ODS 1
Incertezas e desafios de quem estuda para ensinar
Pesquisa mostra que o Brasil deve ter um déficit de 235 mil professores na educação básica até 2040. Salários baixos afastam os estudantes da licenciatura
A procura por uma formação de nível superior é geralmente associada à busca por melhor qualidade de vida e remuneração digna. No entanto, quando se trata de cursos de licenciatura e trabalho com educação básica, a perspectiva salarial fica muito distante do ideal, como mostra estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) com dados da Pnad Contínua do IBGE. Os professores de ensino infantil possuem o pior salário entre profissionais com ensino superior no país, com remuneração média de R$ 2.285 mensais, fechando o pódio das piores remunerações estão outros profissionais de ensino e professores de artes. Estes números ajudam a explicar outra pesquisa, feita pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), que aponta um déficit de 235 mil professores na educação básica brasileira até 2040.
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Entre as áreas com a situação mais crítica, estão matemática e física, cursos que, frequentemente, apresentam altos índices de evasão. Pesquisa feita pela Universidade de São Paulo (USP) constatou que as taxas de evasão são maiores nos cursos em que há muitas reprovações em disciplinas de matemática. Estudante do último semestre de licenciatura em matemática no Instituto Federal Farroupilha (IFFar), Douglas Antunes Roballo, 29 anos, acredita que as condições de trabalho e a desvalorização ajudam a explicar a carência de professores: “Alguns estão desistindo da profissão por conta da desvalorização, uma vez que o salário ainda é baixo e por conta de que leva muito trabalho pra casa. Sem contar que um mesmo professor trabalha às vezes em três escolas e é responsável por mais de 100 alunos”, comenta Douglas, morador de São Borja, no interior do Rio Grande do Sul e atualmente estagiário na área da educação.
Sobre esse cenário, o doutor em educação pela Universidade Federal de Uberlândia e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM), Vicente Batista dos Santos Neto, aponta que além da baixa remuneração e da precarização do trabalho, a falta de formação continuada é outro elemento que alimenta o “apagão” de professores, em especial nas áreas de física e matemática: “Não podemos deixar de destacar o fato da evolução da oferta de cursos através da Educação à Distância. Atualmente, 65,2% de todos os ingressos em cursos superiores se dão nessa modalidade e que, em sua maioria, são ofertados por instituições privadas com cursos massificados”, acrescenta o professor.
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Veja o que já enviamosEstatísticas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), levantados pelo especialista, mostram que o déficit de professores em disciplinas como física e matemática tem crescido desde 2013 até o ano passado. Em matemática, na educação básica, a lacuna é mais grave. No período analisado, o déficit cresceu 36,67% nos anos iniciais do ensino fundamental; 24,79% nos anos finais do ensino fundamental e 16,96% no ensino médio. Em Física, o déficit cresceu 37,40%, considerando apenas o ensino médio, onde a disciplina é ofertada.
Ainda segundo informações dos Indicadores do Fluxo da Educação Superior, mesmo que 67 mil estudantes tenham se licenciado em matemática e 23 mil se licenciado em física entre 2013 e 2018, os déficits continuam crescendo. Em relação ao curso de matemática, Vicente Batista explica que a alta demanda da disciplina no ensino fundamental piora ainda mais o quadro e dificulta a reposição dos profissionais.
Dados obtidos na Plataforma Nilo Peçanha mostram que nos últimos cinco anos, foram 46 professores de matemática formados pelo IFFar em São Borja, onde Douglas estuda. No mesmo período, 177 estudantes começaram o curso, ou seja, para cada quatro ingressantes, apenas um aluno concluiu a graduação. Em Física, a situação é ainda pior. Entre 2018 e 2022 foram apenas 14 profissionais formados, diante de um universo de 139 ingressantes.
No caso de Douglas, a sua ideia inicial era cursar Direito ou tentar a carreira militar, quando começou a fazer matemática, pretendia ficar apenas um ano e voltar a fazer provas para entrar no exército. Apesar das muitas dificuldades no começo, ele se encontrou na profissão. “Acabei gostando da parte da matemática pura, o que me encantou muito mais. Me encontrei ao longo do curso, hoje não me vejo fazendo outra coisa”, conta.
Para o futuro, Douglas sabe que não terá uma caminhada fácil, nem salários altos, por isso pretende fazer uma pós-graduação. Segundo ele, o Brasil possui um grande potencial na área de ciências exatas que não é bem aproveitado. “Somos um dos melhores países em questão de pesquisa em matemática. Todos os anos exportamos grandes matemáticos para fora do país”, comenta.
A dificuldade em formar professores de matemática e física também aparece nos números de formandos da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), onde Joice Martins Neves, 27 anos, se formou em física. Encantada pela área desde jovem, ela enfrentou dificuldades para se adaptar com as aulas durante a graduação: “Faltava uma troca de conhecimento aluno-professor, ou seja, não havia empatia e afetividade, muitas vezes o conteúdo era apresentado de maneira a atender características do professor, ou seja, nada didático”, descreve Joice. Na opinião dela, resiliência e muita persistência são vitais para enfrentar o curso, mesmo assim, os números mostram um cenário de poucos formandos.
Dados obtidos através da Pró-reitoria de Graduação (Prograd) da Unipampa, mostram que entre 2018 e 2022, foram 120 ingressantes no curso de física. No mesmo intervalo de cinco anos, apenas 26 estudantes terminaram a graduação. Em matemática, os números são um pouco melhores, uma vez que o curso é ofertado em duas cidades: Itaqui e Bagé. No total, foram 458 novos alunos e 94 professores formados.
Agora, além de fazer mestrado em Ensino, Joice vai começar o curso de matemática em 2024. “Vivenciando algumas barreiras internas e externas, no que diz respeito ao desenvolvimento da aprendizagem no contexto acadêmico, fui ao longo do curso despertando alguns interesses como, por exemplo, me tornar também professora de matemática”, conta. Embora demonstre paixão semelhante à de Douglas pela profissão, quando questionada sobre as perspectivas profissionais, a física enxerga um cenário mais complexo. Joice menciona os baixos salários e poucas oportunidades de concursos, o que tem levado professores a buscarem alternativas de renda: “Alguns educadores estão recorrendo ao trabalho de forma online, seja ensinando ou comercializando produtos educacionais”, lembra ela.
O professor Vicente Batista dos Santos Neto inclui a desigualdade e a pobreza como parte dos dilemas brasileiros que também afetam a formação de professores. “No caso das licenciaturas em sua maioria, encontramos estudantes de estratos sociais desprovidos de riqueza. Em sua maior parte, precisam trabalhar para ajudar nas despesas da família e custear os estudos que, na maioria das vezes, é pago”, explica. Segundo números do Inep, 65,8% das matrículas em licenciatura são em instituições privadas e 64,2% em cursos à distância.
Outras realidades e alternativas
Gabriel Carvalho Cardoso, 22 anos, é formando de Ciências Humanas na Unipampa. Além dele, apenas mais uma colega vai concluir o curso em 2023. Inspirado na irmã professora, Gabriel teve de superar um desafio extra na formação, o período de aulas remotas durante a pandemia de Covid-19. Sobre esse momento, ele comenta: “nunca pensei em desistir, mas queria muito me formar logo”. Hoje, depois de diferentes experiências com estágios na área, seu maior sonho é seguir na área acadêmica e ser professor universitário.
Gabriel destaca a importância do lado humano nos processos de ensino-aprendizagem, ainda assim, não é possível ignorar a desvalorização da profissão. “Para mim, ser professor, infelizmente, não é uma profissão que basta ter um diploma, além de ser uma profissão super desvalorizada econômica e socialmente, também é necessário saber ensinar e aprender a aprender”.
Na opinião do professor do IFTM, iniciativas como o Programa Residência Pedagógica (PRP), precisam ser ampliadas, seja como uma forma de dar experiência aos estudantes, como, principalmente, para colaborar com a permanência deles no curso.
O gosto por ensinar e por trabalhar com crianças foi o que motivou Adiane Sarmento de Abreu Pereira, 36 anos, a fazer pedagogia. Atualmente, ela trabalha na Escola Municipal de Ensino Fundamental Onze de Junho, em São Borja, há aproximadamente um ano. Sobre a questão salarial, ela enxerga a necessidade de uma maior valorização dos professores. “Na minha visão o salário deveria ser reajustado: para 20h no mínimo R$ 3.000 de salário, entre outros reajustes como vale alimentação e vale transporte”, acrescenta.
Sobre a questão do teto salarial, Vicente Batista acredita que o governo federal precisa assumir maiores compromissos e ampliar os repasses a estados e municípios, em especial para aqueles que enfrentam dificuldades para pagar o piso do magistério. “A grande questão que se inclui aqui é que estamos falando de um país com grandes disparidades regionais. Há municípios brasileiros que contam com boa remuneração, plano de carreira, formação continuada para seus docentes, enquanto, por outro lado, alguns têm dificuldade de pagar os baixos salários”, explica o especialista.
Ainda de acordo com o doutor em educação, mesmo que os recursos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) possam ser utilizados pelos municípios para o pagamento de salários aos professores, é necessária uma divisão mais eficiente do dinheiro. “O sentido da reformulação das políticas educacionais perpassa em dar mais para quem está com mais dificuldade: investigar os piores desempenhos da formação básica e corrigir falhas pontuais, e não premiar quem já vai bem”, finaliza.
Ainda que muitos professores sigam na profissão por conta da chamada “vocação” para ensinar, uma maior valorização e salários dignos, além de iniciativas de formação continuada são essenciais para enfrentar o “apagão” de professores e estimular quem estuda para ensinar a terminar a graduação.
Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.