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Vini Jr incomoda poder do futebol e fica sem o prêmio que merecia

Bola de Ouro para o espanhol Rodri tem menos ‘campo e bola’ e mais recados sobre como a banda toca na política do futebol

ODS 10ODS 16 • Publicada em 31 de outubro de 2024 - 09:44 • Atualizada em 31 de outubro de 2024 - 11:16

Boneco com a camisa de Vinicius Jr pendurado pelo pescoço em ponte de Madrid: barbárie. Reprodução
Boneco com a camisa de Vinicius Jr pendurado pelo pescoço em ponte de Madrid: barbárie. Reprodução

O esporte de elite tem alergia a transgressores. Historicamente atrelado aos poderosos – mesmo os mais repulsivos –, o poder do setor sua o paletó para sufocar protestos, críticas e questionamentos de todo tipo. Adestra os talentos a se calarem – e remunera generosamente os cordeirinhos. Tratado como prodígio desde sempre, Vinícius Jr aprendeu a rezar pela cartilha da opressão, mas exposto a pressão inédita na história do futebol, rompeu com ela. E virou um incômodo.

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A despropositada escolha do júri da “France Football” e do “L’Équipe”, publicações francesas donas da Bola de Ouro (prêmio que consagra, desde 1956, o melhor jogador da temporada europeia), pelo volante espanhol Rodri tem pouco a ver com o campo. Não é, nunca será, somente o jogo jogado – aqui, no sentido literal. Impossível descolar a cruzada antirracista do atacante brasileiro da decisão dos jurados.

Na bola, tem nem graça. Vinicius Jr, 24 anos, protagonizou as conquistas dos principais campeonatos disputados pelo Real Madrid – Campeonato Espanhol e Champions League. Assumiu o posto de líder do “novo” time, agora sem Cristiano Ronaldo e Benzema e com Modric no outono da carreira; chegou pela segunda vez ao título continental, o mais importante entre clubes, e fez, de novo, gol na final.

Jogador-símbolo do sistema de Pep Guardiola, o maior técnico do mundo, Rodri, 28, viveu temporada regular no Manchester City tricampeão da endinheirada Premier League, que teve como destaques o superartilheiro norueguês Haaland e o inglês Phil Foden. Levantou o troféu da Euro como capitão da Espanha, mas terminou o convescote de seleções ofuscado pelos jovens atacantes Lamine Yamal e Nico Williams. Em verdade, teve como grande temporada a anterior, 2022/23.

Mas quem preferiu o espanhol? A maioria dos jornalistas dos 100 primeiros países, um de cada, do ranking da Fifa, que compõem o júri da Bola de Ouro. Os eleitores elaboraram lista com 10 nomes e atribuíram pontos a eles – 15 ao primeiro colocado e, daí em diante, 12, 10, 8, 7, 5, 4, 3, 2 e 1. A soma determinou o vencedor.

Entre os participantes, são 20 das Américas; 23 da África; 15 da Ásia; um da Oceania; e 41 europeus. Muito além de júris e premiações, o continente dos colonizadores concentra, além do dinheiro (e por causa dele) o poder da bola. Lá, está também a torrente racista que se espalha por países, governos, sociedades.

Manchester City’s Spanish midfielder Rodri kisses the trophy as he receives the Ballon d’Or award from Former President of Liberia and former Liberian football player George Weah during the 2024 Ballon d’Or France Football award ceremony at the Theatre du Chatelet in Paris on October 28, 2024. (Photo by FRANCK FIFE / AFP)

O futebol, apesar de se esforçar muito, não consegue se exilar numa dimensão paralela. E olha que tenta muito, inventando leis próprias e articulando nas sombras para influenciar a política. Fracassa, diante de movimentos como a espiral de intolerância contra imigrantes, que transborda para os estádios. Os cartolas, craques dos bastidores e conspirações, viram pernas de pau no enfrentamento à mazela; perdem de goleada.

Ao se insurgir contra os criminosos que o perseguem, Vini Jr estressa o protocolo do establishment boleiro. O máximo que clubes e federações se permitem é o slogan “Say no to racism”, “Diga não ao racismo”, em burocráticas placas no estádio e nas braçadeiras dos capitães. As punições aos racistas são esquálidas, constrangedoramente insuficientes. No mais, o show tem que continuar, para as pilhas de dinheiro seguirem entrando (de preferência, livres de impostos).

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A leniência poupa clubes de racistas, tampouco reage na contundência devida contra os intolerantes. As vítimas gritam, se desesperam, apontam os criminosos, mas a impunidade mantém-se imbatível, marcando seus gols a cada rodada. No máximo, partidas são brevemente interrompidas, e os atingidos constrangidos a continuar em campo, como se fosse passar por mágica. Na face dos agressores, grita a certeza de que poderão fazer de novo, e de novo, e de novo.

Com o retinto brasileiro saído de São Gonçalo, município pobre da região metropolitana do Rio, chegou-se ao paroxismo. Vinicius Jr foi implacavelmente perseguido pelos racistas que se transformaram em marca da Espanha, como as (lamentáveis) touradas e as obras de Picasso. Um boneco representando o jogador foi pendurado, simulando um enforcamento, num viaduto de Madri. As ofensas grassaram por estádios do país – e quase nada aconteceu.

Tamanha perseguição jamais ocorreu, em toda a história do futebol. Assim, o jovem craque virou, à força, ícone antirracista e, com a imagem de garoto-propaganda planetário – quase 52 milhões de seguidores no Instagram, outros 9,8 milhões no Twitter –, amplificou sua causa ao máximo. Chegou a reivindicar que a Espanha fosse excluída das sedes da Copa do Mundo de 2030, por causa do racismo. O contra-ataque altivo bateu doído na caretice dos poderosos da bola.

Se racismo não houvesse, Vini Jr seria “apenas” um dos melhores jogadores de sua geração. Desde a infância, no Flamengo que ama acima de todos os outros signos futebolísticos, foi preparado para ser protagonista mundial. A velocidade das jogadas pelas bordas do campo, a capacidade para deixar companheiros na cara do gol, os títulos e marcas acumulados nas divisões de base, tudo indicava que ele chegaria ao topo. Pena que num tempo trágico, do futebol envenenado pelo preconceito. O brasileiro seguiu craque, mas foi obrigado a se travestir ativista. Porque racismo há – e muito.

O prêmio individual de melhor do mundo que parecia certo, sob o ponto de vista técnico, foi parar nas mãos de outro, jogando a sombra da intolerância no colo de jurados e organizadores da distinção. Na cerimônia, ainda houve azeitona na empada da controvérsia: os donos do evento escolheram o liberiano George Weah, único africano a conquistar o prêmio (1995), para entregar a bola dourada. No momento em que o ex-craque do Milan, negro, abriu o envelope no palco do Théâtre du Châtelet, em Paris, ouviram-se gritos de “Vini” da plateia. Constrangimento que dava para cortar com faca.

O brasileiro não viu; obedeceu as ordens de Florentino Perez, presidente do Real Madrid, que não comparecer à festa, em protesto. O clube foi eleito o melhor do ano, mas ninguém apareceu para receber o troféu. “É óbvio que a Bola de Ouro-Uefa não respeita o Real Madrid. E o Real Madrid não vai aonde não é respeitado”, encerrou a diretoria, em comunicado que cita a entidade responsável pelo futebol no continente, parceira do prêmio.

Vinicius criticou a escolha em seu perfil no Twitter, em texto curto e confuso. Seria melhor se fizesse como os craques da NBA, onde o vencido abraça o vencedor, cena de espírito esportivo que virou tradição. Mas difícil (especialmente para colunistas brancos) medir as consequências de pressão tão brutal nos sentimentos e convicções do atacante. Em manifestação lacônica nas redes sociais, antecipou que seguirá na sua cruzada.

A queda de braço entre o jogador e o conservadorismo boleiro ainda terá muitas rodadas. O brasileiro dá todos os sinais de que permanecerá na trincheira do antirracismo. Vêm mais golaços por aí.

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