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A melhor cara do Brasil, pela 92ª vez

Desfile das grandes escolas de samba do Rio em 2024 dobra aposta na cultura, mantém o engajamento e se empenha nas melhores causas sociais brasileiras

ODS 16ODS 17 • Publicada em 25 de janeiro de 2024 - 19:52 • Atualizada em 13 de fevereiro de 2024 - 12:51

O espetáculo atravessa um par de madrugadas, com elenco que ultrapassa 36 mil pessoas; a maioria não se conhece; inexiste ensaio geral, tampouco prova de roupa; o cenário todo só fica pronto na hora; a apresentação se dá em cortejo de 800 metros e obriga a conduzir equipamentos gigantescos, de formatos diferentes entre si; deve durar tempo patologicamente marcado; acontece sob chuva ou céu estrelado, calorão ou ventania; por fim, um júri avalia o desempenho, a partir de parâmetros únicos (e algo peculiares).

Leu essa? Fábulas carnavalescas reais

A mágica coletiva terá, daqui a pouco mais de duas semanas, sua 92ª edição. Transcorre (quase sempre) sem maiores sobressaltos anualmente, desde 1932, e, ao longo dessa odisseia, consolidou-se como emblema de paixão, beleza, drama, superação, arte – a melhor cara do Brasil. Obra, resistência e conquista do povo preto do Rio.

Fosse na Alemanha, no Japão ou em outra terra de colonizador, o desfile das grandes escolas de samba cariocas seria exaltado mundo afora, como aferição da excelência de uma sociedade. Encontrariam até jeito de endereçar o Nobel a algum artista criador. Mas tais privilégios não alcançam a periferia. Tudo certo – a gente se diverte por aqui sem precisar de aval alienígena.

Homenagem a Bruno Pereira e Dom Phillips, no ensaio do Salgueiro: engajamento. Foto Sad Coxa/Rio Carnaval
Homenagem a Bruno Pereira e Dom Phillips, no ensaio do Salgueiro: engajamento. Foto Sad Coxa/Rio Carnaval

Para 2024, as grifes da folia oferecem cardápio de enredos com agudo sentido cultural, inspirados em livros, personagens essenciais de presente e passado, histórias mágicas e misteriosas – sempre com muita macumba. Novamente, a maratona estará pautada por muito engajamento político, de inegociável viés progressista. Viagem virtuosa e, até onde a vista alcança, sem volta.

Quase todos os temas flertam com os ODS, mas alguns tocaram em especial o coração do #Colabora – e nenhum mais do que o criado pelo carnavalesco Edson Pereira para o Salgueiro. “Hutukara” será uma celebração-defesa do povo Yanomami, denunciando o genocídio contra a etnia no governo Bolsonaro. A palavra-título é pura poesia: “O céu original a partir do qual se formou a terra”.

Fantasia de ibeji, para o desfile da Portela: Carnaval antirracista. Reprodução do Instagram

O vizinho Oscar #RioéRua Valporto abriu o coração salgueirense e detalhou a proposta, que produziu alguns dos versos mais bonitos do ano: “Pelo povo da floresta/ Pois a chance que nos resta/ É um Brasil cocar!” Será lindo e forte, como convém.

Outro enredo totalmente #Colabora conduzirá a Portela. A maior campeã e mais tradicional das escolas vai apresentar “Um defeito de cor”, inspirado no livro espetacular (e homônimo) de Ana Maria Gonçalves. André Rodrigues e Antonio Gonzaga, os carnavalescos, conceberam uma resposta de Luis Gama, o abolicionista, à mãe, Luiza Mahin, líder de seu povo em Salvador. “Saravá Kehinde! Teu nome vive!/ Teu povo é livre! Teu filho venceu, mulher!/ Em cada um de nós, derrame seu axé!”, celebra o samba. Lindo!

O índice #Colabora de Carnaval passeia por outras escolas. Como o Paraíso do Tuiuti, que também falará da luta pela liberdade, em “Glória ao Almirante Negro”, reverência a João Cândido, o líder da Revolta da Chibata. Eternizado em “Mestre-sala dos mares”, a canção icônica de Aldir Blanc e João Bosco, o personagem entra para a coleção de temas progressistas da escola de São Cristóvão nos últimos anos.

Personagem negro menos conhecido, Ras Gonguila, mito da folia de Maceió, protagoniza o desfile da Beija-Flor. A gigante nilopolitana desfilará com enredo delirante (criação do carnavalesco João Vítor Araújo) para festejar o folião descendente de escravizados que se intitulava herdeiro da realeza etíope.

Na exaltação à cultura popular, difícil será bater a Mangueira e seu “A negra voz do amanhã”, enredo-homenagem a Alcione concebido pelos carnavalescos Annik Salmon e Guy Estevão. Ícone da própria escola, a cantora maranhense terá sua história conjugada à aposta que fez no futuro, ao fundar a Mangueira do Amanhã. Garantia de emoção.

Assim como “Gbalá – Viagem ao templo da criação”, da Vila Isabel, que repete enredo de Oswaldo Jardim (1960-2003), apresentado originalmente em 1993 com a mensagem de um mundo melhor a partir da valorização das crianças. “Quando acaba a criação/ Desaparece o criador/ Pra salvar a geração/ Só esperança e muito amor”, reza o samba magistral de Martinho da Vila, gênio brasileiro que vai comemorar seu 86º aniversário no desfile da escola.

Flertam com os parâmetros #Colabora também os enredos de Grande Rio, “Nosso destino é ser onça”, baseado no livro de Alberto Mussa e em mitos tupinambá; de Mocidade e a irreverência do “Pede caju que dou… Pé de caju que dá”, sobre a fruta “com a cara do Brasil”, como reivindica o samba; e da Viradouro, no seu “Arroboboi, Dangbé”, sobre a energia do culto ao vodum serpente, influência decisiva para as guerreiras do Daomé.

Certa mesmo só a vitória da cultura mais popular, preta e brasileira, que move as escolas de samba cariocas. Tem de ser muito ruim da cabeça ou doente do pé para não ser apaixonado pela magia incrível dos bambas da Sapucaí.

Baianas do Tuiuti na Sapucaí: reverência a João Cândido, o Almirante Negro. Foto Alexandre Vidal/Rio Carnaval

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