ODS 1
Receba as colunas de Aydano André Motta no seu e-mail
Veja o que já enviamosVini Jr incomoda poder do futebol e fica sem o prêmio que merecia
Bola de Ouro para o espanhol Rodri tem menos ‘campo e bola’ e mais recados sobre como a banda toca na política do futebol
O esporte de elite tem alergia a transgressores. Historicamente atrelado aos poderosos – mesmo os mais repulsivos –, o poder do setor sua o paletó para sufocar protestos, críticas e questionamentos de todo tipo. Adestra os talentos a se calarem – e remunera generosamente os cordeirinhos. Tratado como prodígio desde sempre, Vinícius Jr aprendeu a rezar pela cartilha da opressão, mas exposto a pressão inédita na história do futebol, rompeu com ela. E virou um incômodo.
Leu essa? A solidão do craque antirracista
A despropositada escolha do júri da “France Football” e do “L’Équipe”, publicações francesas donas da Bola de Ouro (prêmio que consagra, desde 1956, o melhor jogador da temporada europeia), pelo volante espanhol Rodri tem pouco a ver com o campo. Não é, nunca será, somente o jogo jogado – aqui, no sentido literal. Impossível descolar a cruzada antirracista do atacante brasileiro da decisão dos jurados.
Na bola, tem nem graça. Vinicius Jr, 24 anos, protagonizou as conquistas dos principais campeonatos disputados pelo Real Madrid – Campeonato Espanhol e Champions League. Assumiu o posto de líder do “novo” time, agora sem Cristiano Ronaldo e Benzema e com Modric no outono da carreira; chegou pela segunda vez ao título continental, o mais importante entre clubes, e fez, de novo, gol na final.
Jogador-símbolo do sistema de Pep Guardiola, o maior técnico do mundo, Rodri, 28, viveu temporada regular no Manchester City tricampeão da endinheirada Premier League, que teve como destaques o superartilheiro norueguês Haaland e o inglês Phil Foden. Levantou o troféu da Euro como capitão da Espanha, mas terminou o convescote de seleções ofuscado pelos jovens atacantes Lamine Yamal e Nico Williams. Em verdade, teve como grande temporada a anterior, 2022/23.
Mas quem preferiu o espanhol? A maioria dos jornalistas dos 100 primeiros países, um de cada, do ranking da Fifa, que compõem o júri da Bola de Ouro. Os eleitores elaboraram lista com 10 nomes e atribuíram pontos a eles – 15 ao primeiro colocado e, daí em diante, 12, 10, 8, 7, 5, 4, 3, 2 e 1. A soma determinou o vencedor.
Entre os participantes, são 20 das Américas; 23 da África; 15 da Ásia; um da Oceania; e 41 europeus. Muito além de júris e premiações, o continente dos colonizadores concentra, além do dinheiro (e por causa dele) o poder da bola. Lá, está também a torrente racista que se espalha por países, governos, sociedades.
O futebol, apesar de se esforçar muito, não consegue se exilar numa dimensão paralela. E olha que tenta muito, inventando leis próprias e articulando nas sombras para influenciar a política. Fracassa, diante de movimentos como a espiral de intolerância contra imigrantes, que transborda para os estádios. Os cartolas, craques dos bastidores e conspirações, viram pernas de pau no enfrentamento à mazela; perdem de goleada.
Ao se insurgir contra os criminosos que o perseguem, Vini Jr estressa o protocolo do establishment boleiro. O máximo que clubes e federações se permitem é o slogan “Say no to racism”, “Diga não ao racismo”, em burocráticas placas no estádio e nas braçadeiras dos capitães. As punições aos racistas são esquálidas, constrangedoramente insuficientes. No mais, o show tem que continuar, para as pilhas de dinheiro seguirem entrando (de preferência, livres de impostos).
Receba as colunas de Aydano André Motta no seu e-mail
Veja o que já enviamosA leniência poupa clubes de racistas, tampouco reage na contundência devida contra os intolerantes. As vítimas gritam, se desesperam, apontam os criminosos, mas a impunidade mantém-se imbatível, marcando seus gols a cada rodada. No máximo, partidas são brevemente interrompidas, e os atingidos constrangidos a continuar em campo, como se fosse passar por mágica. Na face dos agressores, grita a certeza de que poderão fazer de novo, e de novo, e de novo.
Com o retinto brasileiro saído de São Gonçalo, município pobre da região metropolitana do Rio, chegou-se ao paroxismo. Vinicius Jr foi implacavelmente perseguido pelos racistas que se transformaram em marca da Espanha, como as (lamentáveis) touradas e as obras de Picasso. Um boneco representando o jogador foi pendurado, simulando um enforcamento, num viaduto de Madri. As ofensas grassaram por estádios do país – e quase nada aconteceu.
Tamanha perseguição jamais ocorreu, em toda a história do futebol. Assim, o jovem craque virou, à força, ícone antirracista e, com a imagem de garoto-propaganda planetário – quase 52 milhões de seguidores no Instagram, outros 9,8 milhões no Twitter –, amplificou sua causa ao máximo. Chegou a reivindicar que a Espanha fosse excluída das sedes da Copa do Mundo de 2030, por causa do racismo. O contra-ataque altivo bateu doído na caretice dos poderosos da bola.
Se racismo não houvesse, Vini Jr seria “apenas” um dos melhores jogadores de sua geração. Desde a infância, no Flamengo que ama acima de todos os outros signos futebolísticos, foi preparado para ser protagonista mundial. A velocidade das jogadas pelas bordas do campo, a capacidade para deixar companheiros na cara do gol, os títulos e marcas acumulados nas divisões de base, tudo indicava que ele chegaria ao topo. Pena que num tempo trágico, do futebol envenenado pelo preconceito. O brasileiro seguiu craque, mas foi obrigado a se travestir ativista. Porque racismo há – e muito.
O prêmio individual de melhor do mundo que parecia certo, sob o ponto de vista técnico, foi parar nas mãos de outro, jogando a sombra da intolerância no colo de jurados e organizadores da distinção. Na cerimônia, ainda houve azeitona na empada da controvérsia: os donos do evento escolheram o liberiano George Weah, único africano a conquistar o prêmio (1995), para entregar a bola dourada. No momento em que o ex-craque do Milan, negro, abriu o envelope no palco do Théâtre du Châtelet, em Paris, ouviram-se gritos de “Vini” da plateia. Constrangimento que dava para cortar com faca.
O brasileiro não viu; obedeceu as ordens de Florentino Perez, presidente do Real Madrid, que não comparecer à festa, em protesto. O clube foi eleito o melhor do ano, mas ninguém apareceu para receber o troféu. “É óbvio que a Bola de Ouro-Uefa não respeita o Real Madrid. E o Real Madrid não vai aonde não é respeitado”, encerrou a diretoria, em comunicado que cita a entidade responsável pelo futebol no continente, parceira do prêmio.
Vinicius criticou a escolha em seu perfil no Twitter, em texto curto e confuso. Seria melhor se fizesse como os craques da NBA, onde o vencido abraça o vencedor, cena de espírito esportivo que virou tradição. Mas difícil (especialmente para colunistas brancos) medir as consequências de pressão tão brutal nos sentimentos e convicções do atacante. Em manifestação lacônica nas redes sociais, antecipou que seguirá na sua cruzada.
A queda de braço entre o jogador e o conservadorismo boleiro ainda terá muitas rodadas. O brasileiro dá todos os sinais de que permanecerá na trincheira do antirracismo. Vêm mais golaços por aí.
Apoie o #Colabora
Queremos seguir apostando em grandes reportagens, mostrando o Brasil invisível, que se esconde atrás de suas mazelas. Contamos com você para seguir investindo em um jornalismo independente e de qualidade.