Impasse em júri da Kiss agrava angústia e drama de sobreviventes e familiares das vítimas

Marilene Santos, mãe de Nathiele e vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, em ato contra a impunidade: morosidade da Justiça e impasse sobre júri agravam drama e angústia de parentes (Foto: Nathiele Schneider / AVTSM – 27/01/2024)

Vítimas secundárias da tragédia: parentes desenvolvem problemas de saúde associados ao luto e à espera por justiça

Por Micael Olegário | ODS 16ODS 3 • Publicada em 26 de fevereiro de 2024 - 09:02 • Atualizada em 6 de março de 2024 - 08:22

Marilene Santos, mãe de Nathiele e vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, em ato contra a impunidade: morosidade da Justiça e impasse sobre júri agravam drama e angústia de parentes (Foto: Nathiele Schneider / AVTSM – 27/01/2024)

Diante de um impasse e um sentimento de injustiça que perdura há mais de 11 anos, familiares de vítimas e sobreviventes da boate Kiss permanecem em uma encruzilhada em que muitos adoecem. Por conta do luto e da falta de perspectiva de justiça, pais desenvolveram problemas de saúde mental e física. Levantamento – feito pelo aposentado Paulo Carvalho, da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) – indica ainda que pelo menos seis pais e dois sobreviventes perderam a vida em meio a problemas de saúde desenvolvidos após a tragédia.

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Matemático e morador de São Paulo, Paulo, 72 anos, é pai de Rafael Carvalho, 32 anos, que estava na boate na noite do incêndio. Em Santa Maria para visitar ex-colegas de um intercâmbio feito anos antes na Nova Zelândia, Rafael foi uma das 242 vítimas fatais da tragédia, que também deixou pelo menos 600 pessoas feridas, em janeiro de 2013. Desde o episódio, Paulo se dedicou a estudar o caso, a buscar justiça e a acompanhar a situação dos demais familiares das vítimas.

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Um dos casos mais emblemáticos das vítimas secundárias da tragédia, citados pelo matemático aposentado, é o da família dos irmãos Mirela Rosa, 21, e José Manuel, 18, que morreram no incêndio. A professora Helena Rosa da Cruz, mãe dos jovens, morreu em 2015 em decorrência de uma gripe e com sintomas de baixa imunidade, atribuídos por familiares ao impacto da tragédia. Recentemente, o tio de Mirela e José Manuel, João Pedro Mossi Cruz, foi internado após sofrer um AVC. Assim como Helena e o pai dos jovens, Delçon Cruz, João Pedro também tem sido ativo na busca por justiça.

Outro caso é o de Renato Vasconcelos, pai de Letícia, que trabalhava como recepcionista da Kiss. Após a perda da filha, ele foi diagnosticado com um coágulo no pulmão, mas decidiu não realizar cirurgia e faleceu em dezembro de 2018. “A extensão da tragédia é muito grande. Já pelo que aconteceu, isso já é um trauma insuperável, mas a dor da injustiça aperta mais ainda essa situação”, ressalta Paulo Carvalho, que desenvolveu problemas no intestino que atribui ao estresse causado pela idas e vindas envolvendo o julgamento do caso.

Em 2021, depois de longa batalha judicial, os quatro réus – Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, os sócios da Kiss,  Luciano Bonilha e Marcelo de Jesus, integrantes da banda Gurizada Fandangueira – foram condenados a penas de 18 a 22 anos.  No ano seguinte, o TJRS acolheu recurso da defesa e anulou o júri, decisão mantida pelo STJ. O novo júri seria, nesta segunda, 26/02. mas o ministro Dias Toffoli, do STF suspendeu sua realização até a decisão final sobre recurso apresentado ao Supremo.

Ele se culpava muito por ter levado e não ter tirado eles de lá. Uns meses depois a gente ficou sabendo que ele não resistiu: ele se matou

Marilene Santos
Vice-presidente da AVTSM

O casal de agricultores Darci e Elizete Andreatta, foi uma das famílias que teve uma lacuna aberta em suas vidas pela tragédia. Na época com 18 anos, Ariel Nunes Andreatta era estudante de Tecnologia de Alimentos na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e foi uma das vítimas do desastre-crime da Kiss. “Lembrar o caso é aquela coisa difícil de expressar, porque às vezes vem a raiva, vem a emoção, com certeza, a dor”, comenta Darci, morador de uma comunidade no interior do município de Jóia (RS).

Paulo Carvalho, pai de Rafael, vítima do incêndio na Kiss: aposentado listou seis pais e dois sobreviventes que perderam a vida devido a problemas de saúde desenvolvidos após a tragédia (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil - 27/01/2023)
Paulo Carvalho, pai de Rafael, vítima do incêndio na Kiss: aposentado listou seis pais e dois sobreviventes que perderam a vida devido a problemas de saúde desenvolvidos após a tragédia (Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil – 27/01/2023)

O agricultor também atribui muitas das complicações de saúde que a esposa enfrenta ao trauma da perda do filho. “Ela teve há pouco tempo atrás, uns 4, 5 meses, que fazer uma prótese no quadril; eu acredito que não iria fazer, mas isso (o luto e a falta de justiça) ajudou a aumentar a necessidade antes do previsto”, relata. Segundo Darci, o inverso da lógica da natureza, ou seja, pais terem que enterrar seus filhos, “é uma situação bem complicada, até difícil de descrever, aquilo que a gente sente”.

Vice-presidente da AVTSM, Marilene Santos, 55 anos, perdeu a filha Nathiele dos Santos Soares, no incêndio da boate Kiss. A jovem, que trabalhava como garçonete em outro local, foi à boate junto com o namorado, Alan Raí Rehbein de Oliveira, 24 anos, e mais dez amigos. Apenas um sobreviveu. 

Um ano depois, durante um dos muitos eventos realizados em memória das vítimas, Marilene foi procurada pelo motorista que levou Nathiele até a boate naquela noite. “Ele contou que era amigo da Nathiele, que tinha levado eles para a boate e que, quando ficou sabendo, foi para lá tentar tirá-los, mas não conseguiu e acabou desmaiando lá dentro. Depois, foi socorrido retirado. Ele se culpava muito por ter levado e não ter tirado eles de lá. Uns meses depois a gente ficou sabendo que ele não resistiu: ele se matou”, relata Marilene.

Ato em memória das vítimas do incêndio na boate Kiss que matou 242 pessoas: parentes desenvolvem problemas de saúde associados ao luto e à espera por justiça e tornam-se vítimas secundárias da tragédia (Foto: Nathalie Schneider / AVTSM - 27/01/2024)
Ato em memória das vítimas do incêndio na boate Kiss que matou 242 pessoas: parentes desenvolvem problemas de saúde associados ao luto e à espera por justiça e tornam-se vítimas secundárias da tragédia (Foto: Nathiele Schneider / AVTSM – 27/01/2024)

Tragédia alcança pessoas de diferentes lugares

No final de semana em que o incêndio da boate ocorreu, Marilene Santos e o marido, pai de Nathiele, Sérgio Leandro Soares, 56 anos, tinham ido passar o final de semana em uma casa perto do Balneário Passo do Angico, distante cerca de 1h de Santa Maria. O local era um recanto utilizado pela família, onde cresceram as filhas do casal, Kelly e Nathiele Soares.

No domingo, 27 de janeiro de 2013, Sérgio levantou cedo para iniciar os preparativos de um churrasco, quando ficou sabendo do incêndio na Kiss. Na hora, ambos começaram a tentar ligar para Nathiele, sem sucesso, até que conseguiram falar com o namorado de Kelly. “O meu genro já atendeu o telefone chorando e disse que era melhor nós virmos para a cidade, que a Nathiele e estava na boate e eles não tinham achado ela. Aí, nós viemos para Santa Maria”, relembra Marilene.

A agonia perdurou durante todo o dia, até que veio a informação que o corpo de Nathiele tinha sido encontrado dentro da Kiss. “Acho um absurdo ter anulado esse julgamento, uma falta de respeito e consideração por nós, passar o que nós passamos lá aqueles dias”, desabafa Marilene sobre a atual situação do caso e a anulação do primeiro julgamento. Desde 2013, a família retornou apenas mais duas vezes ao Angico. 

Eu acho Santa Maria um lugar muito pesado. Tanto que eu fui lá, acho que só umas três vezes depois do incêndio

Anna Zimmermann
Médica veterinária e sobrevivente do incêndio na boate Kiss

A vice-presidente da AVTSM também menciona o preconceito e a forma como parte da cidade encara a luta dos familiares e sobreviventes. “Nós fomos recebidos assim, como os vingativos, porque não era a justiça que nós queríamos. Como se tivéssemos sido nós os jurados que determinaram a pena”, conta. Onze anos atrás, Marilene iria começar um curso técnico incentivada pela filha, mas acabou não dando sequência ao projeto na época. Agora, em janeiro deste ano, ela se formou técnica em Soldagem.

No domingo em que aconteceu o incêndio, Darci Andreatta seguia a rotina habitual de levantar cedo para ir trabalhar na lavoura. Enquanto tomava chimarrão com a esposa, Elizete Andreatta, informações sobre o que havia acontecido foram repassadas no rádio. Inicialmente, o casal pensava que o filho, Ariel, não tinha ido à festa da Kiss na noite anterior. Darci seguiu então para a lavoura, pouco tempo depois foi surpreendido pela chegada da esposa, Elizete havia recebido a notícia que todas as famílias do Rio Grande do Sul temiam naquele dia – de que o filho estava na boate e ainda não havia sido encontrado.

Manifestação em frente ao imóvel da boate Kiss, em Santa Maria: luto e trauma na cidade (Foto: Nathiele Schneider / AVTSM - 27/01/2024)
Manifestação em frente ao imóvel da boate Kiss, em Santa Maria: luto e trauma na cidade (Foto: Nathiele Schneider / AVTSM – 27/01/2024)

Darci também relata as acusações de busca por vingança citadas por Marilene Santos, vindas de fora, de que não enfrentou, o que na opinião do agricultor, foi como um decreto de pena de morte para 242 pessoas. “Nossos filhos pagaram com a vida e muitos (réus) dizem que não quiseram fazer. A gente sabe que não queriam, mas aconteceu e, se eles não quisessem que acontecesse isso, eles teriam se adequado”, acrescenta o pai de Ariel. 

Médica veterinária, Anna Zimmermann, 32 anos, é uma das sobreviventes da Kiss. Atualmente, ela mora no Paraná, mas nasceu e se formou em Santa Maria. Anna conta que a Kiss não era um local que costumava frequentar, mas decidiu ir na festa com seu grupo de amigos da Universidade. “Eu liguei para minha mãe era 5h da manhã, porque um dos meus amigos falou que era melhor eu ligar, porque ia ser uma notícia de Jornal Nacional”, relembra a médica veterinária, que conseguiu sair, mas perdeu o melhor amigo e muitas outras pessoas conhecidas naquela noite.

Para muitos, é possível estabelecer um corte na linha do tempo na história de Santa Maria, o antes e o depois da tragédia da boate Kiss, quando a cidade e parte de seus habitantes tiveram as vidas marcadas pelo fogo que consumiu a casa noturna. “Eu acho Santa Maria um lugar muito pesado. Tanto que eu fui lá, acho que só umas três vezes depois do incêndio”, afirma Anna. Para ela, reviver o episódio em um novo julgamento seria como passar por tudo de novo.

Parentes de vítimas do incêndio se abraçam em frente ao prédio da Kiss: Papel terapêutico da luta coletiva por justiça (Foto: Prefeitura de Santa Maria - 27/01/2024)
Parentes de vítimas do incêndio se abraçam em frente ao prédio da Kiss: Papel terapêutico da luta coletiva por justiça (Foto: Prefeitura de Santa Maria – 27/01/2024)

Papel terapêutico da luta coletiva por justiça

Em janeiro de 2024, no aniversário de 11 anos do incêndio, a Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria promoveu uma série de atividades na cidade. Uma delas contou com a presença de pessoas afetadas pelo incêndio do Ninho do Urubu (RJ) e membros da Associação dos familiares das vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem em Brumadinho (Avabrum). Antes disso, membros da AVTSM tinham participado de seminário em Minas Gerais, parte da programação que lembrou os 5 anos do desastre-crime com a mina da Vale.

Na mesma encruzilhada, a luta coletiva por justiça é apontada como uma maneira de resistir e encontrar forças para seguir em busca de um desfecho para o caso. “Do luto à luta” é um dos lemas evocados pelos membros da AVTSM. Especialistas que acompanham o caso desde 2013 destacam que essa busca coletiva por justiça tem auxiliado familiares a lidar com a dor de um luto que não termina.

Muitos familiares vivem, atualmente, nessa luta. Como eles mesmos falam: desse luto, a luta. E isso também foi produzindo forças nessa forma dos familiares contarem como estão vivos, estão de pé, como estão buscando justiça, através dessa organização que também é política

Monalisa Dias de Siqueira
Professora do Departamento de Saúde Coletiva da UFSM e doutora em Antropologia

Professora do Departamento de Saúde Coletiva da UFSM, Liane Beatriz Righi conta detalhes sobre a mobilização feita para atender as vítimas na época da tragédia da boate. “Esse desastre acontece no domingo de madrugada e a atenção à saúde mental e o suporte para Santa Maria vai se organizando nesse mesmo dia”, lembra Liane. Desde então, ela tem colaborado com os esforços para dar suporte às famílias, inclusive no primeiro júri, quando foram organizadas salas para o acolhimento de quem queria acompanhar o julgamento em Porto Alegre e espaços semelhantes também em Santa Maria.

Segundo Liane, uma das preocupações iniciais, na época do incêndio, foi mapear os endereços das vítimas e também evitar a medicação compulsiva de sobreviventes e familiares. A especialista menciona a criação do “Acolhe Saúde”, uma espécie de frente coletiva para lidar com o desastre e seus impactos no sistema de saúde local. “Santa Maria também viveu, naqueles primeiros momentos, uma experiência radical de democracia institucional: discussão de casos, trabalho em equipe, passagem de plantão. Mudava tanto a realidade que as reuniões rápidas no corredor se davam a cada quatro horas, para que as pessoas pudessem atualizar e alinhar a sua atitude”, acrescenta Liane Righi.

Máscaras com nome de vítimas em ato pedindo justiça: para pesquisadores, impunidade provoca adoecimento mas luta conjunta por reparação serve como terapia (Foto: Nathiele Schneider / ASVTM - 27/01/2024)
Máscaras com nome de vítimas em ato pedindo justiça: para pesquisadores, impunidade provoca adoecimento mas luta conjunta por reparação serve como terapia (Foto: Nathiele Schneider / AVTSM – 27/01/2024)

Depois, ao lado de outras colegas, a professora fez um estudo de caso sobre a tragédia na Kiss. Uma das autoras da pesquisa, a também docente do departamento de Saúde Coletiva da UFSM, Monalisa Dias de Siqueira, comenta sobre os diferentes elementos de impacto do episódio, inclusive os efeitos causados pela presença maciça da imprensa. “A cidade passa um dia fechado, um monte de jornalistas de fora que vem. Santa Maria no Brasil e no mundo sendo divulgada, as pessoas querendo acompanhar. Isso tudo invadiu de uma forma muito abrupta a vida da cidade”, pontua a pesquisadora.

Doutora em Antropologia, Monalisa destaca o componente social do sofrimento e como a anulação do primeiro júri e a falta de desfecho se tornaram componentes de adoecimento mental, além de dificultar o processo de luto dos familiares. A professora ressalta o papel da AVTSM e da luta por justiça como algo terapêutico. “Muitos familiares vivem, atualmente, nessa luta. Como eles mesmos falam: desse luto, a luta. E isso também foi produzindo forças nessa forma dos familiares contarem como estão vivos, estão de pé, como estão buscando justiça, através dessa organização que também é política”, descreve Monalisa. A pressão exercida pelos familiares também foi um dos componentes que levou à suspensão do novo júri.

“A gente não tem mais aquela emergência do início, o luto, mas a gente vê que a cada novo desdobramento, seja em termos de justiça, seja em termos de alguma questão política da cidade, a gente vê que isso vai causando impacto, as pessoas vão revivendo algumas coisas e isso vai trazendo à tona outras coisas”, pontua a pesquisadora. Se de um lado, o sentimento de injustiça é prejudicial e causa adoecimento, a união em prol de reparação e por manter viva a memória das vítimas, é o que mantém muitos de pé.

O contato com pessoas que passaram por desastres semelhantes em termos de impactos emocionais e sociais também colabora. “São estratégias de unir forças para seguir numa luta que é muito desgastante, em termos de saúde, em termos emocionais, financeiros, de configurações familiares e de relações afetivas. É muito desgastante, porque é muito tempo nesse processo”, complementa a professora. Monalisa confia que as formas de resistência coletiva podem contribuir também para cobrar uma postura mais ativa e respostas mais firmes do poder público em termos de reparação e justiça.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Escreve sobre temas ligados a questões ambientais e sociais, educação e acessibilidade.

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