando também contra o machismo e o racismo (Foto: Divulgação)

“Ô Abre-Alas que eu quero passar/ eu sou da lira / não possa / Rosas de Ouro é que vai ganhar”. Milhares de brasileiros frequentadores de blocos carnavalescos devem ter cantado os versos dessa marcha-rancho composta 125 anos atrás. “Ô Abre-Alas” é considerada a primeira música de Carnaval; sua autora, Chiquinha Gonzaga, foi uma pioneira ao desbravar os caminhos da música popular para as mulheres que, na virada do século, podiam, no máximo, tocar um instrumento em casa. A compositora, pianista e maestrina, nascida em 1847, era ainda neta de uma escrava e participou ativamente do movimento abolicionista.

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Neste fevereiro de Carnaval, perto do Dia Internacional da Mulher, nada mais oportuno que o lançamento de “Chiquinha Gonzaga – Música Substantivo Feminino”, filme dirigido por Juliana Baraúna e Igor Miguel e disponível no CurtaOn – Clube de Documentários, streaming disponível no Prime Video (da Amazon), na Claro TV+ e no site oficial da plataforma, após as primeiras exibições no Canal Curta. Casada aos 16 anos, Francisca Edwiges Neves Gonzaga separou-se aos 23 anos, denunciando maus tratos do marido, oficial da Marinha Mercante. “Esse desejo de liberdade de Chiquinha Gonzaga acompanha toda a vida dela. Ela se liberta do marido e vai se libertando de todo tipo de grilhão”, comenta, no documentário, a escritora Edinha Diniz, biógrafa da compositora.

O grande legado que ela nos deixa é o direito de ser, de existir. A gente tem que agradecer muito a Chiquinha Gonzaga por nos mostrar a importância de dizer ‘Ô Abre Alas, que eu quero passar’

Helena Theodoro
Historiadora, professora e filósofa

Para ajudar a contar a história, foram reunidos depoimentos apenas de mulheres: as pianistas Clara Sverner e Maria Teresa Madeira, a socióloga Carolina Alves, a filósofa e historiadora Helena Theodoro e a regente Andréa Botelho, além de Edinha Diniz. O documentário entremeia os depoimentos com imagens de época – com as canções de Chiquinha Gonzaga na trilha sonora, executadas pelo Grupo Chora – Mulheres na Roda, também inteiramente feminino. “Se tem uma coisa que Chiquinha inspira a todas nós, mulheres, é esse desejo de viver e de viver em liberdade”, afirma Carolina Alves no documentário de 56 minutos.

O primeiro grito de liberdade custou caro para a jovem pianista, que tocava o instrumento desde criança. Foi afastada dos três filhos – João Gualberto, Maria do Patrocínio e Hilário – que passaram parte da infância separados; o marido a processou por abandono do lar e adultério. Para garantir seu sustento, Chiquinha Gonzaga começou a dar aulas de piano e também de teoria musical. Fez amigos na música: começou a compor para peças de teatro, apresentou-se em casas noturna, vendeu algumas canções, como era comum na época. “Chiquinha Gonzaga vai ser uma grande exceção. Ela vai sobreviver de fazer música”, lembra, no documentário, a professora Helena Theodoro, pesquisadora de cultura negra e do Carnaval.

Ela tinha a experiência materna e a experiência da escravidão muito próximas, e por isso sua negritude precisa ser reivindicada. Quando ela se junta com outros intelectuais, com outros artistas, pensando a questão da escravidão negra, isso também empretece seu pensamento; quando ela se aproxima dos lundus, das músicas das ruas, isso empretece sua musicalidade, isso empretece Chiquinha

Carolina Alves
Socióloga

Nesse meio musical e mais boêmio, foi misturando sua formação mais erudita com a música popular no Brasil na parte final do século 19: polcas, maxixes e marchas-rancho. Passou a tocar piano no conjunto de choro do flautista Joaquim Callado, grupo pioneiro na criação e divulgação do ritmo. A polca ‘Atraente’, de 1877, é considerada seu primeiro sucesso. O termo “maestrina” foi criado por jornalistas quando , em 1885, Chiquinha Gonzaga estreou no teatro com a opereta A corte na Roça – não existia qualquer outra mulher regente. Em 1889, regeu uma orquestra de violões, instrumento ainda visto com preconceito, no no Imperial Teatro São Pedro de Alcântara. A marcha-rancho “Ô Abre-Alas” foi composta em 1899 e tornou-se um sucesso absoluto do Carnaval nos 10 anos seguintes – e é executada até hoje em blocos e bailes. Na virada do século, Chiquinha, 53 anos, mantinha um relacionamento amoroso com João Batista, de 16 anos – eles viveram juntos até a morte da compositora em 1935.

O grupo Chora – Mulheres na Roda interpreta as músicas da compositora no documentário Chiquinha Gonzaga – Música Substantivo Feminino (Foto: Reprodução)
O grupo Chora – Mulheres na Roda interpreta as músicas da compositora no documentário Chiquinha Gonzaga – Música Substantivo Feminino (Foto: Reprodução)

Esse pioneirismo nunca foi bem visto até porque Chiquinha Gonzaga, além de seu comportamento libertário, fazia sempre questão de defender a presença das mulheres na música e em outros campos. Também participou de atos em defesa da Proclamação da República, foi uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat) e do Movimento Abolicionista. “Ela sempre esteve à frente e atuando ativamente, como militante a favor de todas as causas sociais de sua época”, afirma sua biógrafa Edinha Diniz no documentário “Chiquinha Gonzaga – Música Substantivo Feminino”.

Abolicionista, a compositora chegou a vender partituras de porta em porta a fim de angariar fundos para a Confederação Libertadora e, com o dinheiro da venda de suas músicas, comprou a alforria de um escravo músico. Essa parte da vida de Chiquinha – mestiça, filha de negra alforriada e neta de uma escravizada – é destacada no documentário. “Ela tinha a experiência materna e a experiência da escravidão muito próximas, e por isso sua negritude precisa ser reivindicada. Quando ela se junta com outros intelectuais, com outros artistas, pensando a questão da escravidão negra, isso também empretece seu pensamento; quando ela se aproxima dos lundus, das músicas das ruas, isso empretece sua musicalidade, isso empretece Chiquinha”, frisa a socióloga Carolina Alves em seu depoimento no documentário.

O filme é revelador desses muitos caminhos abertos pela compositora – como lembra a professora e historiadora Helena Theodoro, ela deixa um exemplo que, como seu maior sucesso, atravessa os séculos. “O grande legado que ela nos deixa é o direito de ser, de existir. A gente tem que agradecer muito a Chiquinha Gonzaga por nos mostrar a importância de dizer ‘Ô Abre Alas, que eu quero passar'”.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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