A Constituição em língua indígena: “avanço, resistência e existência”

Indígena com exemplar da primeira Constituição brasileira traduzida para a língua indígena – o Nheengatu: lançamento em São Gabriel da Cachoeira com as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia em São Gabriel da Cachoeira (Foto: Fellipe Sampaio/STF)

Lançamento levou as ministras Rosa Weber e Cármem Lúcia, do STF, a São Gabriel da Cachoeira, município com a maior população indígena do Brasil

Por ISA, Instituto Socioambiental | ODS 16ODS 4 • Publicada em 21 de julho de 2023 - 15:10 • Atualizada em 22 de novembro de 2023 - 08:34

Indígena com exemplar da primeira Constituição brasileira traduzida para a língua indígena – o Nheengatu: lançamento em São Gabriel da Cachoeira com as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia em São Gabriel da Cachoeira (Foto: Fellipe Sampaio/STF)

(Juliana Radler*) – Com o hino nacional cantado em Nheengatu, uma das quatro línguas indígenas co-oficiais de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, foi aberta a cerimônia de lançamento da primeira Constituição Federal traduzida em uma língua indígena. O palco foi A Maloca (Casa do Saber), iniciativa da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) no município, que tem a maior população indígena do país. “Esse é um momento histórico de restauração e de diálogo intercultural que se dá nesse município esplendoroso e mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira. Levamos 523 anos para chegar até aqui. É um passo importante de reconhecimento dos direitos indígenas neste país que possui 274 línguas indígenas vivas”, ressaltou a presidente do Superior Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber.

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A Constituição em Nheengatu foi feita por um grupo de 15 indígenas bilíngues da região do Alto Rio Negro e Médio Tapajós, em promoção ao marco da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) das Nações Unidas.  Rosa Weber afirmou que traduzir a Constituição para um idioma indígena é “um símbolo do nosso compromisso de garantir que todos os povos indígenas tenham acesso à justiça e conhecimento das leis que regem nosso país”.

O evento cheio de simbolismos também marcou o lançamento do Protocolo de Consulta dos povos e comunidades indígenas do Rio Negro, “uma ferramenta que explica para as pessoas de fora como é a regra para um processo de consulta prévia, livre, informada, de boa fé e que seja culturalmente adequada”, conforme explica o texto do documento.

De acordo com o protocolo, qualquer projeto que venha a impactar a vida e os territórios dos indígenas do Rio Negro deverá passar por um processo de consulta das comunidades. “Precisamos que o Judiciário conheça nosso Protocolo de Consulta e nos ajude a fazer cumprir os nossos direitos. Sempre repetimos isso aqui no Rio Negro: desenvolvimento sim, mas de qualquer jeito não”, enfatizou Marivelton Barroso, do povo Baré, presidente da Foirn.

A Foirn aproveitou a ocasião para entregar em mãos à ministra Rosa Weber, presidente do STF e do CNJ, e à ministra Carmen Lúcia, também presente ao encontro, uma carta de demandas ao Fórum Nacional do Poder Judiciário para monitoramento e efetividade das demandas relacionadas aos povos indígenas (Fonepi), do CNJ, como, por exemplo, garantir direitos eleitorais aos povos indígenas. Muitas vezes as barreiras geográficas e linguísticas impedem os indígenas de ter acesso ao voto na Amazônia.

Citando o povo Xukuru, de Pernambuco, que diz “acima do medo, a coragem”, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, se comprometeu a dar andamento a novas traduções da Constituição Federal para outras línguas indígenas. “Queremos reflorestar as mentes dos tomadores de decisões e aldear os corações para esse novo projeto de sociedade com mais respeito às diferenças e com promoção da igualdade. É um gesto de respeito do Judiciário e uma forma de combater a desigualdade social”, afirmou Guajajara em seu discurso na lançamento da Constituição em língua indígena.

Uma das tradutoras da Constituição Federal para o Nheengatu, Dadá Baniwa, liderança indígena e coordenadora da Funai em São Gabriel, disse que ter a Carta Magna em uma língua indígena depois de 35 anos de sua promulgação é um sinal de “avanço, resistência e existência” dos mais de 300 povos indígenas no Brasil. “É uma iniciativa pioneira que mostra a valorização e revitalização das nossas línguas”, concluiu a tradutora, que tem mestrado em Linguística pelo Museu Nacional (UFRJ).

O evento contou ainda com a presença da presidente da Funai, Joênia Wapichana, do vice-governador do Amazonas, Tadeu de Souza, do presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi e da desembargadora presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, Nélia Caminha Jorge, entre outras autoridades dos Poderes Executivo e Judiciário.

Após a cerimônia, a delegação seguiu para a sede do Instituto Socioambiental (ISA), no Centro de São Gabriel da Cachoeira, onde reuniu-se com lideranças indígenas, comunicadores, advogados, representantes de instituições locais e equipe do Programa Rio Negro, do ISA, para conhecer e conversar sobre os desafios da região e sobre os trabalhos desenvolvidos pela sociedade civil junto com o movimento indígena.

A delegação da ministra Rosa Weber seguiu nesta quinta-feira (20/07) para uma visita à comunidade de Maturacá, no trecho da Terra Indígena Yanomami no Amazonas, onde situa-se o ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina ou Yaripo, como chamam os Yanomami. A presidente do STF explicou que o objetivo da visita foi ouvir os integrantes do povo yanomami. “Vim trazer o respeito do Supremo Tribunal Federal ao povo yanomami. Queremos ouvir vocês”, disse. As ministras receberam documentos com reivindicações dos povos e foram batizadas com nomes escolhidos pelos indígenas. A ministra Rosa Weber foi chamada de Xororima Yanomami, nome que significa andorinha. Já a ministra Cármen Lúcia foi chamada de Maiama Yanomami, que representa mulher guerreira.

As ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, do STF, e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara com lideranças yanomamis na Aldeia Maturacá: encontro para Judiciário ouvir demandas (Foto: Fellipe Sampaio/STF)
As ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, do STF, e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara com lideranças yanomamis na Aldeia Maturacá: encontro para Judiciário ouvir demandas (Foto: Fellipe Sampaio/STF)

Justiça com pluralidade étnica

O lançamento da Constituição Federal na língua Nheengatu em São Gabriel da Cachoeira, município com 90% da população de 45 mil habitantes composta por indígenas, faz parte de uma articulação entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), com o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), Foirn e o ISA para promover traduções nas línguas indígenas, democratizando e garantindo o acesso à Justiça. “A Justiça brasileira precisa estar mais informada sobre a realidade indígena, assim como precisa ser mais democrática em relação à pluralidade étnica”, comentou a advogada do ISA no Amazonas, Renata Vieira, em reunião com as ministras Carmém Lúcia e Rosa Weber, em São Gabriel.

Ao citar dados do IBGE, a presidente do STF salientou que os cerca de 305 povos indígenas brasileiros são responsáveis pela preservação de 274 línguas. “A língua é muito mais do que um sistema de comunicação. Ela é um componente central da cultura e da identidade de um povo”, afirmou. “É a base de valores transmitidos de geração em geração de um povo, que expressa a visão de mundo, a criatividade e o vínculo coletivo entre uma comunidade”, completou.

Em abril de 2021, o CNJ lançou na Maloca da Foirn, oito cartazes informativos sobre audiências de custódia nas línguas indígenas Baniwa, Nheengatu e Tukano, dentro do Programa Fazendo Justiça. Dados recentes do Departamento Penitenciário Nacional, no Brasil existem cerca de 670 mil pessoas privadas de liberdade, sendo 3,1 mil indígenas. Segundo o CNJ, a barreira linguística foi identificada como uma das maiores dificuldades para a promoção dos direitos das pessoas custodiadas.

O nheengatu, também conhecido como Língua Geral ou Tupi moderno, não é uma língua indígena amazônica. Ela foi levada primeiro para o Pará no século XVII pelos colonizadores jesuítas que tiveram contato com os Tupinambá. A língua passou, então, a ser usada como idioma de contato entre indígenas de diversas etnias, brancos e caboclos, espalhando-se por várias regiões amazônicas, incluindo o Alto Rio Negro, onde hoje o Nheengatu é uma língua co-oficial, falada por diversas etnias, como os Baniwa, Baré e Warekena.

O nome do idioma vem da junção entre as palavras tupis nhe’enga (“língua”, “idioma”, “linguagem”) e katú (“bom”, “boa”), significando, portanto, “língua boa”, devido à sua importância como língua franca no Norte do Brasil no período colonial. A língua ganhou esse nome a partir da obra do escritor e etnólogo Couto de Magalhães no século 19. Antes disso era conhecida como Tupinambá, língua geral ou língua brasílica.

Apesar de ser considerada uma língua ameaçada pela Unesco, o Nheengatu vem ganhando força e recentemente ganhou a sua Academia da Língua Nheengatu, cujo presidente Edson Kurikanwe Baré, foi um dos tradutores da Constituição Federal para a língua e é oriundo de São Gabriel da Cachoeira.

*Juliana Radler é jornalista do ISA e tem especialização em Jornalismo Ambiental e em Cinema Digital

ISA, Instituto Socioambiental

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