Morte de dona de casa revela colapso na saúde do Amazonas

Enterro da dona de casa Esther Silva em cemitério de Manaus: família protesta porque ela, com diagnóstico de covid-19, não conseguiu ser transferida para hospital de referência (Foto: Amazônia Real)

Esther da Silva, de 67 anos, testou positivo para coronavírus mas morreu sem conseguir sem internada no hospital de referência para covid-19 no estado

Por Amazônia Real | ODS 3 • Publicada em 16 de abril de 2020 - 08:53 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:48

Enterro da dona de casa Esther Silva em cemitério de Manaus: família protesta porque ela, com diagnóstico de covid-19, não conseguiu ser transferida para hospital de referência (Foto: Amazônia Real)

Izabel Santos*

Manaus (AM) – A dona de casa Esther Melo da Silva, de 67 anos, morreu na quinta-feira (09) vítima de Covid-19, no Serviço de Pronto Atendimento (SPA) e Policlínica Danilo Corrêa, após ficar cinco dias à espera de um leito no Hospital e Pronto Socorro Delphina Rinaldi Abdel Aziz, referência no atendimento de pacientes da pandemia do novo coronavírus, em Manaus. Além do leito na UTI, a família denunciou a falta de medicamentos para o tratamento com antibióticos da paciente no SPA.

“Nós pressionamos de todas as maneiras para que ela fosse transferida para o Delphina Aziz, pois a gente acreditava que lá ela receberia o tratamento mais adequado. Tenho certeza de que foi negligência”, disse o coordenador de projetos Luigi Paolo do Nascimento Fernandes, 41 anos, à Amazônia Real em entrevista na tarde de sexta-feira (10), após o enterro. Ele é um dos genros da dona de casa, que deixou três filhas, sendo duas casadas, e três netos.

Luigi Fernandes contou que a família chegou a receber uma informação de que havia seis leitos disponíveis na UTI do hospital Delphina, mas não houve a remoção da paciente. Ele disse que questionou a direção da unidade “Onde estavam esses leitos quando minha sogra mais precisou? Ela é uma das vítimas do colapso do sistema de saúde do Amazonas”, declarou Fernandes.

O atendimento no hospital Delphina Aziz entrou em colapso desde na primeira semana de abril, apesar do governador Wilson Lima (PSC), apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), negar. Ele demitiu o secretário estadual da Saúde, Rodrigo Tobias, após este ter apontado a precariedades nas UTIs e falta de equipamento, como respiradores, no hospitalO Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, criticou a troca no comando no cargo em plena pandemia.

Mercado movimentado em Manaus: população não cumpre orientação de isolamento social e número de casos sobe no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Mercado movimentado em Manaus: população não cumpre orientação de isolamento social e número de casos sobe no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

O Amazonas é um dos quatro estados brasileiros com mais casos de Covid-19 no país: são 1.484 confirmações e 90 mortes, conforme os dados do governo estadual divulgados nesta quarta-feira (14). Sem respeitar as orientações para o isolamento social nas residências e no comércio, a população de Manaus segue nas ruas e a curva epidemiológica da pandemia só cresce. Segundo o boletim divulgado pelo Ministério da Saúde na segunda-feira (13), o coeficiente de incidência da doença no estado é de 303 casos para cada 1 milhão de habitantes. A média nacional de casos é de 111 para cada um milhão, portanto a incidência é 50% acima da média nacional. Especialistas afirmam que o estado precisa orientar a população a fazer o isolamento.

Espera em vão por um leito

A família de Esther Silva sentiu a precariedade do sistema público de saúde no atendimento da dona de casa. Ela era ministra da palavra para enfermos da comunidade católica da Igreja de São Bento, no bairro Cidade Nova, na Zona Norte, onde morava, e entregava as hóstias para os fiéis acamados justamente nos hospitais.

Aquele lugar está uma zona: extremamente tenso e fora de controle. A pessoa é posta lá só para morrer. Vi que outras três pessoas morreram lá com os mesmos sintomas que a minha sogra. E ainda tinham outras pessoas lá com os mesmos sintomas, mais fortes ou mais leves, mas com tosse, febre e falta de ar. Nem sequer tiveram amostras coletadas para exame

Genro de dona Esther Silva, Luigi Fernandes disse que, além da família enfrentar a falta de leitos no Delphina Aziz, a medicação passada pelo médico para o tratamento dela, Azitromicina de 500 mg, estava em falta no SPA Danilo Corrêa. “Tivemos que comprar por conta própria. Nem remédio tinha lá. A gente se sente lesado. Estamos vivendo em um Estado que não existe, em situação de anarcocaptalismo”, desabafou.

Ele disse que a família está abalada não só com a morte da matriarca, mas também por terem visto “muitas pessoas morrendo, entrando e saindo sem o devido cuidado do SPA Danilo Corrêa” nos cinco dias em que a sogra ficou internada na unidade. “Aquele lugar está uma zona: extremamente tenso e fora de controle. A pessoa é posta lá só para morrer. Vi que outras três pessoas morreram lá com os mesmos sintomas que a minha sogra. E ainda tinham outras pessoas lá com os mesmos sintomas, mais fortes ou mais leves, mas com tosse, febre e falta de ar. Nem sequer tiveram amostras coletadas para exame”, afirmou Fernandes.

A dona de casa Esther Silva começou a apresentar os sintomas do novo coronavírus – tosse, febre e dor de garganta – na terça-feira, dia 31 de março. No sábado (4 de abril), ela sentiu falta de ar e foi levada pelas filhas ao SPA e Policlínica Danilo Corrêa. Fernandes disse que ela precisou de um exame de raio-x, mas o equipamento do hospital estava quebrado. Como os sintomas já estavam intensos, os médicos acharam melhor interná-la em uma área de isolamento, onde já se encontravam duas pessoas, contou o genro.

O exame do tipo PCR, que comprovou a Covid-19, só foi realizado no domingo (5) pelo Laboratório Lacen e o resultado saiu dia 8. Fernandes explicou que a situação da sogra se agravou e ela foi levada à emergência, onde foi colocada no único respirador disponível no SPA. Na quinta-feira (9), Esther Silva não resistiu. Ela morreu às 14h10, após três paradas cardiorrespiratória – provocada por “Síndrome Respiratória Aguda Grave Covid-19”, conforme consta no atestado de óbito.

Após a morte da sogra, de acordo com o coordenador de projetos, a família não foi procurada pela FVS para realização de exames ou qualquer tipo de acompanhamento. No dia seguinte, outro genro de Esther recebeu uma ligação da FVS perguntando como estava sua sogra. “Para você ver como é o descaso do Estado: ninguém nem informou o caso dela ao sistema de saúde, nem notificaram o sistema”, protestou Fernandes.

De acordo o genro de Esther, ela não tinha nenhuma comorbidade (doença coexistente): “Minha sogra era ativa, cuidava da saúde e tinha feito um check-up recentemente. Ela não tinha nenhum problema de saúde como diabetes, hipertensão. Nada! Estamos muito revoltados e vamos buscar justiça, pois vimos da televisão o governador falando que tinham leitos. Vi na imprensa que tinham seis leitos disponíveis. Mas diziam para gente que era preciso esperar ter disponibilidade para ela ser transferida. Convivi com a minha sogra por mais de 20 anos, ela não merecia morrer dessa maneira”, afirmou Luigi Fernandes.

“Suporte necessário”

À reportagem da Amazônia Real, a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam) disse, por meio de nota enviada por e-mail, que a direção do SPA Danilo Corrêa informou que “a paciente deu entrada na unidade no dia 4 de abril, sendo realizada a coleta para confirmação de Covid-19 no dia 5 de abril, saindo o resultado após 24h, portanto, dentro do tempo estimado pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS). A paciente recebeu o suporte necessário na unidade, enquanto aguardava a remoção para o Hospital Delphina Aziz. Em relação ao medicamento, a Azitromicina, a unidade solicitou da CEMA , e foi atendida”.

A Susam não explicou o porquê Esther Silva não foi transferida para o Hospital Delphina Aziz e não justificou a falta de equipamento de raio-x no SPA Danilo Corrêa.

Ação de higienização na estação central de ônibus e na Praça da Matriz de Manaus: autoridades apelam para que população fique em casa (Foto: Diego Cajá/Prefeitura de Manaus)
Ação de higienização na estação central de ônibus e na Praça da Matriz de Manaus: autoridades apelam para que população fique em casa (Foto: Diego Cajá/Prefeitura de Manaus)

O primeiro caso de Covid-19 no Amazonas foi registrado no dia 13 de março. No dia 20 de março, o governo anunciou que no hospital Delphina Aziz tinha 69 leitos da UTI, mas 50 estavam ocupados e já havia uma superlotação de pessoas doentes. Também planeja montar 350 leitos.

Nno dia 10 de abril, o governo informou que o Delphina tinha 57 leitos ocupados, sendo 42 com casos confirmados de Covid-19 e 15 por pacientes com suspeita da doença. A Susam explicou que, além da limitação de infraestrutura, não tinha mão de obra qualificada com médicos, enfermeiros e técnicos para operacionalizar os leitos e cuidar dos pacientes. A secretaria também explicou que ocupação destes leitos é dinâmica e está sujeita à melhora de pacientes internados e ao aumento do número de pacientes em estado grave.

O governador do Amazonas, Wilson Lima, assinou em 16 de março o decreto de situação de emergência na saúde pública do estado, com vigência de 120 dias. Na segunda-feira (13/4), quase um mês depois, o governo informou o aumento no número de leitos de UTI no Delphina Aziz de 69 para 75. A meta agora é chegar a 100 de UTI´s e 250 leitos clínicos, chegando à capacidade máxima de 350 leitos na unidade de referência para Covid-19.

Hospital de campanha da Prefeitura de Manaus onde mais de 60 pessoas já morreram de covid-19: mais 144 leitos (Foto: Alex Pazuello/Secom Manaus)
Obras de conclusão do hospital de campanha da Prefeitura de Manaus, cidade onde mais de 60 pessoas já morreram de covid-19: mais 144 leitos (Foto: Alex Pazuello/Secom Manaus)

Situação crítica em Manaus e Região Metropolitana

Do total de 1.484 casos confirmados de Covid-19 no estado, 1.295 são na capital e 189 em 18 municípios. A situação mais crítica é em Manacapuru, na Região Metropolitana de Manaus, que tem 189 casos confirmados e três mortes, segundo dados divulgados nesta terça-feira (14) pela FVS. Das 90 pessoas mortas por Covid-19 no estado, 62 foram em Manaus, onde a contaminação do novo coronavírus é comunitária – isto é, o vírus circula nas ruas. Há vitimas fatais da pandemia também em Parintins (3), Iranduba (1), Manicoré (1) e Novo Airão (1). Outros 13 óbitos estão em investigação pela Fundação de Vigilância em Saúde.

O secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, disse que o Amazonas receberá profissionais da Força Nacional do SUS com dez enfermeiros e sete médicos. Ele garantiu a liberação de recursos para a ampliação de leitos no hospital Delphina Aziz, mas não informou o valor. De acordo com o secretário, os três andares vagos do prédio da unidade deverão receber em breve 350 leitos e também 20 respiradores e, no futuro, outros 20.  Ele também disse que Manaus receberá médicos intensivistas experientes de outros estados, como o Rio Grande do Sul, onde a situação está menos crítica.

A Prefeitura de Manaus inaugurou na segunda-feira um hospital de campanha para reforçar o atendimento aos doentes da pandemia do novo coronavírus no Centro Integrado Municipal de Educação (Cime), na zona norte da cidade. O lugar tem dois prédios com 24 salas em uma área de, aproximadamente, 6 mil metros quadrados: serão 144 leitos. O prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB) anunciou que irão trabalhar no hospital 15 médicos, 72 técnicos de enfermagem e 72 enfermeiros, por plantão.

 

 

 

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